quarta-feira, 2 de março de 2016

COMO CURAR UM FANÁTICO?



                                                                           Reinaldo Lobo*

     O fanático é um virtuoso. Moralmente perfeito, um puro. Não quer saber de contaminação. Está acima do mal, é portador exclusivo do bem. Conhece a verdade, anda de nariz para o alto. Só disfarça quando teme que descubram suas certezas mais secretas. Sério, extremamente sério, não brinca. No máximo, é sarcástico com as falhas e fraquezas alheias. Condena o outro com muita facilidade, não tolera deslizes. Apresenta-se como juiz da humanidade. É um forte candidato ao terrorismo. 
     Nos anos 70, vários jovens assim pareciam livres e soltos, mas continham uma crença na purificação geral e foram parar nas Brigadas Vermelhas, nos Baader Meinhoff, no Setembro Negro e outros grupos. Conheci nessa época um casal que tinha a meta de educar ele próprio os filhos em casa, sem contato com as escolas instituídas, sem tomar Coca Cola ou assistir TV. Não conseguiram realizar sua utopia, é claro. Hoje, suprema ironia, um membro da dupla está na extrema direita, ostentando o mesmo brilho fanático, sangue nos olhos e a mesma superioridade ética e crítica dos tempos de esquerda guerrilheira.
     O fanatismo provoca exclusão entre extremos e estreiteza. Acho que uma boa receita de antídoto contra essa doença arrogante é fornecida por Amós Oz, esse excelente escritor israelense que já deveria ter levado o Prêmio Nobel, no seu livro recente, que acaba de ser traduzido pela Companhias das Letras: “Como Curar Um Fanático”.
     Dono de uma escrita fina e superior, de um senso de humor e de uma compaixão pelos seres humanos raros hoje em dia, esse sabra que passeia às quatro da manhã pelo deserto para curar as feridas causadas por uma era de terror e incompreensão, ri quando ouve verdades definitivas ditas por políticos de extrema direita em Israel ou líderes palestinos cegos pela crendice.
     Ri silenciosamente, diz ele, “como as pedras do deserto e as estrelas sobre o parque da cidade” quando um político usa palavras do tipo “para todo o sempre”, “por toda a eternidade”, “jamais, em um milhão de anos”, para descrever a percepção tola que tem do tempo.
     Esse é um modelo de linguagem e de visão generalizante, messiânica, que conduz ao fanatismo. Amós Oz propõe que se pare de falar em “guerra santa” para descrever o conflito entre israelenses e palestinos. Sugere que os dois lados se sentem a uma mesa para resolver a simples “questão imobiliária” que divide a região. Sim, porque o problema na Palestina é uma questão imobiliária, ainda que recheada de significados históricos, políticos e religiosos.
     O mais difícil é remover o vocabulário e seus significados inflacionados, a não ser que se mude a percepção e a perspectiva.  Para que qualquer solução seja possível é preciso um movimento psíquico de ambos os lados, que consiste em se perguntar o que o outro pensa e deseja, colocar-se no lugar do outro, na pele do outro.
      É impossível não se identificar com os argumentos humanos de Oz, ao afirmar: quando, depois do passeio matinal no deserto, “volto para casa, ainda antes do nascer do sol, preparo uma xícara de café, sento à minha escrivaninha e começo a me fazer perguntas. Não pergunto a que ponto está chegando o mundo, ou qual será o caminho certo a seguir. Eu me pergunto: “E se eu fosse ele? E se eu fosse ela? O que sentiria, desejaria, temeria e esperaria?  Do que teria vergonha, esperando que ninguém jamais soubesse? ”
       Para curar um fanático, sustenta ele, é necessário começar se colocando no lugar dele, considerar o outro como um igual, conhecer seus desejos e necessidades.
       Pessoalmente, identifico-me bastante com Oz, guardadas as devidas proporções, quando escreve:
       “Meu trabalho consiste em me pôr no lugar de muitas pessoas. Ou mesmo estar em suas peles. A força que me impele é a curiosidade. Eu fui uma criança curiosa. Quase toda criança é curiosa. Mas pouca gente continua curiosa em sua idade adulta e em sua velhice. Agora, todos sabemos que a curiosidade é condição necessária, até mesmo a primeira das condições, para todo trabalho intelectual ou científico. Mas quero acrescentar que em minha opinião a curiosidade também é uma virtude moral. Uma pessoa interessada é uma pessoa um pouco melhor, um progenitor melhor, um parceiro, vizinho e colega melhor do que uma pessoa não curiosa. Um amante melhor também”.
       Ao situar a curiosidade como um valor ético, Oz está apresentando o primeiro antídoto contra o fanatismo. O segundo melhor remédio é o humor. Fanáticos não possuem senso de humor e raramente são curiosos. O humor destrói as estruturas do fanatismo, e a curiosidade, diz ele, agride o fanatismo “ao trazer à baila o risco da aventura, questionando, e às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas”.
       Ele sugere algo que vale não só para os indivíduos, mas para a sociedade. Sociedades alegres e curiosas podem ser menos fanáticas do que sistemas fechados e sisudos, geralmente baseados em crenças. As ditaduras não têm senso de humor.  Basta verificar como funcionam as extremas direitas, daquelas dos tempos de Pinochet, o nazismo, os regimes dos aiatolás, o Estado Islâmico e as ortodoxias.
        Comparem o clima “decadente” das democracias europeias, por exemplo, com a Coréia do Norte. O humorismo dos ditadores é involuntário. São ridículos em sua prepotência. Chaplin ajudou os Aliados a ganharem a Segunda Guerra ao pintar com seu humor cheio de humanismo o regime e a personalidade de Hitler, desmontando-os com mais eficácia do que qualquer discurso ideológico.
        O pensar, que está aliado obviamente à curiosidade, deve ser acrescentado aos antídotos contra o fanatismo. A racionalidade, que instaura as dúvidas, não deve ser desprezada como um remédio eficiente. Um bom raciocínio ofende, dizia Stendhal. Os arrogantes e estúpidos se irritam com o pensamento, mas sucumbem diante dele. Podem ser conduzidos a uma maior flexibilidade e a soluções negociadas para situações que parecem extremas e impossíveis de compromisso.
         O Brasil assiste neste momento a uma ascensão do fanático. Ele cresce com a onda de moralismo e de radicalização que vem com essa guerra jurídica pela limpeza política. A imitação cabocla da Operação Mãos Limpas italiana traz com ela, além de alguns atos de justiça, a figura do fanático vingador e perseguidor. O País está cheio de vestais e de almas puras. Esse é um ovo da serpente.

         Até a Bíblia nos adverte contra a “ira dos justos”, pois é a pior de todas. A Inquisição da própria Igreja, a caça às bruxas, o macarthismo foram momentos históricos que tiveram os seus Savonarolas da superioridade moral e da seriedade. Todos escondiam propósitos de poder puro e simples. Desconfio que, às notícias das gazetas sensacionalistas e às sentenças dos juízes da honra alheia, seja preferível ler o heterodoxo Amós Oz.