quarta-feira, 25 de maio de 2016

UM BRILHO FANÁTICO


                                                                Reinaldo Lobo*

      Se você votou nos tucanos, gosta de Miami e de bons vinhos, critica o governo Lula ou Dilma, tem uma renda acima da média brasileira, então está imediatamente rotulado: é um (a) “coxinha”. Logo, é alguém cheio de preconceitos, elitista e só vê corrupção política nos outros.
     Se votou em petistas, acha que a desigualdade social e a má distribuição de renda são alguns dos problemas mais graves do País, então você não escapa: é um (a) “petralha”. Logo, deve fazer vistas grossas para a corrupção política, a subversão e, talvez, seja até um suspeito de conivência “com tudo isso que está aí”
      Os estereótipos são um resultado da radicalização da cena social, da disputa política e do ódio de classes no Brasil. Os rótulos tornaram-se verdadeiros palavrões usados para ofender e paralisar o adversário numa discussão ou troca de mensagens eletrônicas. Falar mal de alguém pode incluir “não passa de um (a) petralha” ou, do outro lado, de “um (a) coxinha”.
    Há uma forte conotação moral, de acusação e de desprezo nesses comentários. Sem falar, é claro, na onda de fundamentalismo político-religioso que invadiu o país com a chegada do neopentecostalismo e dos cultos evangélicos. Quem for, digamos, liberal e apoiar a descriminalização da maconha ou do aborto será imediatamente condenado ao fogo dos infernos.
    O fanatismo é o fenômeno implícito na rotulação e nos xingamentos. Ninguém se pergunta, nessas horas, se um petista gosta de bons vinhos ou se um eleitor de tucanos pode ter preocupações sociais. Vale tudo para “destruir” o adversário que, a essa altura, já virou um inimigo.
     Como tenho dito aqui e em outros lugares, o fanatismo tem cura. Não me refiro a mudar as condições políticas, culturais ou sociais de um país, ainda que tenham um peso considerável no assunto. Falo do aspecto ético e psíquico.
      É possível ver uma diferença entre o discurso e a ação fanática. O terrorista, um modelo padrão, age. Os que apenas discutem falam, gesticulam, gritam, mas somente de forma radical. No entanto, o discurso fanático tem consequências, estimula o ódio, dá um péssimo exemplo e se difunde como ideologia mais ou menos dominante.
      É fácil reconhecer uma pessoa fanática. Tem, via de regra, um entusiasmo militante, um forte brilho no olhar, uma obstinação e uma persistência nos argumentos e crenças. Falta ao fanático a curiosidade pelo outro e a curiosidade em geral. Ele já sabe. Detém um saber próprio e superior, uma verdade que não precisa ser oferecida, mas imposta ao outro.
     O fanático não quer convencer, quer salvar a todos nós. Conhece o que a humanidade precisa, chega a ser um altruísta dedicado à espécie humana. Os terroristas das Torres Gêmeas, de Paris e da Bélgica queriam dar um exemplo ao mundo, como se só eles soubessem o que é a verdade e que ela seria aplicável a qualquer cultura.
       O fanático, como sabemos, é um puro e um moralista extremo. O mundo está errado, todos os problemas estão projetados fora. O outro precisa ser salvo de si mesmo, pois se contaminou com os erros e a imoralidade.
      Do ponto de vista psíquico, é fácil dizer que o fanático é um louco. Só que isso seria mais um xingamento apenas, passível de igual uso fanático. Todos nós estamos sujeitos a momentos esquizo-paranóides, isto é, quando estamos de algum modo ameaçados, perseguidos, divididos e despejamos no outro as culpas pelo que está acontecendo. Vemos isso nas crianças de modo fácil, nos casais que brigam e em nós mesmos, de vez em quando. Falta ao fanático livrar-se disso que, nele, já se tornou um sistema de funcionamento. Escapa-lhe a capacidade de se preocupar e deprimir pelos erros e falhas humanos, a que está sujeito como todo mundo.
      Para tentar curar um fanático mal-humorado e sério – pois ele é o protótipo da falta de humor e da seriedade--, é preciso colocar-se dentro do seu universo de discurso, ver as coisas de seu ponto de vista e questioná-las por dentro. Empatizar com ele não é fácil, mas necessário. Assim como não se diz a um louco que ele não é Napoleão, pois vai retrucar que você é o Almirante Nelson e quer derrota-lo em Waterloo, também não se provoca um fanático.
       Um bom exemplo é dado por um especialista no assunto, o escritor israelense Amós Oz, um guia para a discussão moral do fanatismo.  Ele conta que um amigo seu, um romancista chamado Sammy Michael, de esquerda como ele, pegou um táxi e durante o percurso o motorista estava proferindo o costumeiro discurso sobre como é “imprescindível para nós, judeus, que se matem todos os árabes. Sammy o escutava e, em vez de gritar “Que homem horrível você é. Você é um nazista, um fascista? ”, ele decidiu lidar com aquilo de modo diferente.
      Ele perguntou ao motorista: “E quem você acha que deveria matar os árabes?” O motorista não hesitou: “Quem você acha? Nós! Os judeus israelenses! Temos de fazer isso! Não há alternativa, veja só o que eles estão fazendo conosco todo dia! ”  Então Sammy perguntou: “Mas quem exatamente você acha que devia se encarregar da tarefa: A polícia? Ou o Exército? Ou talvez os bombeiros? Ou as equipes médicas? Quem deve realizar o trabalho? ” O motorista coçou a cabeça e disse: “Acho que devia ser dividido de maneira equitativa entre todos nós, cada um devia matar alguns deles”. O escritor Sammy, ainda jogando o jogo, disse: “O.K., suponha que você seja designado para algum bloco de residências em sua cidade, Haifa, e você bater de porta em porta, ou tocar a campainha e perguntar: ‘Perdão, senhor, ou com licença, senhora, por acaso é árabe? ’ E se a resposta for sim, você atira nele ou nela. Aí você termina o serviço em seu bloco e está pronto para ir para casa, mas assim que se vira você em algum lugar num quarto andar de seu bloco o choro de um bebê. Você volta para atirar no bebê? Sim ou não? ”, perguntou Sammy. Houve um momento de silêncio e então o motorista disse a Sammy Michael: “Sabe, você é um homem muito cruel”.
      Essa história, dirá Amós Oz, é muito significativa porque revela que existe alguma coisa na natureza de um fanático que é sentimental e ao mesmo tempo carece de imaginação. Se você ouvir alguém dizendo que um “petralha” ou um “coxinha” precisa ser morto, faça a experiência de injetar nessa pessoa alguma imaginação e, talvez, ela consiga conversar de modo menos estúpido.

     Dá alguma esperança, não é fácil nem rápido, mas, quem sabe?, seja possível ajudar um fanático abrindo-lhe a mente para a imaginação, a curiosidade e a indagação.

terça-feira, 17 de maio de 2016

MANHAS E ARTIMANHAS

       
                                                                                Reinaldo Lobo

         Invocar Maquiavel nesse contexto de “manhas e artimanhas” em que vivemos, segundo a expressão de Dilma Rousseff, pode parecer o mesmo que convocar o Diabo para apagar o fogo do inferno. Mas é preciso chamá-lo a depor.
        Esse autor incompreendido foi o primeiro grande cientista político da modernidade ocidental. Personagem intrigante e ambíguo, porém genial. Um extremo realista. Próprio para entender o imbróglio do Brasil atual.
       Era um republicano confesso que, aparentemente, fingia só dar conselhos a príncipes. No entanto, sabia do que falava. Segundo ele, às vezes um príncipe precisa imitar os animais. Quando a maneira de agir moral dos homens não é eficaz para vencer a luta política é necessário recorrer ao modo das feras. O governante precisa saber qual dos animais imitar.
      O conselho famoso de Maquiavel é que o líder se sairá melhor se aprender a imitar “tanto a raposa quanto o leão”, combinando os ideais morais de um ser humano corajoso e combativo com as artes bestiais da força e da fraude. Inspirado em imperadores romanos, nosso autor sugere que um bom governante, digno possuidor da “virtú”, deve ter as qualidades de “um ferocíssimo leão e de uma astutíssima raposa”, e por isso será “temido e respeitado por todos”. 
     Vem daí, provavelmente, a expressão “raposa” para se referir a um tipo de político experiente e esperto, às vezes um verdadeiro velhaco. Um Eduardo Cunha, por exemplo, mas também um Tancredo Neves e um Ulysses Guimarães, que, além das qualidades “animais”, tinham a coragem e a grandeza de bons seres humanos.
     Dilma padeceu da falta de algumas dessas qualidades. Tem coragem e persistência. Em alguns momentos parece até ter uma força leonina, telúrica e indomável. Mas faltaram-lhe a habilidade política, que lhe permitiria negociar, e a astúcia da raposa. O pouco de jogo, de esperteza, apareceu tarde demais e, aparentemente, não foi sequer de sua autoria.
     Confiar em José Eduardo Cardoso, de resto um brilhante advogado e professor de Direito, para as derradeiras cartadas políticas foi o mesmo que apostar no gesto de um Waldir Maranhão para sinalizar os vícios do impeachment.
    É verdade que a própria Dilma não deve ter esperado mais do que isso: uma sinalização para o mundo, o STF e a História de que o processo de impeachment foi “sujo, hipócrita e mentiroso”. Todos sabemos que estava sendo preparado há anos, desde que ela venceu a segunda eleição. Teve apoio dos jornais, TV e revistas, da mídia conservadora, dos blogs pagos por empresários, do uso de instrumentos jurídicos e de alguns juízes. Movimentos de massa capitalizados pela Fiesp e outras organizações patronais não escondiam o seu objetivo.
     Não é possível, contudo, que Dilma não percebesse para onde se dirigia a opinião pública, mesmo que a julgasse manipulada. Não se pode crer que se apoiasse apenas no seu “dispositivo petista”, com Cardoso, Jacques Wagner e Aloísio Mercadante, nem em pequenos partidos como o PC do B e nos movimentos sociais. Tampouco poderia contar só com o suporte das empresas que patrocinaram sua campanha ou com os ministros fisiológicos que teve que engolir na coalizão chamada de “base governista”.
      Tudo indica que Dilma não sabia mesmo o que fazer, em meio a tantas e astutas raposas. Recorreu ao ex-presidente Lula, mas depois das gravações do juiz Moro, das reações do Supremo e, principalmente, do verdadeiro chefe da República de Curitiba, o procurador Janot, tudo ficou mais difícil. O próprio recurso a Lula já foi um dos muitos erros ao enfrentar a trama da politização da Justiça.
       Entre as raposas, estava Michel Temer, que vinha conspirando há muito tempo, fazendo reuniões com empresários e políticos da oposição para armar o seu bote. A aliança de Temer com Eduardo Cunha, preparando a Câmara dos Deputados e, ao mesmo tempo, manobrando o PMDB para deixar o governo acelerou o processo de impeachment, que chegou a ficar em segundo plano por um bom tempo, quando a presidente tentou mudar os rumos da política econômica, ganhando um fôlego junto à “oligarquia liberal”. 
       Dilma está caindo porque não foi capaz de artimanhas, mas vítima delas. Sua força leonina diminuiu paralelamente à perda da base política. Sua derrota veio por perder a base para governar, mas isto ocorreu porque não teve recursos para articular um projeto de conquista do seu sócio majoritário, o PMDB, que se foi deslizando cada vez mais para direita. Quando se juntou a Renan Calheiros, outra fera capaz de trair, já era tarde. Não conseguiu impor uma divisão suficiente no PMDB capaz de neutralizar o vingativo Eduardo Cunha.
        Muitos analistas políticos afirmam que a grande falha de Dilma e de seus conselheiros foi hostilizar Cunha quando ele quis proteção na Comissão de Ética do Congresso para evitar a própria cassação. Isso é um engano. Dilma naufragou quando confiou na possibilidade de manipular, com os métodos de raposa de Lula, os vários partidos da base governista, sem um programa mínimo comum capaz de elevar o nível de dignidade da política.
        Os ultrarrealistas dizem que a matéria prima do Congresso e do Ministério não permitiria elevar qualquer nível. Pode ser. Mas houve uma oportunidade quando explodiu a insatisfação popular, em 2013, de ganhar apoio do povo para reformas institucionais, sociais e políticas. Dilma dirigiu-se diretamente à população quando falou em Constituinte independente, plebiscito e reforma do quadro partidário. A crise se avizinhava, poderia, inclusive, fazer uma reforma ministerial. Faltou ali a estatura e a grandeza de uma estadista. Faltou também não só o “instinto animal”, a manha, mas a ação leonina recomendada por Maquiavel ao bom político.
       Não enfrentou o PMDB, rendeu-se ao pior da base governista e à vontade de Michel Temer, que vetou qualquer mudança. O resultado é que, agora, o galinheiro está entregue à raposa mais traiçoeira do seu entorno.

       O governo Dilma morre de uma morte ruim, ainda que sua líder continue lutando. Não é a boa morte que os gregos supunham: lutando, mas deixando a glória e a grandeza como heranças.