quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

QUAL SOCIALISMO? (2)


 

 

                                                                             Reinaldo Lobo*

         A melhor solução para um problema nas ciências ditas "exatas" é geralmente a fórmula mais simples e elegante.  Já nas questões sociais e históricas o melhor método é o que dá conta da complexidade, sem reduzir os fenômenos ao menor elemento.

         A dialética marxista tinha a vantagem de tentar abarcar o conjunto dos fatos histórico-sociais, suas contradições e conflitos, sem o reducionismo inicial.  O defeito da teoria de Marx era, porém, o seu excessivo racionalismo e sua inclinação para o positivismo. O resultado final foram as chamadas "leis da História" que tudo explicavam pelo determinismo econômico e o "motor" da luta de classes. No extremo da vulgata marxista, o que não fosse sintetizado nos termos dessas leis -- Stálin aperfeiçoou o modelo, com suas "quatro leis da dialética"-- estava literalmente fora da realidade.

        Essa visão promove o fechamento do pensamento sobre fenômenos complexos, exatamente o contrário do que o propósito inicial de Marx parecia indicar. Há um elemento de indeterminação, de acaso e de instabilidade na História que Hegel havia entrevisto, mas o marxismo ocultou de muitas maneiras. É impossível diagnosticar precisamente o que se passa no plano histórico-social, até porque o observador está vivendo no meio do que é preciso registrar. Mais difícil ainda é fazer prognósticos ou adivinhar o futuro.

      É possível elucidar uma práxis, um processo, analisar o curso dos acontecimentos e até fazer ilações provisórias, embora estas não possam ser tomadas como certezas e, menos ainda, leis. Quem poderia dizer  que a Revolução Francesa desembocaria em Napoleão Bonaparte, ou que  a Revolução norte-americana de independência redundaria num imperialismo expansionista mais refinado do que o colonialismo, ou que a libertária União dos Sovietes desse no regime que deu?

      Neste campo complexo, podemos falar, no máximo, de projetos. Esses projetos podem ser discernidos no tempo e no espaço, conter intenções e esperanças diversas, princípios diferentes -- e podem realizar-se ou não.

      A vantagem que os autores pós-marxistas vêem no cerne do projeto democrático é, em grande parte, justamente a sua abertura. Desde a Grécia Antiga, a democracia, com todas as suas limitações, tende a sustentar um ambiente humano aberto aos eventos ...humanos. A democracia é falível e flexível, pode facilitar a realização de projetos de transformação, ainda que o seu método encontre muita resistência e, com freqüência, seja posto de lado em favor dos vários tipos de autoritarismo. Há um componente de criação na democracia que pode dar origem ao inédito, àquilo que é radicalmente novo.

         Um desses autores pós-marxistas, Claude Lefort, costumava dizer que uma das características da democracia é a capacidade de criar novos direitos. A pressão de baixo para cima, contra o poder, pode dar origem a mudanças importantes nas sociedades minimamente democráticas.

         Se tomarmos o exemplo norte-americano, fica fácil entender o que esse filósofo queria dizer. O povo dos Estados Unidos, lá por volta dos anos 60 do século passado, teve uma pequena revolução nas esferas dos costumes , das raças  e dos direitos civis. Minorias e mesmo grandes maiorias, como as mulheres discriminadas, conquistaram novos direitos e mudaram o panorama da vida social norte-americana. Essas mudanças espalharam-se pelo mundo afora e hoje constituem uma política.

         Uma outra característica do projeto democrático é que contém dentro dele o núcleo de um outro projeto -- o de autonomia humana, como demonstrou a obra de outro autor, Cornelius Castoriadis. A autonomia não é entendida aqui no sentido do liberalismo, como uma essência natural humana ou no mesmo sentido prático de Kant, como a realização da lei moral. A autonomia castoriadiana é concebida na mesma direção de Freud, como uma conquista. Não é algo que se dá naturalmente, nem pré-existente na essência humana. É o resultado de um processo em que o sujeito se apropria reflexivamente de si mesmo, desalienando-se e livrando-se progressivamente da heteronomia.

         Autonomia  é a capacidade de fazer a própria lei. Assemelha-se -- sem se reduzir a-- à independência que o paciente da psicanálise vai adquirindo progressivamente, à medida em que se torna mais lúcido e capaz de auto-observação. A autonomia pressupõe um mínimo necessário de auto-reflexão lúcida e a conseqüente liberdade de se dar a própria lei. Sair da heteronomia é sair do manto da lei do outro.

       Não significa ignorar o outro ou realizar qualquer desejo, mas conhecer a responsabilidade da auto-limitação. Não se trata de psicologismo nem de atender à Lei do Desejo indiscriminadamente, mas de considerar inclusive a esfera institucional e social.

      A decisão sempre será , ao mesmo tempo, singular e coletiva -- será subjetiva, mas estará também ligada a uma situação coletiva e social-histórica. Em psicanálise , longe de uma "ética do desejo privatizado"-- dirá Castoriadis--, o projeto de autonomia é posto em circulação como indissociavelmente individual e social. Isto quer dizer que "o problema da ação subjetiva e da liberdade, na medida em que o ser humano é um ser social, é posta em jogo em sua relação com a liberdade dos outros". Em suma , a atividade livre de um sujeito não pode ser senão aquela que visa a liberdade dos outros.

      É por isso que Castoriadis costumava dizer que a psicanálise tem, no essencial, o mesmo objeto que a política: a autonomia dos seres humanos. (Falava da verdadeira política, não do ofício de um Aécio Neves, de um Michel Temer, ou mesmo de uma Dilma, filhos de uma sociedade heterônoma.) Ninguém pode viver sozinho, e também não pode eliminar os outros. A pergunta é : como posso ser livre se sou obrigado a viver em uma sociedade em que a lei é determinada por alguém outro ?

     A única resposta não utópica e não delirante-- diria Castoriadis-- é : ter a possibilidade efetiva de participar em pé de igualdade com qualquer outra pessoa da formação e da aplicação da lei. Esta é a verdadeira significação da democracia. "Uma sociedade autônoma só é possível se  for formada por indivíduos autônomos. E indivíduos autônomos só podem existir por meio e numa sociedade autônoma." A educação para a autonomia faz parte desse projeto. Houve "picos" de emergência do projeto de autonomia na História : na Grécia clássica, nas revoluções americana e francesa, na Rússia de 1917, na revolução húngara de 1956 , na "brecha" de Maio de 1968 e, agora, na Primavera Árabe.

     O projeto de uma sociedade autônoma deve ser a busca de uma conquista de maior liberdade em todas as esferas sociais e institucionais, e pode resultar em uma revolução. A radicalização da democracia pode levar a uma exigência maior de mudanças institucionais e a revolução não se dá só na esfera da transformação econômica. Movimentos sociais, como o MST, propõem a criação de novas instituições no interior da sociedade.

     Revolução é a autotransformação e recriação de todas as instituições.É, portanto, a autotransformação, de baixo para acima, de toda a sociedade.Pode ocorrer.Pode...  
 

         

        *Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.   

        

       

 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

QUAL SOCIALISMO? (1)


                                                                 Reinaldo Lobo*

 

   Uma pergunta que me fazem com freqüência, seja por provocação ideológica ou simples curiosidade, é: qual seria o modelo adequado de socialismo preconizado para o Brasil?  A minha resposta é bem simples: nenhum.

   A interrogação é quase sempre  uma armadilha preparada por aqueles que professam uma ideologia anti-socialista ou, se quiserem, anticomunista. Ou seja, uma pegadinha sectária vinda da direita, formulada pelos que pregam o individualismo possessivo -- o capitalismo e a propriedade privada -- como caminho único para a organização da sociedade.

   A questão capciosa visa a obrigar o interlocutor a optar entre os vários exemplos históricos que reclamam o rótulo de socialistas ou , então, a refugiar-se na desprezada abstração da utopia.

   O menu que oferecem é Cuba, União Soviética, Venezuela "bolivariana", China convertida ao mercado, Coréia do Norte ou ditaduras nacional-capitalistas da África, do Oriente Médio ou da Ásia.  Nem chegam a falar de países como a Suécia, a Dinamarca ou a Noruega, pois estes são reivindicados como pertencentes ao capitalismo puro, ainda que estejam num regime "socializante" de Estado do Bem-Estar social.

    O resto é quimera vã -- dizem. O que sobra? Resposta invariável : o capitalismo, a sociedade de consumo intensivo e crescimento "ilimitado", nas suas versões norte-americana e européia. Não é o regime perfeito --argumentam--, mas é o que existe de efetivo, real, ao qual devemos nos resignar  e com o qual teremos de conviver.

    A própria palavra socialismo deve ser usada com cuidado, pois está muito desgastada  após décadas de social democracia e de socialismo europeus, oportunistas e camaleônicos, muito mais comprometidos, na verdade, com a exploração, a neutralização da luta de classes e a manutenção do status quo capitalista, do que com qualquer avanço social.

   Quanto ao socialismo comunista, também bastante oportunista nos seus partidos no Ocidente, ganhou definitivamente a pecha de totalitarismo pela experiência repressiva, de exploração de classes e antidemocrática do Leste Europeu.

    O que resta, então, para a chamada "ala progressista"?

    Para alguns antigos socialistas sérios, cultos e respeitáveis o que restou foi um conjunto de valores éticos e de princípios políticos. Uma forma de encarar o mundo e de lutar para torná-lo mais justo. Algo assim como faz a esquerda norte-americana, que sabe que não vai tomar o poder a curto ou a médio prazo, mas tenta permanentemente escolher o presidente "menos ruim", e fazer número no Congresso e criar grupos de pressão para que se concretizem os direitos humanos e sociais, protegendo os trabalhadores, o povo pobre, as mulheres e as minorias discriminadas. A esquerda dos EUA "vive o presente" e não traça objetivos futuros muito claros, ainda que tenha um papel relevante no combate à discriminação, ao racismo e na conquista de direitos civis.

     É uma posição respeitável, porém , só parcialmente verdadeira e eficaz. Ao fim e ao cabo, tudo continua dentro do modo de produção capitalista e uns poucos permanecem  proprietários  dos meios de produção. O problema do capitalismo, dizia George Bernard Shaw, é que tem poucos capitalistas.

      Sobre o Brasil, é preciso dizer, em primeiro lugar, que não existe modelo formulado de antemão para a situação de um país específico. Só a práxis concreta desse povo poderá determinar a trajetória de construção de uma sociedade, principalmente se pretendermos que seja política e socialmente democrática.

    Chega a ser meio ridículo quando dizem, tanto à direita quanto à esquerda, que Cuba, por exemplo, deveria ser um modelo de sociedade socialista para os brasileiros. Por mais semelhanças culturais ou antropológicas  existam entre os dois povos, há  diferenças - históricas, geopolíticas e geográficas- abissais que impedem a convergência sob um mesmo regime. Além disso, nunca se soube de uma revolução de determinado país que desse certo em outro.

    A derrota foi inevitável quando a esquerda brasileira quis imitar os "focos no campo" dos cubanos entre nós, apenas porque havia uma ditadura aqui, evocando a ditadura que houve lá sob o regime de Batista, nos anos 40 e 50 do século XX..  As classes dirigentes brasileiras já haviam aprendido com toda a experiência histórica cubana e sabiam exatamente como evitar a guerrilha. Aqui, e mesmo na Bolívia e outras regiões. Che Guevara, revolucionário desprendido e corajoso, foi uma inspiração moral para a juventude latino-americana e mesmo mundial nos anos 60, mas jamais conseguiu replicar a revolução cubana. E nem poderia.

    Uma revolução é um fenômeno de destruição e criação que emerge com certa espontaneidade imprevisível e surpreende as sociedades mais ou menos estratificadas. Cada uma vem de um jeito diferente e gera sociedades e instituições diversas. Não fórmula pronta de revolução, assim como não existe uma sociedade exatamente igual à outra.

    Existem autores que pensaram e pensam essas questões e que são pós-marxistas, isto é,  incluem Marx em seu repertório teórico e prático, mas vão além e, de certa forma, superam o marxismo ou não o consideram o único pensamento possível para a esquerda. São os casos, por exemplo, de pensadores como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, na França, Axel Honneth, Jürgen Habermas e outros herdeiros da Escola de Frankfurt, na Alemanha.

        Todos têm em comum uma certa crítica radical tanto do capitalismo predatório quanto do marxismo  do universo totalitário dos regimes comunistas. O mais importante é que todos, vindos de tradições filosóficas relativamente diferentes, utilizam a chave da democracia para repensar o projeto de emancipação social, política e humana.

    O mais curioso é que todos também aposentaram a palavra socialismo, que prestou grandes serviços ao movimento operário e revolucionário, mas que hoje é inoperante e desnecessária. Até porque declarar-se "socialista" tem tantos significados que , ao final, não tem significado consistente algum.

   Já repensar a democracia e levantar a questão do poder e de sua distribuição como centro de qualquer projeto transformador, é um exercício necessário num mundo onde praticamente todos os países reivindicam rótulo de democráticos. Nunca houve tantos governos e regimes que se intitulam "democracias" na face da terra, mas já são escassos os que se apropriam e exibem, como sua definição e identidade, a palavra "socialismo".

(Prossegue no dia 17/12/2014)

 

* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.