quinta-feira, 26 de março de 2015

O SISTEMA CORRUPTO


                                           

                                                                          Reinaldo Lobo*

 

           O preconceito, o ódio e a propaganda maciça pelos meios de comunicação impedem muitas pessoas de enxergar as nuances, os detalhes e as diferenças no cenário e na estrutura política do País. O campo de visão fica nublado,  excludente. Escapam fenômenos mais amplos, que, às vezes, nem estão ocultos, mas à vista de todos. È o caso, a meu ver, do Sistema Empresarial-Burocrático-Político corrupto que transcende o governo atual, o PT e os nomes habituais escolhidos pela mídia como espantalhos. O Sistema é permanente, vem de longe -- o que não absolve os eventuais corruptos atuais. Só explica melhor sua existência.

            Esse Sistema é um modo de funcionamento subjacente quase rotineiro da política nacional, onde existem eleições formais sempre a serviço desse circuito que envolve empreiteiras, firmas terceirizadas pelas empreiteiras, vários tipos de empresas privadas, burocratas de autarquias, de empresas estatais, partidos e políticos. Às vezes, chega a juízes ou a membros do Judiciário. Envolve caixa-dois dos partidos, sem dúvida, mas não se restringe isso. É um modo de funcionamento institucionalizado, ainda que mais ou menos informal e não explicitado publicamente.

         Há uma mistura de contribuições legais e de propinas que formam as célebres "sobras de campanha", termo usado pelos políticos para designar o dinheiro que vai parar nos seus bolsos, na compra de obras de arte ou de apartamentos para lavagem e outras aquisições aparentemente legais. Uma vez, conheci um marchand de arte que se dizia "especializado em clientes políticos", que compravam obras a granel, contanto que fossem valiosas no mercado de arte e pudessem ser vendidas depois por um preço compatível ao investimento ou mesmo maior. Os tais clientes do marchand trocavam obras entre si, a fim de um lavar o dinheiro do outro.

         Um banqueiro conhecido, Andrade Vieira, dono do falecido Bamerindus,  denunciou que na campanha de Fernando Henrique Cardoso em 1994, houve uma "sobra" de cerca de 300 milhões de reais (calculados a posteriori em reais) cujo destino permaneceria desconhecido até hoje. Insinuou, então, que o dinheiro passou por Paris e estaria na Suíça ou em algum outro "paraíso fiscal". Enquanto estava amigo de FHC Andrade Vieira foi um dos coordenadores de sua campanha. Ficou inimigo quando o seu Banco não teve a esperada retribuição pelo empenho, quase faliu e foi vendido barato para o Banco de Boston. Houve processos sobre o assunto, mas acabaram engavetados antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal.

       Por esse exemplo fortuito, fica fácil entender como funciona o Sistema: empresas investem num político e esperam plena retribuição. Quando não vem, passam para outro ou denunciam as operações suspeitas do seu predileto anterior. Em muitas ocasiões investem nos políticos dos dois lados rivais, como do PSDB e do PT, para cobrar depois de quem vencer.

       Como o alvo atual é Dilma ou o PT, passa despercebido da opinião pública em geral que o Sistema é muito mais forte, presente e tem um futuro pela frente, com ou sem Dilma ou o PT. Vai além deles e de quaisquer outros partidos, pois funciona como um círculo vicioso acionado pelo imaginário capitalista e pela ânsia de mobilidade social.

       No imaginário capitalista, existe uma crença profunda de que só quem tem dinheiro consegue o reconhecimento e tem valor . Sem dinheiro, o individuo é quase nada perante a máquina da economia e da sociedade. Quanto mais dinheiro, mais reconhecimento. Isso gera um desespero, quase uma neurose , pela ascensão rápida. Quando o sujeito tem poder, o acesso ao dinheiro é mais "fácil", basta burlar um pouco as regras, pois parece absolutamente normal no seio do Sistema.

     Num País em crescimento, qualquer brecha para pular de uma classe social para outra do topo da pirâmide torna-se atraente para quem está imbuído da ambição, da convivência com poderosos empresários e está em posição de decidir lucros altos para essas empresas. Além disso, ainda que não se tenha feito a conta, Brasília seguramente tem em circulação um dos maiores números mundiais de lobistas de corporações privadas, querendo influir no Legislativo, no Judiciário e no Executivo.

      Os lobistas são uma peça fundamental do Sistema. Levam e trazem informações privilegiadas e o combustível necessário para fazer tudo andar : as maletas. Ficou famoso o caso dos Bancos que queriam mudar a lei da habitação e os critérios de financiamento do antigo BNH, logo no início do governo Collor. Alguns dos próprios donos de grandes bancos, vários com ramificações em Nova York e na Europa, teriam levado pessoalmente as maletas cheias de dinheiro, dólares, para membros do Judiciário e do Governo Federal da época. O anfitrião teria sido Paulo César Farias, o lobista mor e mentor na carreira política do atual presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha.

     A Lei foi corrigida a  favor dos bancos, os preços dos financiamentos imobiliários subiram astronomicamente e quem paga até hoje é o consumidor. Assim caminha o Sistema.

     Um paradoxo atual é que todo o movimento de manifestações contra a corrupção, visando primariamente ao PT e à queda da presidente Dilma, pode estar reforçando o núcleo político do Sistema que luta para sobreviver a qualquer mudança nacional, como tem sobrevivido.

     O escândalo da Petrobrás expôs, pela primeira vez na nossa História,  as empreiteiras mais poderosas do País, que formam o núcleo econômico e financeiro do Sistema. Outro pólo são os burocratas da Petrobrás, como Paulo Roberto Costa, figura modelar cuja carreira iniciou na empresa estatal em 1978, ganhou força e direção em 1995, e veio a público revelado como tomador de propinas em 2013/14. Esse e outros estão na cadeia, pelo menos até receberam o prêmio pela delação. Mas o pólo político, que envolve inúmeros partidos, inclusive três grandes como PSDB,  PMDB e PT ainda está relativamente preservado. Uma parte dele, sobretudo dos dois primeiros, tem sido até fortalecida à medida em que engrossa a campanha exclusivista contra o PT, como se não compusesse a principal, mais forte e mais antiga peça do Sistema.

      Com o apoio explicito da mídia conservadora, personagens como Eduardo Cunha, presidente da Câmara, e Renan Calheiros, do Senado, despontam como verdadeiras lideranças de oposição, como se quisessem a oportunidade de substituir Dilma na presidência ou mesmo alijar outros adversários de qualquer influência legítima no poder.  Há um sério risco de o País mudar mais uma vez para continuar até pior do que está, ficando completamente a serviço de uma "nova" força política e tudo voltar ao normal. O normal é o que todos os envolvidos querem de volta, a volta silenciosa e rotineira do Sistema.

segunda-feira, 16 de março de 2015

"Pise suavemente, pois você está pisando nos meus sonhos". 

                                                                              W.B.Yeats

quarta-feira, 11 de março de 2015

O DIA DO ÓDIO


   

                                                            Reinaldo Lobo*

 

         A idéia dos "Dois minutos de ódio" é uma das criações mais célebres de "1984", o livro de George Orwell, o inventor do totalitário "Big Brother". O autor colocava seu herói na situação de ser obrigado a participar de uma histeria organizada, na qual se elegia um inimigo de "Oceânia", sua terra imaginária, e todos se punham a dirigir contra ele, por um breve instante,  seu ódio, seus gritos,insultos e vitupérios obscenos. Aliviavam assim, por deslocamento,  suas próprias decepções, frustrações, desejos inconfessáveis e impulsos agressivos. Era uma forma de manipular as multidões. Sempre havia uma boa razão para a violência contra um objetivo selecionado.

       O manipulador em "1984' era o Estado, na forma do Grande Irmão, mas uma lição revelada nessa obra é que várias forças anônimas podem explorar esse controle das massas. A própria publicidade comercial já utilizou esse recurso. O cinema apresenta vários exemplos de catarse coletiva com os seus filmes sobre distopias, reinos imaginários terríficos e invasões de marcianos e de zumbis. Odiar um inimigo assim, e até matá-lo, torna-se "normal". Mas a invocação da participação direta da platéia, como no tempo dos gladiadores, foi uma elaboração artística de Orwell.

    A originalidade de "1984", que muitos apresentaram como uma versão do "Leviatã", de Thomas Hobbes, está mais em ser uma distopia auto-reflexiva, onde se denuncia o seu próprio método constitutivo. É a denúncia do totalitarismo real pela metáfora exacerbada produzida pela imaginação. O resultado mostra que a realidade chega a ser pior do que a ficção.

    A desumanização do ser humano, sua redução a uma peça de engrenagem política e sua submissão pelo medo, são as características principais desse processo e sua exposição é a sua própria denúncia. Detalhe: não importa que a iniciativa parta do Estado ou de qualquer outra organização.

   O estímulo ao ódio neste momento do Brasil  tem várias origens e , já que se fala tanto que é preciso assumir responsabilidades pela crise vivida, os meios de comunicação deveriam responsabilizar-se por uma boa parte dessa situação. O clima de ódio contra a presidente Dilma tem-se tornado um "evento" midiático de grandes proporções, desde pelo menos aquele episódio do ataque obsceno de parte da torcida no campo de futebol, às vésperas da Copa do Mundo.

    As TVs, as rádios , as revistas e os jornais --a "velha mídia", enfim-- não param de "espetaculizar" e ressaltar o papel de alvo da presidente. Não faltam os que comparam a sua situação com a do ex-presidente Collor, que renunciou após um movimento de rua que poderia levá-lo ao impeachment , e com certeza levaria.

     Um paradoxo da situação atual, já assinalado por muitos, é que os ataques a Dilma ganham força justamente no momento em que ela atendeu aos pedidos da oposição e de boa parte das classes médias, convocando o ministro Joaquim Levy, vindo da oposição , para executar um programa de correção de curso na economia, por meio dos ajustes fiscais.

     Bastaria esse gesto para acalmar os setores insatisfeitos das multidões e a imprensa conservadora, pois seria um reconhecimento dos erros do governo. Mas isso não é possível porque as multidões que batem panelas e xingam a presidente foram insufladas há tanto tempo que desejam vê-la  humilhada e, no final, derrotada politicamente. Quem expressa bem isso é um truculento líder da oposição, senador Aloísio Nunes Ferreira, ex- esquerdista e ex-caixa da ALN de Carlos Marighela, quando diz que é preciso ver "Dilma sangrar até o fim". Alega que não quer impeachment, mas insufla a população a reinvidicá-lo nas ruas.

     Além de tudo, com a alta do dólar, ameaças de mais impostos da "austeridade" por elas pedida, as classes médias vêem bloqueados seus sonhos de consumo, viagens e equiparação às camadas mais ricas. A frustração é inevitável.

       O dia 15 próximo, para o qual estão marcadas manifestações contra o governo, será um dia de ódio. Essa emoção é muito eficaz em política, pois é da própria estrutura do fenômeno político um certo grau de paranóia e de cisão entre, de um lado, os amigos e, do outro, os inimigos.As distorções de percepção provocadas pelo ódio, um sentimento que inunda a vida psíquica e anula o aparelho para pensar, podem ser manipuladas ao ponto de uma mentira passar por verdade e acusações abstratas ou virtuais virarem realidades concretas.

      Hannah Arendt, a célebre  pensadora, dizia que uma das virtudes de Maquiavel for ter compreendido que, em política, tudo se passa no campo das aparências.  O que parece, é.  O mundo é feito do que aparece e quem souber tirar melhor proveito disso ganha o prêmio, que é o poder.  Não importa quem a presidente Dilma verdadeiramente é, nem as suas intenções profundas.  A questão é como está sendo percebida pelas multidões. E isso é o que os grupos de extrema direita, da "nova direita" e da oposição querem manipular, ao organizarem as manifestações do dia 15.

    Ao contrário dos eventos de junho de 2013, este Dia do Ódio não será espontâneo, mas minuciosamente programado. A organização prévia não impede que boa parte da multidão, se é que haverá multidão, expresse sentimentos reais de repúdio e de agressão.

     O objetivo dos "minutos de ódio" em "1984" era transformar o ódio particular em ódio coletivo. Cada participante de uma manifestação tem seus motivos privados para odiar e, muitas vezes, nada tem a ver com Dilma e a política.  A personagem do livro de Orwell, Winston Smith, odiava ser impedido de manter relações sexuais com Júlia, a jovem colega atraente, mas dirigia toda sua hostilidade ao inimigo da "Eurásia".  Tal ódio particular, esclareceu Orwell, era o objetivo do puritanismo reinante em "Oceânia", terra de calúnias que se tornavam denúncias e de denúncias que eram abafadas ou distorcidas contra quem as fazia.

        Os bons sentimentos não fazem muito sucesso em política. Há exceções: Nelson Mandela, Gandhi, Martin Luther King  lideraram revoluções em nome do amor. Foram consagrados simbolicamente por isso, mas dois deles tiveram finais bem infelizes. O amor em política exige algo como a santidade e o martírio.
          Os motivos de quem vai protestar democraticamente no dia 15 podem ser legítimos, abstratos, virtuais ou psiquicamente particulares, podem até ser por "amor ao Brasil". Mas o efeito do evento será bem real e, sobretudo, destrutivo num momento de uma crise principalmente política. Será como jogar gasolina para apagar o fogo. As consequências são imprevisíveis. E não serão "dois minutos de ódio", mas o próprio Dia do Ódio.