quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A MAIORIA SILENCIADA

  

                                                              Reinaldo Lobo*

    Muitas pessoas têm preconceitos, talvez a maioria delas. Ideias politicamente incorretas sobre raça, gênero sexual, imigrantes, pobreza e democracia. Até há poucos anos, enunciar publicamente essas opiniões era uma vergonha. Poderia prejudicar alguém no trabalho ou nas relações sociais. A maioria se submetia a uma era de avanço dos direitos civis e humanos e ficava silenciosa. Mas se sentia, ao que tudo indica, injustamente silenciada.
     Com a crise econômica internacional, o fracasso da chamada globalização em promover a integração, a harmonia cultural e a universalização dos valores, vai surgindo aos poucos o retorno do reprimido. A catarse promovida nas eleições norte-americanas por Donald Trump tem acelerado o processo de virada à direita no mundo dos valores e dos costumes.
      Há alguns dias, um veterano jornalista ligado ao PSDB e ao Movimento Contra a Corrupção soltou esta pérola na sua rede social :’Homem que é homem não casa com homem”. Recebeu algumas “curtidas” de seus semelhantes. A figura criou coragem e veio a público. Saiu do armário. Assumiu sua homofobia, como se fizesse uma piada. 
     Algumas décadas atrás, seu comentário seria considerado perfeitamente natural, motivo de orgulho entre os pares. Mesmo entre jornalistas, profissionais considerados na vanguarda da opinião e dos valores, o machismo, o racismo, o conservadorismo em relação aos jovens, às drogas e às mulheres era quase o “normal”.
     Depois da revolução feminina e da entrada massiva das mulheres no mundo do trabalho, o quadro foi mudado e o estupro, por exemplo, entrou na lista das coisas muito feias. Antes, não constava.
     O senso comum, que a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir chamava ironicamente de “sabedoria das nações”, prescrevia que as mulheres deveriam ser “belas, recatadas e do lar”. E ninguém sentia arrepios ou se escandalizava ao ouvir que “lugar de mulher é na cozinha” ou que “homem com homem dá lobisomem” e “mulher com mulher dá jacaré”.
      O silêncio obsequioso das maiorias deu-se em função da força das minorias em países avançados e com o respeito aos direitos humanos que se seguiu à sucessão de ditaduras e de governos autoritários na América Latina, Ásia e África, mas também na Europa e nos Estados Unidos. Os governos Nixon, Reagan, e Bush, nos EUA, Thatcher na Inglaterra, e o advento da AIDS foram sinais de uma virada conservadora, cujo ápice contra a modernização foi atingido neste momento.
       A onda de emergência dos particularismos antiglobalização, a começar pela ascensão dos cristãos evangélicos e dos muçulmanos radicais, expressa a catarse das maiorias silenciadas. Nas conversas de salão, nos púlpitos e nas arenas políticas vai deixando de ser vergonhoso mostrar-se um reacionário.
      Penso que aqueles massacres estudantis sucessivos por tiroteios nas escolas norte-americanas e o de mais de 70 pessoas por um neonazista na Noruega há uma década, não são outra coisa senão um sinal (um sintoma) da emersão de algo sinistro na cultura, agora traduzido, de forma mais benigna nas urnas e em muitas partes. Mesmo a radicalização entre direita e esquerda em muitos países, inclusive em tradicionais “democracias liberais” de caráter centrista, consiste, a meu ver, em uma liberação do que fora considerado lixo político e varrido para debaixo do tapete.
      Ainda que a cultura norte-americana -- incluindo aí o faroeste do porte de armas até para adolescentes e crianças-- seja um tanto específica, não se pode descartar o fato que se desenrolava desde as décadas de 60 e 70, na forma de uma notável ascensão dos negros e de todas as minorais a posições de igualdade.
      Os brancos conservadores norte-americanos “engoliram” essa ascensão por muito tempo, mesmo porque a ideologia dominante era liberal. Os próprios republicanos chegaram a fazer concessões notáveis, integrando uma “ala gay” no partido.
       Agora, com os excluídos e os ameaçados pela globalização manifestando sua ira em muitas áreas do mundo, o recalque se rompeu. Vieram à tona a violência e os valores mais regressivos que estavam sob o manto do silêncio e da continência. As pessoas perderam a vergonha de votar num Trump, contra a paz na Colômbia no plebiscito sobre um acordo com as FARC guerrilheiras, e pela retirada da Inglaterra do Mercado Comum Europeu, essa utopia derivada do projeto de paz perpétua de Kant.
        Há um odor de fascismo no ar, sem dúvida. A democracia e a liberdade são conceitos predominantemente racionais. O nacionalismo, o racismo, a xenofobia e o ódio ao outro pertencem à categoria de paixões baixas e primitivas. Têm características emocionais infantilizadas, mal elaboradas e brutais. Sua natureza irracional é evidente: não há lógica nem argumentos sustentáveis que os justifiquem. São puros impulsos e emoções.
        No Brasil, a onda de ódio que precedeu o impeachment da presidenta Dilma tinha esses traços. O “desrecalque” de preconceitos sufocados por uma década de “lulopetismo”, de desprezo pelos pobres, revelou, sobretudo, o medo da classe média de se proletarizar, sentindo-se excluída em benefício de uma “nova classe média” criada por Lula. Esse ódio reverbera até hoje.
       Ficou patente que os ricos e os pobres se beneficiaram e surfaram na onda de crescimento econômico da era lulista, mas as classes médias, pelo menos nos seus setores mais conservadores, ficaram espremidas, sem lugar na nova ordem “socialista”—que, de socialista, nem tinha nada.
    As massas silenciadas estão cada vez mais ruidosas, despudoradas até, reivindicando seu lugar no admirável mundo novo do século XXI, mesmo que , para isso, tenham de adotar a legitimação da violência política como seu desejo explícito.