segunda-feira, 31 de julho de 2017

UMA OUTRA ESQUERDA

   
                                               
                                                                Reinaldo Lobo                                                               

       Existe uma esquerda fácil de se identificar. É a dos slogans, do entusiasmo militante, das palavras-de-ordem, da adesão cega a um lado, do maniqueísmo e até fanatismo, da falta de espírito crítico em relação aos seus próprios erros e do conforto burocrático. Costuma ser animada por valores éticos, pela busca da igualdade, justiça e liberdade, mas nem sempre sua ação se sustenta nos seus princípios ao longo da luta. É conciliatória e radical, muitas vezes contraditória nos seus fundamentos. A tentação do populismo é frequente. Pratica eventualmente um maquiavelismo barato ou, então, se fecha em algumas ideias simples e em posições extremas.
       Há, porém, uma outra esquerda mais difícil de localizar em meio à guerra ideológica e pouco reconhecida em seu valor inestimável. Esse grupo é tão esquerdista quanto o outro, mas não hesita em proclamar sua independência e dirigir um “fogo amigo” ao PT e a todos os partidos localizados nesse lado do espectro político.
     Sua visão é mais circunspecta e reflexiva, ainda que bastante crítica tanto em relação ao capitalismo quanto ao que chama de “socialismo de caserna”, dogmático e autoritário. Filia-se a uma ancestralidade mais libertária, respeita autores como o francês Merleau-Ponty, o neomarxista alemão Theodor Adorno e os epígonos da célebre Escola de Frankfurt, assim como os franceses Claude Lefort, André Gorz e, sobretudo, o greco-francês Cornelius Castoriadis, cujas teorias foram construídas, simultaneamente, nas lutas antitotalitária e anticapitalista.
     Para essa esquerda contemporânea não é apenas importante a diferença entre esquerda e direita, mas igualmente entre totalitarismo e democracia. Pode-se até arriscar dizer que se fala de uma geração intelectual “pós-totalitária”, que não ignora a monstruosidade do que se construiu em nome do socialismo no Leste Europeu e em outras partes do mundo, sem negar, contudo, avanços obtidos nas esferas sociais e políticas por muitos movimentos e governos que reivindicaram o rótulo de socialistas ou mesmo de comunistas.
     Essa posição singular é, como se vê, difícil. Obriga a navegar pela complexidade histórica atual e exige muita lucidez e sutileza nas suas análises. O que não falta, aliás, ao livro “Caminhos da Esquerda—Elementos para uma Reconstrução”, recém lançado pela Companhia das Letras, e ao seu autor, o filósofo Ruy Fausto, professor emérito da USP, também professor e doutorado pela Universidade de Paris I.
     Um livro raro na nossa Pindorama, que traça um diagnóstico duro sobre a trajetória dos governos Lula e Dilma sem perder de vista a brutal ofensiva da direita contra eles, inclusive a forma assimétrica das decisões da Lava Jato e do Judiciário, bem como o avanço direitista no mundo, sobretudo após a eleição de Trump nos Estados Unidos.
       Fausto é severo no diagnóstico geral quando diz, com razão, que um “trabalho de reconstrução” da esquerda, posta em xeque desde o evento simbólico da queda do Muro de Berlim, em 1989, “deve começar pela percepção de que, por diferentes razões e sob diferentes formas, vivemos nos últimos cem anos um período de alienação radical do projeto de esquerda em relação ao que ela representou na origem, e deveria continuar representando”.
      Uma objeção que geralmente parte da direita seria: “para salvar a esquerda, ” o autor estaria pondo entre parênteses a esquerda “realmente existente” e se refugiando numa outra, ”que só existe no seu espírito”. É a crítica sobre a falta de realismo em propor um projeto socialista depois do stalinismo, do Gulag, de Pol Pot e outros fenômenos aberrantes.
      Fausto apresenta uma resposta interessante a essa acusação frequente, ao fazer uma analogia com o destino do cristianismo sob o poder da Igreja, que teve “a Inquisição, as Cruzadas, o papa Bórgia, a noite de São Bartolomeu, o reacionarismo de uma fieira de papas, a atitude do papa Pio XII na Segunda Guerra Mundial, a homofobia, a oposição ao divórcio, o fanatismo nas diretrizes sobre a escola, enfim, uma longa história de erros e horrores do cristianismo realmente existente”. E pergunta: “Seria tão irrealista assim dizer que, apesar de tudo, o cristianismo verdadeiro é outra coisa? ”
       A esquerda não é, bem entendido, religião, mas a analogia é útil como ilustração – diz ele. Ora, houve sempre uma esquerda fora do poder de Estado e dos partidos. Mesmo dentro dos partidos e do Estado nem tudo foi sempre negativo—pense-se, diz ele, no “Front Populaire” francês dos anos 1930 ou no socialismo nórdico. Pensemos também nos movimentos sindicais de esquerda que empurraram o próprio capitalismo a fazer concessões aos trabalhadores, fornecendo condições menos desumanas de trabalho nos países mais civilizados. No plano da produção de ideias, então, nem se fale: a esquerda tem brilhado e, como diz Fausto, “para dar um exemplo, o pensamento clássico de Frankfurt não foi nenhuma brincadeira”.
      O autor não pretende substituir tudo o que foi feito ou existe na área da esquerda por algo inteiramente novo ou um plano utópico, do que não existe. Faz a crítica da corrupção em que o PT se envolveu, da sua aliança de classes típica de governos populistas com banqueiros, industriais e fazendeiros, mas não considera o projeto inicial do partido um caso perdido. Nem desdenha das conquistas em direitos humanos e sociais dos governos Lula e Dilma.
     Há que se fazer, contudo, uma profunda autocrítica, desintoxicando o PT do que ele chama de patologias da esquerda—o reformismo adesista, o populismo e o neototalitarismo. Se não fizer essa purgação ou desinfecção, esse partido não terá um futuro sério e cairá no grupo das aberrações que deformaram a esquerda ao ponto de, em alguns casos, se tornar irreconhecível, como, por exemplo, na social democracia, cuja mutação em neoliberal chega a ser risível.
      O que Fausto oferece em seu livro é muito mais do que resenhamos aqui, mas o principal é assinalar que, além da crítica, fornece elementos para a reconstrução de um projeto de esquerda que seja ao mesmo tempo democrático, anticapitalista, antipopulista, obviamente antitotalitário e com consciência ecológica.

     Uma excelente leitura para quem ainda se considera comprometido com uma ética humana de esquerda.