quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

QUAL SOCIALISMO? (2)


 

 

                                                                             Reinaldo Lobo*

         A melhor solução para um problema nas ciências ditas "exatas" é geralmente a fórmula mais simples e elegante.  Já nas questões sociais e históricas o melhor método é o que dá conta da complexidade, sem reduzir os fenômenos ao menor elemento.

         A dialética marxista tinha a vantagem de tentar abarcar o conjunto dos fatos histórico-sociais, suas contradições e conflitos, sem o reducionismo inicial.  O defeito da teoria de Marx era, porém, o seu excessivo racionalismo e sua inclinação para o positivismo. O resultado final foram as chamadas "leis da História" que tudo explicavam pelo determinismo econômico e o "motor" da luta de classes. No extremo da vulgata marxista, o que não fosse sintetizado nos termos dessas leis -- Stálin aperfeiçoou o modelo, com suas "quatro leis da dialética"-- estava literalmente fora da realidade.

        Essa visão promove o fechamento do pensamento sobre fenômenos complexos, exatamente o contrário do que o propósito inicial de Marx parecia indicar. Há um elemento de indeterminação, de acaso e de instabilidade na História que Hegel havia entrevisto, mas o marxismo ocultou de muitas maneiras. É impossível diagnosticar precisamente o que se passa no plano histórico-social, até porque o observador está vivendo no meio do que é preciso registrar. Mais difícil ainda é fazer prognósticos ou adivinhar o futuro.

      É possível elucidar uma práxis, um processo, analisar o curso dos acontecimentos e até fazer ilações provisórias, embora estas não possam ser tomadas como certezas e, menos ainda, leis. Quem poderia dizer  que a Revolução Francesa desembocaria em Napoleão Bonaparte, ou que  a Revolução norte-americana de independência redundaria num imperialismo expansionista mais refinado do que o colonialismo, ou que a libertária União dos Sovietes desse no regime que deu?

      Neste campo complexo, podemos falar, no máximo, de projetos. Esses projetos podem ser discernidos no tempo e no espaço, conter intenções e esperanças diversas, princípios diferentes -- e podem realizar-se ou não.

      A vantagem que os autores pós-marxistas vêem no cerne do projeto democrático é, em grande parte, justamente a sua abertura. Desde a Grécia Antiga, a democracia, com todas as suas limitações, tende a sustentar um ambiente humano aberto aos eventos ...humanos. A democracia é falível e flexível, pode facilitar a realização de projetos de transformação, ainda que o seu método encontre muita resistência e, com freqüência, seja posto de lado em favor dos vários tipos de autoritarismo. Há um componente de criação na democracia que pode dar origem ao inédito, àquilo que é radicalmente novo.

         Um desses autores pós-marxistas, Claude Lefort, costumava dizer que uma das características da democracia é a capacidade de criar novos direitos. A pressão de baixo para cima, contra o poder, pode dar origem a mudanças importantes nas sociedades minimamente democráticas.

         Se tomarmos o exemplo norte-americano, fica fácil entender o que esse filósofo queria dizer. O povo dos Estados Unidos, lá por volta dos anos 60 do século passado, teve uma pequena revolução nas esferas dos costumes , das raças  e dos direitos civis. Minorias e mesmo grandes maiorias, como as mulheres discriminadas, conquistaram novos direitos e mudaram o panorama da vida social norte-americana. Essas mudanças espalharam-se pelo mundo afora e hoje constituem uma política.

         Uma outra característica do projeto democrático é que contém dentro dele o núcleo de um outro projeto -- o de autonomia humana, como demonstrou a obra de outro autor, Cornelius Castoriadis. A autonomia não é entendida aqui no sentido do liberalismo, como uma essência natural humana ou no mesmo sentido prático de Kant, como a realização da lei moral. A autonomia castoriadiana é concebida na mesma direção de Freud, como uma conquista. Não é algo que se dá naturalmente, nem pré-existente na essência humana. É o resultado de um processo em que o sujeito se apropria reflexivamente de si mesmo, desalienando-se e livrando-se progressivamente da heteronomia.

         Autonomia  é a capacidade de fazer a própria lei. Assemelha-se -- sem se reduzir a-- à independência que o paciente da psicanálise vai adquirindo progressivamente, à medida em que se torna mais lúcido e capaz de auto-observação. A autonomia pressupõe um mínimo necessário de auto-reflexão lúcida e a conseqüente liberdade de se dar a própria lei. Sair da heteronomia é sair do manto da lei do outro.

       Não significa ignorar o outro ou realizar qualquer desejo, mas conhecer a responsabilidade da auto-limitação. Não se trata de psicologismo nem de atender à Lei do Desejo indiscriminadamente, mas de considerar inclusive a esfera institucional e social.

      A decisão sempre será , ao mesmo tempo, singular e coletiva -- será subjetiva, mas estará também ligada a uma situação coletiva e social-histórica. Em psicanálise , longe de uma "ética do desejo privatizado"-- dirá Castoriadis--, o projeto de autonomia é posto em circulação como indissociavelmente individual e social. Isto quer dizer que "o problema da ação subjetiva e da liberdade, na medida em que o ser humano é um ser social, é posta em jogo em sua relação com a liberdade dos outros". Em suma , a atividade livre de um sujeito não pode ser senão aquela que visa a liberdade dos outros.

      É por isso que Castoriadis costumava dizer que a psicanálise tem, no essencial, o mesmo objeto que a política: a autonomia dos seres humanos. (Falava da verdadeira política, não do ofício de um Aécio Neves, de um Michel Temer, ou mesmo de uma Dilma, filhos de uma sociedade heterônoma.) Ninguém pode viver sozinho, e também não pode eliminar os outros. A pergunta é : como posso ser livre se sou obrigado a viver em uma sociedade em que a lei é determinada por alguém outro ?

     A única resposta não utópica e não delirante-- diria Castoriadis-- é : ter a possibilidade efetiva de participar em pé de igualdade com qualquer outra pessoa da formação e da aplicação da lei. Esta é a verdadeira significação da democracia. "Uma sociedade autônoma só é possível se  for formada por indivíduos autônomos. E indivíduos autônomos só podem existir por meio e numa sociedade autônoma." A educação para a autonomia faz parte desse projeto. Houve "picos" de emergência do projeto de autonomia na História : na Grécia clássica, nas revoluções americana e francesa, na Rússia de 1917, na revolução húngara de 1956 , na "brecha" de Maio de 1968 e, agora, na Primavera Árabe.

     O projeto de uma sociedade autônoma deve ser a busca de uma conquista de maior liberdade em todas as esferas sociais e institucionais, e pode resultar em uma revolução. A radicalização da democracia pode levar a uma exigência maior de mudanças institucionais e a revolução não se dá só na esfera da transformação econômica. Movimentos sociais, como o MST, propõem a criação de novas instituições no interior da sociedade.

     Revolução é a autotransformação e recriação de todas as instituições.É, portanto, a autotransformação, de baixo para acima, de toda a sociedade.Pode ocorrer.Pode...  
 

         

        *Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.   

        

       

 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

QUAL SOCIALISMO? (1)


                                                                 Reinaldo Lobo*

 

   Uma pergunta que me fazem com freqüência, seja por provocação ideológica ou simples curiosidade, é: qual seria o modelo adequado de socialismo preconizado para o Brasil?  A minha resposta é bem simples: nenhum.

   A interrogação é quase sempre  uma armadilha preparada por aqueles que professam uma ideologia anti-socialista ou, se quiserem, anticomunista. Ou seja, uma pegadinha sectária vinda da direita, formulada pelos que pregam o individualismo possessivo -- o capitalismo e a propriedade privada -- como caminho único para a organização da sociedade.

   A questão capciosa visa a obrigar o interlocutor a optar entre os vários exemplos históricos que reclamam o rótulo de socialistas ou , então, a refugiar-se na desprezada abstração da utopia.

   O menu que oferecem é Cuba, União Soviética, Venezuela "bolivariana", China convertida ao mercado, Coréia do Norte ou ditaduras nacional-capitalistas da África, do Oriente Médio ou da Ásia.  Nem chegam a falar de países como a Suécia, a Dinamarca ou a Noruega, pois estes são reivindicados como pertencentes ao capitalismo puro, ainda que estejam num regime "socializante" de Estado do Bem-Estar social.

    O resto é quimera vã -- dizem. O que sobra? Resposta invariável : o capitalismo, a sociedade de consumo intensivo e crescimento "ilimitado", nas suas versões norte-americana e européia. Não é o regime perfeito --argumentam--, mas é o que existe de efetivo, real, ao qual devemos nos resignar  e com o qual teremos de conviver.

    A própria palavra socialismo deve ser usada com cuidado, pois está muito desgastada  após décadas de social democracia e de socialismo europeus, oportunistas e camaleônicos, muito mais comprometidos, na verdade, com a exploração, a neutralização da luta de classes e a manutenção do status quo capitalista, do que com qualquer avanço social.

   Quanto ao socialismo comunista, também bastante oportunista nos seus partidos no Ocidente, ganhou definitivamente a pecha de totalitarismo pela experiência repressiva, de exploração de classes e antidemocrática do Leste Europeu.

    O que resta, então, para a chamada "ala progressista"?

    Para alguns antigos socialistas sérios, cultos e respeitáveis o que restou foi um conjunto de valores éticos e de princípios políticos. Uma forma de encarar o mundo e de lutar para torná-lo mais justo. Algo assim como faz a esquerda norte-americana, que sabe que não vai tomar o poder a curto ou a médio prazo, mas tenta permanentemente escolher o presidente "menos ruim", e fazer número no Congresso e criar grupos de pressão para que se concretizem os direitos humanos e sociais, protegendo os trabalhadores, o povo pobre, as mulheres e as minorias discriminadas. A esquerda dos EUA "vive o presente" e não traça objetivos futuros muito claros, ainda que tenha um papel relevante no combate à discriminação, ao racismo e na conquista de direitos civis.

     É uma posição respeitável, porém , só parcialmente verdadeira e eficaz. Ao fim e ao cabo, tudo continua dentro do modo de produção capitalista e uns poucos permanecem  proprietários  dos meios de produção. O problema do capitalismo, dizia George Bernard Shaw, é que tem poucos capitalistas.

      Sobre o Brasil, é preciso dizer, em primeiro lugar, que não existe modelo formulado de antemão para a situação de um país específico. Só a práxis concreta desse povo poderá determinar a trajetória de construção de uma sociedade, principalmente se pretendermos que seja política e socialmente democrática.

    Chega a ser meio ridículo quando dizem, tanto à direita quanto à esquerda, que Cuba, por exemplo, deveria ser um modelo de sociedade socialista para os brasileiros. Por mais semelhanças culturais ou antropológicas  existam entre os dois povos, há  diferenças - históricas, geopolíticas e geográficas- abissais que impedem a convergência sob um mesmo regime. Além disso, nunca se soube de uma revolução de determinado país que desse certo em outro.

    A derrota foi inevitável quando a esquerda brasileira quis imitar os "focos no campo" dos cubanos entre nós, apenas porque havia uma ditadura aqui, evocando a ditadura que houve lá sob o regime de Batista, nos anos 40 e 50 do século XX..  As classes dirigentes brasileiras já haviam aprendido com toda a experiência histórica cubana e sabiam exatamente como evitar a guerrilha. Aqui, e mesmo na Bolívia e outras regiões. Che Guevara, revolucionário desprendido e corajoso, foi uma inspiração moral para a juventude latino-americana e mesmo mundial nos anos 60, mas jamais conseguiu replicar a revolução cubana. E nem poderia.

    Uma revolução é um fenômeno de destruição e criação que emerge com certa espontaneidade imprevisível e surpreende as sociedades mais ou menos estratificadas. Cada uma vem de um jeito diferente e gera sociedades e instituições diversas. Não fórmula pronta de revolução, assim como não existe uma sociedade exatamente igual à outra.

    Existem autores que pensaram e pensam essas questões e que são pós-marxistas, isto é,  incluem Marx em seu repertório teórico e prático, mas vão além e, de certa forma, superam o marxismo ou não o consideram o único pensamento possível para a esquerda. São os casos, por exemplo, de pensadores como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, na França, Axel Honneth, Jürgen Habermas e outros herdeiros da Escola de Frankfurt, na Alemanha.

        Todos têm em comum uma certa crítica radical tanto do capitalismo predatório quanto do marxismo  do universo totalitário dos regimes comunistas. O mais importante é que todos, vindos de tradições filosóficas relativamente diferentes, utilizam a chave da democracia para repensar o projeto de emancipação social, política e humana.

    O mais curioso é que todos também aposentaram a palavra socialismo, que prestou grandes serviços ao movimento operário e revolucionário, mas que hoje é inoperante e desnecessária. Até porque declarar-se "socialista" tem tantos significados que , ao final, não tem significado consistente algum.

   Já repensar a democracia e levantar a questão do poder e de sua distribuição como centro de qualquer projeto transformador, é um exercício necessário num mundo onde praticamente todos os países reivindicam rótulo de democráticos. Nunca houve tantos governos e regimes que se intitulam "democracias" na face da terra, mas já são escassos os que se apropriam e exibem, como sua definição e identidade, a palavra "socialismo".

(Prossegue no dia 17/12/2014)

 

* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

UM PERIGO REAL E IMEDIATO


                                

                                                                               Reinaldo Lobo*

 

          Um cartaz erguido por uma mulher jovem na passeata de extrema direita contra a reeleição da presidente Dilma, pedia há alguns dias : "Militares, façam uma faxina. Queremos um golpe durante  90 dias. Depois devolvam o poder". Até o poeta Ferreira Gullar, ex integrante do Partido Comunista Brasileiro, o "Partidão" supostamente de esquerda, falou de um "golpe democrático" contra o PT em sua coluna na Folha de São Paulo. Como se houvessem golpes de Estado democráticos!

        Doce ilusão!

         Em primeiro lugar, porque não haverá golpe. As instituições democráticas, o quadro político, a situação internacional, a economia, a posição do Brasil e a respeitabilidade do próprio governo Dilma em escala mundial, não autorizam ninguém a falar em intervenção militar. Aliás, os próprios militares brasileiros não parecem nada interessados nisso, pois  muitos deles estão alinhados francamente com o governo na sua política externa e com o propósito de Dilma de apurar seriamente as acusações de corrupção.

        Em segundo, porque ,se houvesse golpe, repetiríamos o que houve em 64, talvez até de forma pior. Os "liberais" de então, que pediam uma intervenção rápida das Forças Armadas contra o governo Goulart, o perigo comunista e a corrupção, arrependeram-se logo depois com o que veio e durou 21 anos de repressão, censura e violência de Estado. Acostumados com o poder, os militares não o largaram mais.

        A atual onda contra a corrupção "dos políticos" iniciada junto com os movimentos de massas de junho de 2013, que se tornaram ambíguos e acabaram liderados por uma Nova Direita, parece caminhar em algumas direções imaginárias perigosas:

1. imitar a oposição venezuelana que se contrapôs a Chaves e,agora, à herança "bolivariana , supondo semelhanças inexistentes entre Caracas e Brasília";

 2. provocar no Brasil uma espécie de cruzada anti-corrupção semelhante à "Operação Mãos Limpas" da Itália, que acabaria por conduzir Silvio Berlusconi ao poder por quase duas décadas;

3. o movimento espanhol, replicado um pouco na Argentina, sem êxito, baseado no slogan "que se vayan todos" ("que vão embora todos" -- os políticos).

        Todas essas saídas  imaginárias, para nós brasileiros, tinham algo em comum. É o ataque à política e aos políticos, tornados bodes expiatórios de crises mais profundas das sociedades implicadas. O resultado de todos esses movimentos foi o recrudescimento do fascismo, da violência e das ameaças à democracia.

        Tomemos o caso da Itália. A "Operação Mãos Limpas" foi uma investigação judicial de grande alcance que visava a esclarecer casos de corrupção durante a década de 1990, em conseqüência do escândalo do Banco Ambrosiano em 1982, que envolvia a Máfia, o Banco do Vaticano e a loja maçônica P2. A Operação "Mane Puliti" levou ao fim da Primeira República Italiana e à extinção de muitos partidos políticos.

       A imprensa da época estampou casos de alguns políticos e empresários que se suicidaram quando seu envolvimento com os crimes foi descoberto. Os principais partidos das coligações de centro que se sucediam no poder saíram enfraquecidos Não suportaram a blitz realizada pela classe média, a imprensa e a própria opinião pública mundial, escandalizada com a mistura do Vaticano e a Máfia. O alvo foi a classe política como um todo.

    A Operação alterou a correlação de forças na disputa política italiana. Todos os quatro partidos no governo em 1992 -- a Democracia Cristã, o Partido Socialista, o Social Democrata e o Liberal-- desapareceram em seguida. O Partido Democrático da Esquerda (um mix de PCI e Socialistas), o Partido Republicano e o Movimento Social Italiano (neofascista) foram os únicos grupos de expressão nacional que sobreviveram. O único a manter o próprio nome foi o Partido Republicano.

    Algo semelhante pode estar ocorrendo no Brasil em decorrência da tempestade moralista e anti-política promovida pela Nova Direita surgida em 2013, aquela que vaiou e xingou Dilma nos estádios de futebol, e reforçada pelos seus aliados nos partidos e na mídia que queriam vencer as eleições a qualquer custo.

    Na Itália, a Operação foi um sucesso ou um fracasso? Na medida em que desqualificou os políticos, já que este era seu objetivo, foi um estrondoso sucesso. Enquanto exaltou os empresários, dando novos rumos à sociedade civil, foi ainda um espetacular sucesso de crítica e de público. Não por acaso os italianos foram buscar na figura de um empresário, Silvio Berlusconi, o dirigente mais importante de duas décadas. Só que esse empresário levou junto com ele ao poder, o Movimento Social Italiano,herança de Mussolini e a racista e violenta Liga Lombarda. O fascismo, enfim.

     Na Venezuela, a nova direita contra Chaves resultou num golpe de Estado fracassado em 11 de abril de 2002, liderado por um empresário e dado justamente para aniquilar com a classe política, no caso bolivariana. A primeira atitude do curto governo "empresarial" venezuelano (durou três dias) foi uma amostra do que seria: aboliu o Congresso e a Constituição, que não eram, na época, sequer bolivarianos.

    A lógica desses movimentos moralistas para expulsar os políticos é simples: valoriza-se em contrapartida o empresariado e, em conseqüência, os grupos de ultra-direita de mentalidade fascista, cujos propósitos finais são eliminar os políticos e, junto, a democracia. Estes atingem com freqüência o poder, que não querem devolver.

    O perigo real e imediato que o Brasil corre não está num possível golpe. O perigo é a difusão e crescimento de um movimento nas classes médias sintetizado numa palavra naquele cartaz,  erguido por aquela jovem mulher  ignorante talvez do passado ditatorial recente: a  "faxina", pedida aos militares. Essa é a palavra de ordem da nova direita, que não quer saber de reforma política democrática.

     

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

UMA DEMOCRACIA DE ESPECTADORES


                                 
                                                                                   Reinaldo Lobo*

 

     A cada quatro anos, temos o breve direito de escolher livremente.  Só no dia da eleição há liberdade de opção na democracia representativa. Depois, assistimos os outros governarem por nós. Mas, mesmo nesse dia , será que somos livres para escolher?

    A eleição já vem pré-marcada por decisões anteriores dos partidos, dos lobbies, das agências de propaganda, dos marqueteiros, dos interesses econômicos e políticos. As próprias pseudo-opções são predeterminadas pelas chefias partidárias e, muitas vezes, são vazias.

   Que são os chamados "programas" dos partidos políticos, hoje, no Brasil? No mais das vezes são colchas de retalhos dos resultados das pesquisas de opinião, das enquetes destinadas a sondar algumas preocupações do eleitorado e torná-las "propostas", como se atendessem à população. Em alguns outros casos, consistem em acomodações entre os partidos para  alianças temporárias.

   Os candidatos vêm embalados como um produto comercial que precisamos comprar para poder experimentar ou avaliar.

    Quando se levanta a questão da democracia hoje, trata-se sempre da democracia representativa, seja para elogiá-la ou para criticá-la. Mas não se avança mais que isso. Já no século XVIII, Rousseau a criticava dizendo sobre os ingleses que "eles só são livres no dia das eleições". Hoje, a situação não mudou muito, talvez tenha até piorado.

   A democracia contemporânea está organizada, concebida de tal modo que a participação dos cidadãos seja de fato impossível -- como dizia um outro filósofo, Castoriadis. Depois, os partidos e os políticos ficam lastimando sua própria falta de representatividade. Eles mesmos falam muito do vazio da política , da crise da representação e da pequena participação do povo na democracia atual.

    Dentro do regime atual, os cidadãos podem, de fato, fazer muito pouco. Quase nada, a não ser votar no dia da eleição ou protestar nas ruas. Há uma permanente alienação que é estrutural, pela forma do regime. Não é provocada apenas pelo fato de vivermos em sociedades que são verdadeiros convites ao alheamento, ao consumo desenfreado, ao prazer imediatista e à estupidificação promovida pelos meios de comunicação. Vivemos em sociedades viciadas em superficialidades e na privatização da vida, isto é, na retirada dos cidadãos da esfera pública para confiná-los nos espaços na frente do aparelho de TV, nas indústrias e nos escritórios ou, no melhor dos casos, nas academias de ginástica ou nos shows de entretenimento. Não é por acaso,  que vivemos em "sociedades de lobbies e hobbies", no dizer da Castoriadis. Isto, em países como os da Europa ou nos EUA. Nos mais pobres, há lobbies, mas poucos hobbies.

     Nos tempos de eleições, as questões que se apresentam para a coletividade parecem muitas vezes abstratas para o cidadão.Sem compreendê-las, ele acha muitas vezes que sua exclusão das decisões é inevitável.

    É a ilusão da "expertise", a miragem tecnicista. Mas não se fala nas decisões absurdas tomadas pelos peritos sobre o confisco da poupança do dinheiro dos cidadãos, sob o governo Collor, que resultaram apenas em mais crise e em inflação de 80 por cento ao mês. Não se fala da opção por uma estrada como a Transamazônica que, além de devastar as florestas, não levou a lugar nenhum.    

    Existem hoje peritos capazes ou em vias de modificar o genoma humano. Vamos deixar que eles decidam sobre isso sozinhos?--perguntou Castoriadis.

   O fato é que os "técnicos" ou tecnocratas estão quase sempre divididos , não são eles que decidem. Quando os dirigentes políticos querem que uma "perícia" vá em certo sentido, encontram sempre especialistas para produzirem um relatório coerente.

    É difícil acreditar que , num plebiscito, o povo dos Estados Unidos aprovaria a fabricação dos "drones" para usá-los como arma contra populações indefesas, a menos que esse povo estivesse manipulado de tal modo pela mídia, como na "guerra ao terror". Essa idéia só poderia sair originalmente da cabeça de engenheiros a serviço dos militares do governo norte-americano.

   Mesmo que seja possível falar em relevância da escolha eleitoral -- em casos como o da atual eleição no Brasil, em que questões essenciais serão decididas no domingo e onde haja diferença considerável entre as duas opções propostas-- não há dúvida de que a chamada democracia representativa precisa ser revista. Mesmo que seja a menos ruim que temos, como diziam Churchill e outros. E não se trata apenas de propor uma "democracia participativa" como têm feito o PT e algumas lideranças cristãs, sobretudo católicas.

   É preciso ter a coragem de defender uma desmontagem do sistema representativo típico, a democracia dos espectadores.. E de propor a  democracia direta, na qual o povo decida ao longo de todo o processo do período republicano.

   Essa forma direta de governo é possível de executar nos tempos dos meios de comunicação interativos e agregadores. Para isso, será necessário remover uma série de obstáculos, a começar por aqueles impostos pelos partidos políticos e pela resistência conservadora à própria democracia.

   Se o regime democrático é o "do povo, pelo povo e para o povo", por que será que exatamente ele, o povo, não pode decidir de perto o que lhe interessa, seja por meio de  referendos, plebiscitos, grupos de pressão,  de decisões e de sugestões, grupos de intervenções ou organizações de base e de bairro?

 

*Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot. com

  

    

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

SEGUNDO TURNO


 

 

                                                             Reinaldo Lobo*

 

 A maior parte das análises sobre o primeiro e o segundo turnos das eleições presidenciais negligencia o papel da imprensa e dos meios de comunicação. Na verdade, nega, conscientemente ou não, essa participação.

Os colunistas políticos dão por certo que a “realidade” que descrevem corresponde aos fatos e não aos fatos como são narrados e construídos. A mídia está totalmente implicada no trabalho de esculpir esses artifícios, ainda que as ocorrências, efetivamente, tenham uma mistura de manipulação própria da política e uma boa dose de acaso. A mídia fala, no entanto, do interior da realidade que habita e que ela mesma ajudou a criar.

 Todos sabem que o acidente que matou o candidato Eduardo Campos – o Acaso-- quase liquidou também a candidatura de Aécio Neves. Mas, assim que Marina Silva saiu da obscuridade de candidata a vice,passou a  ser inflada e mimada pelos chamados “formadores de opinião”, em geral instalados na imprensa mais conservadora do País.

Era a “anti-Dilma” por excelência. Os mercados, a bolsa, a imprensa e até os norte-americanos festejaram a possível retirada do PT do poder, com o consequente fim almejado da política desenvolvimentista, da distribuição de renda e da política externa independente, visando a um realinhamento quase total com os EUA.

   A ressurreição na reta final do primeiro turno de Aécio-- um neoliberal--, muda, paradoxalmente,tudo de novo.Aécio defende com mais frieza quasetudo o que o lançamento de Marina prometia, mas o quadro politico mudou.

Será um pouco mais fácil para Dilma conseguir a transferência de votos de Marina Silva do que seria conquistar os votos dos eleitores de Aécio Neves. Isso apesar da acachapante derrota de Dilma e do PT em São Paulo. Os eleitores de Marina são um misto de pobres, trabalhadores, jovens estudantes e intelectuais de mente mais aberta, além do contingente de classe média que migrou do tucano para a ecologista da “Nova Política”, seguindo a mídia e afetado pelo impacto emocional dodia 13 agosto, quando houve o acidente aéreo.

  Os eleitores típicos de Aécio, que se parecem um pouco com ele, acreditam no capitalismo como a via régia para o sucesso e odeiam o PT inclusivo e distributivista.  Dificilmente migrariam para a candidatura da presidenta.  Mas, por outro lado, é mais complicado enfrentar o candidato tucano fortalecido pelo impulso que recebeu com a votação ascendente no primeiro turno e com a paridade que terá no horário eleitoral (fiftyXfifty). Além disso,vai para o combate com previsível agressividade e com apoio suplementar da mídia, que provavelmente será maciço.

   Como Aécio estava na lanterna das pesquisas, foi poupado de críticas intensivas e severas. Na verdade, foi ele quem bombardeou Marina e Dilma com uma saraivada de denúncias. Agora que ressuscitou como Lázaro da morte, vai enfrentar na TV e nos debates o tiroteio petista destinado a devolvê-lo ao túmulo político tucano. Nessa fase, porém, Aécio deverá receber também o estímulo de verbas de campanha e apoio das empresas que o haviam abandonado quando ocupava o terceiro lugar.

    A desvantagem principal que Dilma terá nesta segunda fase da disputa eleitoral será a manipulação por parte da mídia conservadora. Já nas reportagens e comentários das apurações, a TV mostrou o espetáculo da participação ostensiva da opinião subjetiva dos comentadores. Muitos torciam abertamente por Aécio. Na Rede Globo, a alegria era geral a cada avanço de Aécio sobre Marina e a cada aproximação de Dilma. Havia quase uma festa “cívica”.

 É possível ressalvarcerta objetividade de alguns jornalistas, casos individuais, mas o grosso da tropa alinhava-se ostensivamente nas fileiras da campanha de Aécio. Não faltaram sequer aqueles que se esmeravam em dar dicas e conselhos à campanha de Aécio sobre a melhor estratégia para derrotar Dilma. Não faziam análises ou interpretações dos fatos, mas esforçavam-se para criá-los ou participar deles.

    Um dos primeiros jornalistas e intelectuais sérios que discutiram o fenômeno da “opinião publica” moderna, Walter Lippmann, já apontava em 1922 o perigo para a democracia constituído pela manipulação do pensamento das massas. Dizia que a opinião pública se forma por meio de estereótipos e de preconceitos, inevitáveis em todas as sociedades. Só que essas formações ideológicas podem ser corrigidas ou sedimentadas pelos meios de comunicação.

   Lippmann não hesitava,inclusive, em apontar uma espécie de “tirania” na manipulação dos fatos pela sua distorção subjetiva, quando ela é maciça e controlada por monopólios de poder, seja dos governos ou da iniciativa privada.

   A imprensa -- ou pelo menos a parte mais conservadora dela-- costuma apontar nos seus editoriais e artigos o poder do Estado como o único risco para a liberdade de expressão e de pensamento. Mas sempre esquece o poder econômico. Contudo, ele estará ativo como nunca no segundo turno da eleição. Não se pode esquecer que a grande imprensa brasileira é monopólio de algumas famílias, contando ainda com participação cada vez maior, hoje, do capital estrangeiro.

  Alguns desses grupos não hesitam em chamar esta eleição de “guerra” ou de cruzada “para extinguir o PT” da cena política. Daqui a alguns dias, saberemos não só quem vence, mas quais serão os sobreviventes dessa guerra de vida ou morte.

 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A VIOLÊNCIA QUOTIDIANA


                                     

 

                                                                    Reinaldo Lobo*

 

       Um idoso entra no banco , dirige-se ao caixa, retira um dinheiro e pede  que o funcionário troque uma nota de 50 reais, para que ele possa pagar sua condução. O rapaz do caixa responde: "Ah, não vai ser possível, pois minha gaveta não tem trocado". Diz isso com um certo prazer em negar o pedido, e despacha o idoso.

      Logo depois, chega uma mulher elegantemente vestida paga suas contas com cartão e pede para retirar algo do seu dinheiro em trocados, "para ter na carteira". O homem do caixa não hesita em lhe fornecer o que pede.

      Parece uma cena banal do quotidiano, quase ninguém aparentemente notou a diferença de reação do funcionário do caixa aos dois clientes, nem o seu prazer em negar um pedido a quem não apreciou ou teve algum "motivo"  para rejeitar.

    O que ocorreu foi o sadismo implícito na vida social, no dia-a-dia. A pessoa do idoso provocou desprezo no jovem que atendia na caixa do banco. Este não hesitou em demonstrar.

     O desprezo é o contrário do respeito e do reconhecimento, elementos emocionais e éticos de que todos os seres humanos têm necessidade na vida social e pessoal. O não-reconhecimento, o desprezo explícito pelo outro, é tanto maior quanto for o preconceito ou a indiferença pela pessoa que se apresenta em uma situação pública.

    O idoso é um "invisível", assim como os pobres, os negros , os mal-vestidos e os que não exibam os signos da superioridade social. O objeto da violência sádica -- dizia,aliás, o próprio Marquês de Sade em "Justine"-- é tão mais visado quanto mais se aproxima da condição de "coisa". Quando um corpo é reduzido a essa situação não é exatamente erotizado, no sentido explícito do termo, mas transformado em alvo de um poder. Às vezes, um pequeno poder, como no caso do rapaz no caixa do banco.

   O prazer sádico nestas situações, como em muitas outras, não está no exercício direto e visível da sexualidade, mas na imposição de uma submissão e de uma humilhação.  O gozo está justamente na indiferença em relação ao outro, no seu uso, na  manipulação do objeto , a partir de uma posição de "triunfo" maníaco e de superioridade narcísica.

   O desprezo é parte integrante do jogo sádico em inúmeras situações da vida. É bastante conhecida a antiga relação entre as "patroas" e "empregadas" na privacidade doméstica. Hoje, isso mudou um pouco, pois essa mão-de-obra é mais escassa e as domésticas ganharam  cidadania. Passaram a ter mais força porque são úteis, não porque se tornaram respeitadas.

   A raiva e a desconsideração com que certas donas de casa de classe média ou ricas ainda se referem às suas auxiliares revelam todo o distanciamento e a coisificação a que as submetem na esfera psíquica e moral.  Com freqüência, falam dessas pessoas como  "'elas' são isso... 'elas' são aquilo..." , ou seja, uma espécie estranha de gente.

    É até possível avaliarmos que uma parte da raiva seja diretamente proporcional à dependência dessas patroas em relação ao trabalho de sua empregada doméstica. Esse trabalho é o que garante o tempo livre da patroa, seu lazer ou mesmo outras atividades. Lembra muito a relação dialética entre o senhor e o escravo.

     Todos já tivemos algum grau de contato com a invisibilidade social dos maltrapilhos ou dos mendigos nas ruas de uma cidade grande. Também sabemos como uma sociedade branca promove a "invisibilização" dos negros, seja pela simples exclusão da cena social relevante , seja pela atribuição de atividades marginais e trabalhos subalternos.

     Os exemplos não faltam, mas todos ocorrem porque vivemos numa "sociedade do desprezo", como diz o filósofo social Axel Honneth. Inspirado nas teorias de Adorno e Habermas, bem como na  psicanálise -- sobretudo  na teoria das relações  de objeto, em Winnicott e também na concepção de sujeito de Lacan --, esse autor mostra que a "invisibilização" é um processo ativo, no qual se evidencia o desprezo. É um tipo de comportamento em relação a uma pessoa como se ela não estivesse presente ou existisse, e que, para essa pessoa, torna-se muito real.

      A visibilidade, ao contrário, significa reconhecer as características relevantes de uma pessoa.  Dessa maneira, Honneth apresenta a possibilidade de identificação individual ou singular como primeira forma de "conhecimento" . Esse momento é um ato social, uma vez que o indivíduo envolvido sabe de sua invisibilidade pela falta de reações específicas por parte dos demais. Já a  visibilidade o coloca num pólo da interação. Além disso, a falta de atos expressivos de visibilidade também pode ser percebida pelo resto das pessoas presentes.

    É possível falar, portanto, de uma invisibilidade social, o que conduz a uma diferenciação entre "conhecer" e "reconhecer".  Conhecer é a identificação não-pública de uma pessoa, enquanto reconhecer diz respeito à apreciação como ato público. 

     De um modo semelhante como ocorre nos bebês, segundo as contribuições de Winnicott e de Daniel Stern, os adultos também mostram abertamente sinais de que foram aprovados socialmente -- e sentem necessidade disso. Uma prova reside em considerar o sentimento que se produz nos casos em que se nega  essa aprovação a uma pessoa.

     A violência quotidiana, aparentemente "não traumática", consiste justamente em negar o reconhecimento a um ser humano. Já todas as expressões de aprovação, por outro lado, são interpretadas como um sinal, simbolicamente sintético, de toda uma série de disposições que fazem referência a um conjunto de atuações que se pode esperar legitimamente numa interação, como, por exemplo, ser tratado respeitosamente.

     A luta pelo reconhecimento começa na infância e percorre toda a vida dos indivíduos, atingindo inclusive as formas mais sofisticadas de cidadania e participação. Quando um trabalhador faz reivindicações e aspira melhores condições de vida, isso envolve a busca do reconhecimento de sua significância e do seu lugar na sociedade. Está buscando reconhecimento pelos outros e por parte de si mesmo -- auto-reconhecimento.

     A  busca pelo reconhecimento, que começa de forma elementar por meio do amor pessoal, evolui também para idéias sobre solidariedade e respeito, que situam as pessoas em diferentes esferas de relacionamento, com as diferentes formas de atuações que  podem ser legitimamente esperadas.

    A invisibilidade social é justamente  a negação desse reconhecimento. Por isso mesmo, é não só a indução de um trauma, mas também uma espécie de crime do dia-a-dia.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

UMA NOVA DEMOCRACIA


                                         

 

                                                                        Reinaldo Lobo*

 

    Não confundam "nova democracia" com "nova política", invenção eleitoreira de uma candidata à presidência. Por nova democracia, refiro-me a uma espécie de movimento espontâneo surgido, sobretudo, entre os jovens, cuja  fundação pode ser datada de junho de 2013.

    As manifestações de rua foram inequívocas quando pediam uma constituinte exclusiva para a Reforma Política e vieram culminar na coleta de assinaturas com essa finalidade. A coleta acaba de atingir meio milhão de adeptos e pretende chegar a um milhão e meio.. O objetivo era e continua a ser conquistar a possibilidade de uma democracia mais direta,  com a  participação presencial do povo nas deliberações do espaço público.

    Ficou mais evidente do que nunca que existe uma nova geração política entre a juventude brasileira, bem diferente daquela de 1968, mas não menos interessada em mudar as estruturas institucionais do País. Sua meta é também a democracia, ou melhor, uma radicalização da democracia. O seu aperfeiçoamento.

    Aquela antiga leva de jovens de 68 comandou uma revolução cultural e, apesar de ser considerada derrotada e alienada pelos sociólogos que a chamaram de "geração do AI-5", tinha como meta uma revolução social e política que ía além das mudanças de costumes e de educação. Numa certa medida, fracassou.

    Foi uma geração que caiu numa espécie de luto e melancolia pelo projeto fraudado de socialismo com liberdade, que almejava ver a reforma da  União Soviética e dos países ditos socialistas. Aqueles jovens trombaram com o muro do "socialismo real" e, apesar das reformas da "glasnost" de Gorbatchov, confrontaram-se com a falência de todos os regimes do Leste Europeu e mesmo da Ásia.

    A "melancolia da esquerda" -- no dizer do filósofo Ernildo Stein-- foi uma espécie de doença psíquica que tomou conta daquela turma de 68, até, pelo menos, a chegada de uma onda esquerdista na América Latina, inaugurada com a eleição de Michele Bachelet , no Chile, e Lula, no Brasil. A esperança renasceu com esses novos projetos transformadores vindos, desta vez , do Sul.

     Mais moderada, participando de partidos e de eleições, essa esquerda veterana da guerrilha burocratizou-se e empurrou a nova juventude para a esquerda, às vezes, até a extrema esquerda e o anarquismo. Herdeira de uma cultura autoritária e do viés guerrilheiro nascido da Revolução Cubana, aquela  "velha juventude" de esquerda tinha um compromisso maior com a democracia social e muito menor com a democracia política. A democracia política era vista ,antes, como um instrumento tático, e não como uma estratégia de longo alcance institucional.

   Já a juventude atual deixou a melancolia para os integrantes mais velhos da esquerda, os "órfãos da utopia". Nem tinham do que se lamentar ou nenhum luto grave para elaborar. A revolução clássica, com suas barricadas e palavras de ordem, ficou no passado.

   Os que estão hoje na faixa dos vinte anos sabem de 68 de "ouvir dizer", nos aniversários da Ditadura, nos livros escolares e no movimento das Comissões pela Verdade, contra a tortura e o autoritarismo.

   Formada por blogueiros e tuiteiros, a nova juventude rebelde está enfastiada da velha politicagem que envolve barganhas e corrupção. Educada numa época pós-ditadura, conheceu sistemas de amizade tribal e eletrônica, além de ter desidealizado figuras de autoridade, como os pais e os professores. A educação contemporânea, conquistada em parte pela revolução cultural desencadeada em 1968, criou padrões de convivência no qual a discussão, o diálogo e a cooperação mútua são, pelo menos, divulgados, cantados em prosa e verso.

  Os jovens de hoje estão mais acostumados a relações de igualdade e a parcerias de colaboração entre semelhantes e iguais. Seus ídolos não são os políticos nem as propostas que possam ser manipuladas pelos líderes de partidos e autoridades instituídas. Toleram as diferenças, combatem o racismo  a homofobia, e consideram a revolução das mulheres um fato consumado e aceito há muito tempo. Sua política é levar a democracia a sério.

   É quase natural que essa nova safra de estudantes e jovens trabalhadores tenha uma inclinação mais libertária. Sua desconfiança é óbvia em relação à democracia baseada apenas em tripartição de poderes, sem participação popular direta, onde a representação política se descola dos representados e instaura lobbies de interesses e sistemas burocráticos.

    Daí, a esperança de uma reforma política vinda de fora do sistema representacional. A idéia é de uma constituinte que possa examinar o voto distrital ( pelo qual se controla melhor o parlamentar); a formação de conselhos de cidadãos (que possam vigiar e deliberar sobre o dinheiro público); a realização de plebiscitos (em questões que interessem diretamente ao povo);  a diminuição do número de partidos (verdadeiras cláusulas de barreira que impeçam as legendas de aluguel); talvez o parlamentarismo (que elimine o presidencialismo de coalizão, fonte de compra de parlamentares); a redução do número de parlamentares (evitando gastos com uma espécie de empreguismo de eleitos), etc.

    Qualquer que seja o presidente eleito em outubro ou novembro, não tenham dúvidas de que terá de se haver com  esse novo espírito político e com esse movimento salutar de renovação das estruturas institucionais. Muitos foram os que procuraram se apropriar das manifestações rebeldes de junho de 2013, mas ninguém conseguiu drená-las inteiramente a seu favor. Essa nova juventude não é melancólica; é alegre e cheia de energia. Só que não esquece a que veio e, provavelmente, não vai desistir de seu movimento.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

SOBRE A CORRUPÇÃO


                                      
                                                                          Reinaldo Lobo*

 

              Sempre que o assunto é corrupção, aponta-se o dedo para os políticos. É uma forma de simplificar demais e buscar bodes expiatórios. Corrupção é um tema mais complexo e envolve toda a sociedade onde ocorre. E existem explicações que nunca são consideradas no caso brasileiro.     

             Para começar, a sociedade brasileira é corrupta em vários graus, já a partir dos índices de exploração próprios do capitalismo: hiper-mais-valia na cidade e no campo, baixos salários em várias áreas, desigualdade na distribuição de recursos, trabalho escravo, prostituição, sobretudo entre mulheres de baixa renda e pouca escolaridade, exploração de menores, crimes do colarinho branco,  negociatas de grandes empresas, falências fraudulentas, sonegação de impostos e muitos outros sinais. No Brasil, é considerado "normal" uma empresa sonegar, caso contrário "não sobreviveria".

            Uma lenda bastante  difundida sustenta que a corrupção é um assunto exclusivo do Estado e da área pública. E, em conseqüência, do funcionalismo e da esfera política. Mentira das grossas. Grandes difusores de corrupção são também o empresariado e as grandes corporações privadas que constituem lobbies e utilizam "processos informais" para comprar os políticos e, assim, fazer valer seus interesses na esfera pública e decisória. Se não houvesse mercado, nenhum político chegaria ao ponto de pagar a manutenção da amante com dinheiro de empreiteiras, como naquele caso bem conhecido.

           Ora, dirão, por que os políticos aceitam esse tipo de atitude, uma vez que deveriam estar voltados para a representação de seus eleitores e para o bem público.  A resposta envolve dois olhares -- um para a História brasileira e outro para a realidade presente na sociedade.

          A visão histórica é bastante conhecida: o Estado brasileiro foi formado no patrimonialismo desde o Brasil Colônia; quem é dono do poder se acha dono das terras e das decisões patrimoniais; nascemos de capitanias hereditárias, onde o beneficiário das concessões estatais de Portugal eram líderes políticos e, ao mesmo tempo, latifundiários e senhores de escravos; etc.Toda essa tradição não morreu inteiramente e banalizou, por assim dizer, a corrupção e o sistema de favores.

       Não é preciso nem lembrar o quanto era corrupta a sociedade "malemolente" descrita por Gilberto Freyre em "Casa Grande e Senzala". Aos filhos dos ricos, tudo. Aos pobres e escravos, nada -- dando origem entre estes a  sistemas de malandragem,  trocas espúrias e até mesmo ao tráfico de todo tipo.

         Quanto à realidade presente, não podemos responder pela vida psíquica e o possível  viés psicopático de cada um dos envolvidos, mas existe um fator nada discutido entre nós que é a busca do reconhecimento. Quem é zero à esquerda deseja ardentemente "ser alguém" e os meios mais fáceis para isso são o poder e o dinheiro, pelo menos em uma sociedade como a nossa.

        A corrupção torna rapidamente aceita uma "pessoa" no consumo e nos sinais exteriores de riqueza, mesmo alguém remediado ou pobre que chegou a um cargo público -- pode ser fiscal de renda, oficial de justiça ou deputado.  Numa sociedade de massas, onde todos são anônimos e indiferenciados, o poder significante do dinheiro e do acesso a bens torna visível quem era invisível ou até desprezível.

       Um outro elemento importante é a dissolução dos valores em uma sociedade com muita mobilidade social e com pressa de desenvolvimento econômico.

      O Brasil, assim como outras sociedades latino americanas,  africanas e asiáticas, passou de país subdesenvolvido, agrário exportador, com um sistema tradicional e patriarcal de valores, para uma complexa rede de classes e massas postas dentro de um mundo de redes de comunicação e negócios. Tudo isso em poucas décadas.

      O processo de desenvolvimento dissolve antigas hierarquias e laços. Essa dissolução produz confusão e anomia. Daí, decorre a ânsia de ganhar o único ícone visível de distinção e organização aparente -- o poder do dinheiro (e o dinheiro do poder).

       O nosso Pais é muito grande, com população crescente, mas unificado por meios de comunicação que transmitem os valores do consumo em massa e da vida nas grandes cidades mais desenvolvidas, atingindo assim até os grotões, como se diz.  Pensando nisso, dá para imaginar o grau de confusão que acomete os corações e mentes brasileiros. Dá para explicar até por que algumas tribos indígenas remanescentes na Amazônia, que descobriram o valor do dinheiro "civilizado", passam a vender madeira extraída clandestinamente de suas próprias reservas, que deveriam ser as mais sustentáveis. De tutelados pelo Estado, de inocentes donos das florestas, passam a comerciantes ilegais que contrabandeiam madeira não certificada para a Inglaterra , o Canadá e vários outros países.

        Explicar a corrupção não a  justifica, obviamente. Mas colocá-la numa perspectiva histórico-sociológica ajuda a entender melhor o Pais que temos e desejamos mudar. Auxilia ainda a não nos sentirmos tão desprezíveis em relação aos países já altamente desenvolvidos, onde a corrupção existe, mas os índices são bem baixos. E a pensar : somos corruptos, mas essa doença pode passar com os remédios do desenvolvimento e da  justiça social.

* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogpot.com