segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

BARBÁRIE LATENTE

                                  

                                                                    REINALDO LOBO

     O sistema atual chamado de democracia não é democrático de verdade. Vivemos em sociedades onde os cidadãos não têm a possibilidade efetiva de participar da legislação, do governo, da jurisdição e, enfim, da instituição da sociedade. Existem arremedos de participação. O resultado é a falta de confiança na Política e na Lei -- hoje maior do que nunca, como lembrou Zygmunt Bauman em uma de suas últimas entrevistas antes de falecer.
    “Todos são iguais perante a Lei, mas alguns são mais iguais do que outros”. Você já ouviu essa frase. Revela a natureza das democracias contemporâneas. De todas elas, não só do Brasil. Não se refere a uma falha legislativa localizada capaz de transformar bandidos em inocentes ou, ao contrário, culpar quem não cometeu algum crime. Não é uma brecha no sistema. É o próprio sistema. Expressa a essência das instituições jurídicas e do Estado nesses regimes em decadência.
     A desigualdade está na base da corrosão institucional, apesar da equidade formal. É a fonte da violência e da barbárie nas sociedades que se consideram “democracias liberais”. No Brasil atual, cujo grau de desigualdade social e de participação política precária é cada vez maior neste momento, tem havido explosões de violência e de criminalidade cíclicas. É possível postular um caráter sistêmico permanente, originário da mesma natureza e da mesma fonte. O que desestabiliza a chamada “paz social” é a própria base instável de uma democracia precária.
    Deve-se acrescentar à situação brasileira o fato de o País ser hoje uma sociedade de massas, como os Estados Unidos ou a Índia.  Há algumas décadas, os sociólogos se surpreendiam com a diferença entre a criminalidade brasileira e a norte-americana. Dizia-se: lá, existiam massacres aleatórios provocados por atiradores enlouquecidos que buscavam chamar a atenção e participar de forma desesperada; aqui, matava-se apenas por paixão ou por dinheiro. Estamos hoje assemelhados  aos EUA em crimes randômicos.
     A anomia, a falta de reconhecimento no trabalho e na vida, a existência precária, a carência de identidade e a dependência de decisões dos outros – tudo isso somado à miséria e à enorme desigualdade social faz lotar as prisões de gente pobre e infeliz. Ainda existem crimes de paixão e por ambição, claro, mas constituem apenas um desvio da curva. A regra tem-se tornado a configuração de formas brutais de violência.
     Dizia-se que o assassino enlouquecido, o serial-killer, as matanças coletivas e as guerras de gangues eram um fenômeno estrangeiro, alheio a um “povo pacífico e ordeiro”, como diz o clichê do discurso de juízes, políticos e autoridades em geral.
      As nossas prisões não estão repletas de seres humanos-- desesperados e embrutecidos por infâncias e famílias de um meio incapaz de dar continência e educação. Nada disso. São, como diz a linguagem jornalística-policial, “elementos” e “bandidos”. Nessa condição, podem ser mortos como mosquitos da dengue ou moscas varejeiras, privados de sua condição humana.
    A boa sociedade, os homens de bem, sentem-se aliviados quando esses “elementos” são assassinados pelo Estado ou por eles mesmos, numa guerra de gangues pela posse e distribuição das drogas.
    Um conjunto de fatores faz lotar nossos presídios infectos, inclusive a existência de uma absurda “guerra às drogas”, iniciada mundialmente lá atrás por um governante norte-americano, Richard Nixon, deposto por ser nada menos do que um delinquente. Outro ponto, especificamente brasileiro, é o desprezo da boa sociedade pelos Direitos Humanos.
     Apesar da conjunção de vários motivos para a existência da violência brasileira atual, existe um que postulamos hoje como central: a inexistência de representação legítima da própria população. O que parece ser apenas um defeito institucional localizado é, na verdade, a essência da instabilidade geral. Esse ponto provoca inércia do sistema democrático e ondas centrípetas de sequelas e efeitos colaterais. É o foco permanente de uma barbárie latente, pronta para explodir de tempos em tempos.
    Só há democracia no dia das eleições – e, mesmo assim, os candidatos são selecionados por partidos comprometidos com interesses os mais diversos. Não surpreende que existam representantes do “povo” eleitos pelo PCC, o grupo de traficantes e assassinos mais conhecido.
    No dia seguinte ao da eleição, o povo é privado de voz ativa e seus “representantes” – ligados muitas vezes a grupos econômicos e áreas de influência--, se apropriam das funções legislativas e executivas. E adeus, até as próximas eleições. Quanto aos juízes e promotores, são escolhidos por regras mais particulares, ditadas pela sua própria corporação.
     O quadro se agrava quando sabemos, pelas estatísticas dos economistas, que 8 pessoas no mundo detém riqueza equivalente a 3.6 bilhões de outros habitantes da Terra.
     Uma situação como essa não se resolve com maquiagem e reformas paliativas, mas supõe mudanças radicais nas instituições atuais. Nesse sentido, tem implícito um projeto que pode ser chamado de revolucionário, entendendo-se que revolução não significa massacres, banhos de sangue, o extermínio dos burocratas, a guilhotina ou a tomada do Palácio de Inverno. Representa a necessidade de mudanças de ordem política por iniciativas de baixo para cima, partindo da própria população, sobretudo dos mais lúcidos e dos que trabalham para sustentar a riqueza das minorias.

     Os regimes existentes no chamado mundo ocidental são erradamente denominados “democracias liberais”, mas constituem de fato “oligarquias liberais”—o que é uma contradição de termos, pois um sistema democrático não poderia nunca ser oligárquico, pois repousa por definição sobre a autonomia dos cidadãos.