quarta-feira, 17 de junho de 2015

ÓDIO À DEMOCRACIA

   

                                                       Reinaldo Lobo*

      Certa vez, o coronel Erasmo Dias, ícone da Ditadura e símbolo do anti-comunismo, foi visitar a Rússia nos tempos do regime soviético. Muitos ficaram surpresos, primeiro, por ele aceitar o convite russo e, depois, pelos seus comentários na volta da viagem. O coronel do Exército, secretário de Segurança Pública de SP, repressor das manifestações estudantis, invasor violento da PUC, caçador fracassado de guerrilheiros no Vale do Ribeira, torturador confesso, terror dos comunistas, fez rasgados elogios  à antiga URSS e ao seu sistema de poder:
      "Lá não tem greves, impera a ordem, há disciplina, os trabalhadores não se rebelam, os governantes são obedecidos e a  violação da Lei é punida com o máximo rigor. Acho um exemplo para os ocidentais".
     Se era ironia, foi involuntária. O coronel pouco sutil pareceu mesmo encantado com o poder comunista, mais pelos seus defeitos totalitários do que por suas possíveis qualidades.
     O que ele detestava mesmo  era a democracia, suas incertezas e suas inseguranças.
     As classes dirigentes brasileiras, das quais o coronel era um representante extremado, parecem ter uma relação, no mínimo, ambivalente com o regime democrático, isto é, de amor e de ódio. Parece haver sobretudo uma paixão pela ordem, de preferência com "progresso" econômico. É  uma nostalgia da noção autoritária que Oliveira Vianna e outros atribuíam às necessidades impostas pelo "caráter" do povo brasileiro. Não é por acaso que nossa História apresenta uma constante de autoritarismo pontilhada por alguns momentos de democracia.
     Daí o paradoxo de termos também, ao lado do elogio à democracia e da crítica verbal do totalitarismo na mídia, o freqüente recurso à força, ao Estado de Sítio e de exceção, além da sobrevivência, hoje, de instrumentos da Ditadura como a PM, o pau de arara e as várias formas de delação, inclusive a "premiada", típicas de regimes "fortes".
     Se alguém imaginava que, terminada a Ditadura, teríamos uma democracia plena, acertou em parte. Temos agora quase três décadas de regime democrático no País, sempre claudicante, com limites e problemas óbvios, mas com instituições relativamente sólidas.
     Existe no ar, contudo, uma espécie de tentação totalitária entre as classes dirigentes e mesmo as classes médias, com a emergência de uma Nova Direita que se misturou às manifestações populares de 2013. Somada aos resíduos da Ditadura que permanecem nos hábitos e até em determinados itens da legislação --como as medidas provisórias e um congresso de perfil ultra- conservador nos segmentos religiosos fundamentalistas--, essa tentação pode materializar-se em perigo real e imediato.
      A ideologia instituída e as pregações são  democráticas, mas as realidades, inclusive a derivada da crise econômica, pressionam as classes dirigentes na direção daquilo que Giorgio Agamben diagnosticou como o lado não formulado juridicamente no Ocidente, que é o estado de exceção.
    É como se democracia brasileira exigisse um "suplemento de força", pois, em si mesma , não garantiria sequer a sua própria continuidade como ordem democrática.
       As próprias práticas jurídicas levadas a cabo pelo ex-ministro do Supremo, Joaquim Barbosa, revelam esse ânimo beligerante de transcender o âmbito da Lei para usar "mão forte" contra a suposta ação de corruptos, resgatando até um velho recurso  alemão usado em Nuremberg, em 1945, para imputar os nazistas -- o conceito judicial do "domínio do fato"-- com fins políticos. O mesmo vale para o juiz Sérgio Moro, atual herói da ação exemplar no julgamento da "operação Lava Jato". É como se os caminhos legais de uma democracia "frágil" precisassem ser complementados por uma interpretação particular da Lei, por juristas de visão politizada e  relativamente autoritária.
       No quadro mundial, a situação não é muito diferente, ainda que existam especificidades. Um conhecido filósofo francês , Jacques Rancière, publicou um pequeno livro instigante-- "La Haine de la Democratie"-- em que discute a questão, lembrando que ainda ontem os discursos oficiais opunham as virtudes da democracia ao horror totalitário, ao mesmo tempo em que revolucionários recusavam sua aparência em nome de uma democracia real a vir no futuro.
      Os tempos mudaram. Enquanto certos governos se esforçam em exportar a democracia pela força das armas, os intelectuais europeus e norte-americanos -- alguns de esquerda e outros "novos conservadores" -- não param de detectar sem cessar os sintomas funestos do "individualismo democrático" e os estragos do "igualitarismo" destrutivo dos valores coletivos, forjando um novo totalitarismo e conduzindo a humanidade ao suicídio.
     Essa mutação ideológica, diz Rancière, não se explica só pelo quadro de crise econômica nem pela administração mundial da riqueza. Remonta ao escândalo primordial que sempre representou um "governo do povo" e será preciso reexaminar as ligações complexas entre democracia, representação, república e política. Dessa maneira é que se tornará possível enfrentar o ódio atual à democracia e resgatar o amor por trás das declarações de amor a ela. Significa revelar a potência subversiva sempre nova  e sempre ameaçada da idéia de democracia.

       

quarta-feira, 3 de junho de 2015

BRASIL PARA ESTUDANTES



                                                               Reinaldo Lobo*

       Seria altamente recomendável que todo estudante de Ciência Política do planeta fizesse um estágio no Brasil. Treinaria melhor do que em qualquer outro lugar a pesquisa científica em meio à maior confusão real de uma política imaginária. Entenderia também um pouco de estética e saberia o significado das palavras surrealismo e realismo mágico. E, finalmente, cairia na real.
     Aprenderia por que nossa opinião pública acha "natural", por cinismo e cansaço, ter uma personagem como Eduardo Cunha ditando as regras na Câmara dos Deputados, mudando a constituição, passando por cima de cláusulas pétreas e realizando "hábeis" manobras de última hora para aprovar leis que só facilitam o corporativismo dos políticos, a corrupção e os maus costumes.O sujeito chegou a propor pensão especial para as esposas dos parlamentares, passagens de graça e outras mordomias, sem que a imprensa "falada e escrita" deixasse de elogiá-lo como um "político habilidoso" ou de silenciar, abafando os fatos. E, isso,  justamente num momento em que há uma onda moralista em todo o País.
       Nosso estudante virtual de Ciência Política, se fosse esperto, descobriria que Eduardo Cunha virou herói da mídia e das classes dirigentes nacionais porque tem duas funções específicas e temporárias : (1.) atazanar a vida da presidente Dilma e  (2.) fazer o serviço sujo que os líderes e representantes das classes dirigentes não podem ou temem fazer.
       Seria difícil entender como é que  um membro do partido (PMDB) que integra a coligação da base governista se tornou um oposicionista ao governo, mas tudo se esclareceria se verificasse que os deputados e senadores brasileiros não respeitam necessariamente seus partidos e alianças, exceto quando convém. Isso ocorre não só porque o eleitorado escolhe pessoas, não partidos -- o que é uma verdade. Mas a razão principal é que cada deputado ou senador representa um bloco de interesses como se fossem lobistas de empresas e não parlamentares. É a turma do balcão de negócios.
        Quanto ao deputado Cunha, símbolo do momento brasileiro atual, mereceria um estudo à parte. Faz um jogo triplo: defende, no plano mais imediato, o "baixo clero" -- os deputados mais irrisórios e medíocres do Congresso, que o elegeram para o cargo em troca de dinheiro e promessas de mordomias.  Em segundo lugar, joga para a oposição de direita, sua função primordial, que consiste em fazer passar uma legislação que tire direitos dos trabalhadores e favoreça o empresariado. Em terceiro, chantageia o governo, que cede cargos e vantagens para o seu grupo , afim de não dissolver demais a base governista.
        Um cientista político vindo da Europa, onde existe parlamentarismo, teria dificuldade de entender essas contradições, que formam a essência de um presidencialismo de coalizão-- isto é, de trocas e cambalachos por debaixo do pano, sem acordo político explícito entre partidos. Já era complicado nos tempos de Sarney, Itamar,Collor e  FHC, mas o quadro se  agrava hoje, quando o governo inclui até pontos-de-vista da oposição na sua gestão.
        É quase impossível  compreender por  que um governo como o da presidente Dilma, eleito pela esquerda e com um programa social distributivista, chamou uma espécie de gestor de mercado, Joaquim Levy, para exercer os ajustes fiscais e cortes no orçamento, inaugurando a "austeridade" e a revisão das leis trabalhistas. Até mesmo a Direita Nacional se pergunta o que faz o tecnocrata Levy num governo "de esquerda".
       A complexa dialética do governo Dilma é inexplicável até certo ponto; no entanto, algo faz sentido quando se pensa na fraqueza interna da coalizão que o sustenta e no recuo presidencial diante de sua própria fragilidade eleitoral. O PT ganhou a eleição para a presidência, é verdade, mas quase não levou. Foi tamanha a pressão do eleitorado oposicionista-- cuja dificuldade de fazer o luto pela derrota temos assinalado aqui há muito tempo--, que Dilma foi encurralada e forçada a fazer grandes concessões. O anti-comunismo artificial e as denúncias de corrupção armaram um clima de derrota para os vitoriosos.  Mal comparando, diante da ameaça de um golpe "legal", como aquele do Paraguai, Dilma foi obrigada a adotar uma atitude semelhante à que João Goulart  se rendeu em 1961, quando os militares queriam sua cabeça. Ele recuou aceitando uma solução de compromisso  parlamentarista, aceitando um político submisso às classes dirigentes, Tancredo Neves, na função de primeiro ministro.
      Hoje, esse papel está dividido entre Michel Temer, Eduardo Cunha, Renan Calheiros e o próprio Joaquim Levy, que faz o trabalho "técnico" para as classe dominantes. O governo foi "terceirizado" para a fina flor do Sistema Corrupto, por um lado, e , por outro, para a própria oposição de centro direita.
      Confuso? Opaco? Sem dúvida. O estudante de ciência política precisaria saber que o Brasil é assim . O que vigora no final é o acordo pelo alto, entre os figurões do poder e do dinheiro.
     A mídia dos grupos dominantes se encarrega de enaltecer quem interessa,  de esconder a corrupção dos poderosos de sempre e de enfraquecer quem pode ameaçar o Sistema. Aliás, para a imprensa dominante não existem classes sociais no País, apenas frações de mercado. E o Norte e Nordeste não existem: se inauguram uma grande montadora de automóveis e um estaleiro em Pernambuco, que lança dois navios enormes de fabricação nacional, a grande  imprensa paulista e carioca limita-se a lamentar a crise econômica "sem precedentes". O Nordeste mudou, mas continua invisível. O Brasil está mudando, mas ninguém quer notar.
      Como se vê , o Brasil é um vasto campo a ser melhor decifrado pela pesquisa,  não só em muitas teses.  Daria vários compêndios de Ciência Política.