segunda-feira, 8 de maio de 2017

ARTIMANHAS DO PODER

     

                                                                  Reinaldo Lobo

     Freud formulou uma intrigante pergunta: como as pessoas interiorizam o poder? Quais as condições subjetivas para a aceitação das instituições, das regras, do comando do Estado e dos governos?
     Winnicott, outro psicanalista, ofereceu uma excelente resposta:  primeiro, é pela via da onipotência primitiva de todo ser humano, quando ainda é uma criancinha pequena. O bebê, sua majestade, sente controlar e dominar o mundo que “inventou“ e, ao mesmo tempo, encontrou ao seu redor. É um período de indiferenciação mágica e de sentimento irrefletido de poder. Cabe à mãe confirmar ou desmentir essa ilusão primária de poder absoluto. De preferência, uma boa mãe confirma e, depois, desilude gradualmente o seu bebê, impondo-lhe delicados limites.
      Aos poucos, tudo passa pela identificação com as figuras materna e paterna e, com frequência, a constituição de um “falso Eu” adaptativo, que torna o sujeito parcialmente integrado e possivelmente submisso à sociedade a que pertence. Um “falso Eu” é uma defesa sofisticada para evitar o sofrimento psíquico de se confrontar com o ambiente, escondendo assim um “verdadeiro Eu”, mais espontâneo e, às vezes, agressivo.
    Com a “falsificação de si mesmo”, para evitar perder amor e reconhecimento, adia-se o uso do núcleo mais verdadeiro, potencialmente perigoso para as relações interpessoais e sociais, para um dia, quem sabe, ser usado. Essa é uma saída exitosa e funcional. O preço é a submissão às leis do ambiente. Isso acompanha um certo grau de alienação e, às vezes, um sentimento de irrealidade.
    A falta de sentido junta-se a essa estranheza em relação ao mundo a que o sujeito pertence. Escritores como Kafka, Camus, Sartre, o filósofo Heidegger, Nietzsche, o teatrólogo Ionesco e até mesmo Homero, na Grécia Antiga, captaram o sentimento de absurdo que acomete seres humanos quanto ao seu pertencimento.
    Há várias saídas possíveis para essa situação de conflito entre sujeito e sociedade. Uma delas, é comportamento que foge do comum e adquire contornos antissociais. Seja pela via do heroísmo e da revolução, seja pelo caminho da delinquência. Uma outra, como vimos, é a adaptação submissa. Mas há também a rota da identificação mais ambiciosa com o poder, apropriando-se dele e dos seus métodos. O caminho de muitos políticos, corruptos ou não.
    Uma patologia particular de apropriação do poder, que evoca a onipotência primária do bebê, é o totalitarismo, a meu ver. Um colega psicanalista contemporâneo, Henrique Honigztejn, do Rio de Janeiro, chama de “onipotência secundária” esse fenômeno que faz o sujeito derivar para o nazismo ou outras formas de política totalitária.
     Estudando milhares de páginas dos “Diários” de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, e a própria história do nazi fascismo, Honigztejn postula que, quando a relação mãe-bebê primitiva é falha e mal resolvida, surge nesses indivíduos uma espécie de onipotência compensatória que os leva até aos delírios de poder.  Seria interessante estudar também outras personagens históricas sob esse ângulo, como Stálin, Mao Tsé-tung e congêneres.
     A impressão é a de que se combinam nesses perfis de políticos a necessidade de reconhecimento, uma espécie de “prova de legitimidade”, a delinquência, a busca do “verdadeiro” sentido da vida, a ilusão onipotente desmedida, o senso de heroísmo e a submissão a crenças adquiridas. Estamos diante de uma patologia política particular.
    Na verdade, como diria Bion, estamos falando de personalidades com partes psicóticas adaptadas, com uma enorme fragilidade do Eu. Como se diz, egos frágeis e, por isso mesmo, perigosos.
     Mesmo que os casos citados sejam extremos, o gradiente de hipóteses combinatórias destes exemplos vale para qualquer vocação política e pode ser aplicado ao estudo do cotidiano das democracias e ao político comum. Não só existem casos de totalitários bem-sucedidos, mas também há os virtuais.
    Carl Schmitt, o estudioso da política, ele próprio um simpatizante do fascismo, viu um certo aspecto paranoico em toda a estrutura da vida política: é a divisão recorrente entre amigos e inimigos (amigos  versus inimigos), essência da prática partidária, inclusive nas democracias mais abertas.
    Ainda que existam políticos sérios e construtivos, que tiveram – pode-se supor-- mães razoavelmente sensíveis e suficientemente adequadas, também estes estão sujeitos às variáveis e aos potenciais que apontamos na relação com a sociedade.
    A corrupção proposta pelo fascínio do poder pode levar a uma interiorização derivada da onipotência e do resíduo de narcisismo de todos nós, em busca de alcançar objetivos pelos meios mais rápidos e a busca do prazer imediato.
    Existe uma contrapartida de toda patologia política vinda “de cima”, proposta pelo poder. É a adesão dos governados, que se identificam, às vezes, até com o agressor.
    Espera-se destes cidadãos comuns a submissão quase absoluta. Muitos perguntam: por que se vota em gente tão corrupta e reincidente no abuso de poder? Por que essa espécie de submissão voluntária aos poderosos, à espera de gratificações? De que tipo de gratificação profunda estamos falando?

   É que temos dentro de nós um potencial de onipotência e de corrupção para nos identificarmos com o que um político, corrupto ou não, tem – o desejo de poder.