quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

UMA OUTRA MILITÂNCIA

                          

                                                             Reinaldo Lobo*

        Vários são veganos e naturalistas, como os antigos anarquistas. Andam de bicicleta e combatem a cultura do automóvel. Dizem que a era dos combustíveis fósseis acabou, lutam pela preservação das reservas florestais e ecológicas, pela humanização das cidades e a sustentabilidade. Não se limitam a praticar esportes e se manterem “fit”; sua energia é canalizada para causas sociais e culturais. Lembram um pouco os antigos hippies, alguns vivem fora do perímetro urbano, mas muitos trabalham nas cidades como a maioria das pessoas.
        Aos poucos, vai surgindo no Brasil uma geração preocupada em dar um uso vital e humano aos espaços públicos, como salvar praças, destiná-las às crianças, aos idosos e à convivência. Em lugar de muros, preferem pontes – para citar a sugestão do Papa Francisco. Em lugar dos congestionamentos de trânsito, da poluição do ar e da falta de mobilidade, preferem andar a pé ou de metrô, valorizando o transporte público. Lutam pela energia eólica, os mananciais e fontes alternativas. São os campeões da reciclagem e do reaproveitamento da água.
       Alguns críticos ainda repetem a tolice de que esses são os “ecochatos”. Não são. Preparam o futuro.
       As próprias crianças, educadas na época do pós-fumo, da condenação dos cigarros de tabaco e dentro de uma consciência levemente ecológica, vão exigindo condutas dos pais, como se os educassem e, devagar, engrossarão as fileiras dessa militância discreta e menos eufórica do ponto de vista ideológico.      
      A consciência de estarmos perdendo a camada da atmosfera em que respiramos e vivemos impõe uma mudança de comportamento. Isso vai além dos partidos políticos e das causas tradicionais – o que não significa que outras lutas perderam o sentido, como, por exemplo, a dos Direitos Humanos. Curiosamente, essa nova geração de militantes é também tolerante com a diversidade de gêneros, as diferenças de opiniões e intolerante com a corrupção da política tradicional. Calcula-se que existam cerca de dois milhões de militantes sociais desse tipo no País.
      Como a mudança se passa na esfera dos comportamentos, é uma política relativamente silenciosa. Não faz alarde. Produz eventos, maratonas, apelo à saúde e ao bem-estar das pessoas, o que implica em reivindicações e crítica do caráter destrutivo da economia de consumo.
      Uma dessas críticas consiste em apontar a superficialidade, a banalização e a robotização dos consumidores. Algumas intervenções dessa nova militância, como as atividades ao lar livre num país ensolarado são uma denúncia direta dos shopping centers espalhados pela febre do consumo, cuja iluminação artificial em pleno dia cria ambientes de desperdício, clausuras de aprisionamento com foco exclusivo na sedução das compras. Num país como o nosso, cheio de Sol em todos os quadrantes, chega a ser bizarro que tenhamos tantos shoppings escuros e fechados, gastando energia preciosa  durante o dia  em ambientes concentracionários.
       Nas grandes cidades, como São Paulo, Rio, Porto Alegre, Salvador, etc., as praças públicas deterioram, entregues às vezes ao uso do crack e à ocupação dos sem teto. Os carros passam com motoristas apressados e indiferentes, pois a civilização do automóvel ignora os espaços públicos de virtual convivência. É verdade que os grandes problemas sociais agravam a situação, mas a condescendência geral nos informa: enquanto as desigualdades não forem corrigidas, nada mudará. É uma meia verdade.
     Se nada for feito pela política e as autoridades, ficaremos esperando uma revolução geral, por enquanto utópica. As praças e as pessoas estarão do mesmo jeito. Geralmente, nada é feito. A própria esquerda criticou o prefeito Haddad de São Paulo por priorizar pedestres e bicicletas, enfrentado pela primeira vez a cultura do automóvel. Quanto à direita, estava no seu papel de detonar tudo o que viesse de uma política da esquerda, sobretudo do PT, uma vez que sua visão de mundo prioriza a eficiência, a produção, o lucro, o empreendedorismo e a rapidez de resultados.
       O novo prefeito de São Paulo, João Dória Jr., percebeu essa falha da direita em se restringir a uma visão conservadora e procura combinar espertamente o empreendedorismo com uma tentativa de dar uma face humana. Como é uma política contraditória, que começou negando a ousadia de Haddad, premiada e elogiada internacionalmente, sua maquiagem de São Paulo ainda não se definiu, esbarrando na atitude equivocada de pintar de cinza os muros onde havia verdadeiras obras de arte em grafites. São Paulo era considerada uma das cidades com os melhores grafites no mundo, junto com Barcelona e Nova York.
       A característica principal da outra militância surgida no País são as ações sociais e ecológicas concretas, sem fazer ideologia disso. A crítica está no gesto, não no discurso. Não se propõe a traçar programa eleitoral ou tomar o poder. Como é --digamos-- uma política de baixo para cima, questionando as autoridades, age por atitudes críticas específicas e tem a tolerância da mídia conservadora. Atua na esfera da sociedade civil, mas não é privatista, uma vez que combate por melhores usos do espaço público e pela solidariedade comunitária.
      Penso que essas ações, principalmente da juventude, ajudam a instaurar uma nova estrutura ética na organização da sociedade, que assim não se limitará a políticos de vários matizes, sobretudo os corruptos. Devagar, bem devagar, vai-se criando uma postura educativa positiva que pode, um dia, tornar-se hegemônica. O italiano Antônio Gramsci aprovaria.
      Seria muito triste e pouco inteligente se todos os que se acham progressistas se limitassem a julgar ingênua, inconsequente ou ideologicamente equivocada essa outra geração espontaneamente contestadora, acreditando -- aí sim, erradamente-- que a mudança só se faz com sindicatos, barricadas ou mimeógrafos, como no passado.

        

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

PARA QUE SERVE A POLÍTICA?



                                                              Reinaldo Lobo

         Muita gente responde facilmente a essa pergunta. Dizem: “serve para organizar, civilizar, manipular, enganar, governar o animal humano, roubar, mandar, representar o povo, buscar a felicidade geral, o bem comum, evitar a guerra direta, manter privilégios, administrar e expressar o desejo de poder e grandeza”. Há um pouco de verdade em cada um desses ângulos e é do senso comum considerar a política algo inevitável para conter os impulsos hobbesianos de combater os vizinhos. Será só isso?
        Inúmeros filósofos e sociólogos deram respostas à questão, mas ela permanece aberta. Quanto aos psicanalistas, são os mais embaraçados ao lidar com o assunto. Ou o ignoram olimpicamente ou, então, reduzem o problema a algumas referências a Freud e aos conflitos psíquicos. A política, sob essa ótica, seria uma simples amplificação de fantasias e desejos inconscientes dos indivíduos.
        Os que escreveram sobre as relações entre a psicanálise e a política limitaram-se geralmente às formulações isoladas de Freud ou às suas incursões nas áreas da filosofia da história, da sociedade e da antropologia, como “Mal-estar na Civilização”, “O Futuro de uma Ilusão”, “Moises e o Monoteísmo”. Muitos tiraram conclusões “pessimistas” ou mesmo “reacionárias” desses escritos, a respeito das implicações da psicanálise quanto aos projetos de transformação política e social.
        Os psicanalistas têm mostrado uma certa “preguiça” em refletir sobre isso e, quando o fazem, é de maneira um tanto apressada e negligente, reduzindo tudo à privacidade dos consultórios ou, em casos raros, confirmando aquelas “conclusões” conservadoras.
       Há um mito psicanalítico sobre a moderação, a paciência e a neutralidade que é escandalosamente ... político.
        Uma exceção foi o greco-francês Cornelius Castoriadis, simultaneamente filósofo e psicanalista, ao examinar essas relações entre a política e a psicanálise sem nenhum preconceito e com muita liberdade. Ele não ignorou obras importantes como “Totem e Tabu” nem as inúmeras formulações de Freud sobre a co-presença do individual e do social na análise, sem que uma face se subordine à outra.
         Castoriadis, se não respondeu à questão, fez pelo menos as perguntas certas, em lugar de se fixar em algumas opiniões esparsas de Freud e mesmo de outros autores, como Klein, Lacan e Bion. Perguntou sobre a significação da própria psicanálise, como teoria e como prática.  Sobre suas implicações internas e externas, interrogando se ela não teria nada a ver com o movimento emancipatório do Ocidente. Se o esforço de conhecer o inconsciente e de transformar o sujeito não tem nenhuma relação com a questão da liberdade e com as questões milenares da filosofia. Se a psicanálise teria sido possível fora das condições sociais e históricas que a tornaram possível na Europa. Se o conhecimento do inconsciente não teria nada a ensinar sobre a socialização dos indivíduos, portanto também sobre as instituições sociais e a política.
        Esse autor pouco conhecido no Brasil, falecido em 1997, indagava ainda por que a psicanálise como prática no campo individual seria automaticamente nula quando se passa para o campo coletivo. O que poderia haver na práxis psicanalítica capaz de ensinar algo sobre a conquista da autonomia humana?
        Essas perguntas raramente foram formuladas, em parte, pela ânsia dos psicanalistas de se afastarem das disciplinas humanas e se voltarem para um outro mito: o modelo da ciência positiva da natureza.
         Em mais de trinta anos de reflexão e pesquisa, Castoriadis postulou que a verdadeira política, aquela que se desenvolveu desde a Grécia antiga, tem algo intrínseco a ver com a psicanálise, no que se refere aos objetivos. Tomando o modelo da práxis e da criação psicanalíticas, ele sugeriu que o processo de passagem da dependência (heteronomia) para a autonomia (independência) está presente em ambas. Ou seja, o que interessa não são apenas interpretações sobre as instituições políticas, mas a correlação estrutural entre a própria disciplina psicanalítica e a natureza da política.
        A política é o que diz respeito ao poder em uma sociedade. O poder em uma sociedade  sempre terá regras a serem respeitadas, como “Não matarás”, e que concernem às decisões da coletividade para sobreviver. A liberdade não é algo espontâneo e utópico, do tipo “tudo pode”, mas decorre de decisões responsáveis sobre a própria coletividade – tem, pois, um fundamento ético.
      O objetivo da política, assim como o da psicanálise, não é o poder em si mesmo nem a felicidade humana, mas a liberdade.
       Ambas têm isso em comum: a liberdade como meta, o que implica em emancipação tanto individual como coletiva, isto é, os sujeitos se tornarem responsáveis pelo seu destino, decisões, regras, constituindo uma sociedade em que predomine autonomia e não dependência heteronômica.
       A verdadeira política deveria servir para a emancipação humana, efeito também de uma psicanálise bem-sucedida, cujo processo não acaba quando o paciente finaliza sua “cura”, mas que prossegue após, na medida em que o sujeito vem- a- ser sem descansar, pois o inconsciente não acaba, nem os riscos da regressão à heteronomia.   A democracia constituí-se assim: a liberdade é escolha, conflitos sucessivos, emancipação e responsabilidade.

        Na contribuição de Castoriadis, assim como penso, não existe liberdade “com” responsabilidade. Ela é a própria responsabilidade.