sexta-feira, 11 de agosto de 2017

MEIA DEMOCRACIA


                                             
                                                                    Reinaldo Lobo*

         A democracia está sob ataque no mundo inteiro. A pretexto de suas falhas de representação, muitos ideólogos de diversos países encerraram o namoro democrático que vinha desde o fim dos regimes totalitários do Leste Europeu, em 1989.
        Associada ao capitalismo de livre mercado, a democracia liberal era a receita ideal apregoada em toda parte. Foi até imposta pela força das armas em alguns países do Oriente Médio.  
        Hoje, não é bem assim. O discurso liberal foi substituído por uma crítica dos limites da democracia e, ainda que mantida formalmente nas Américas, na Europa e em boa parte da Ásia e África, está sob suspeita de enfraquecer o espírito coletivo, promover o individualismo e a ineficiência. A lembrança de que a maioria das nações reivindicava até há pouco tempo a qualificação de democrática, vem sendo deixada para trás.
       Comparado com empresas privadas, o Estado Democrático é pintado como um resquício de burocracia que entrava o fluxo das decisões de mercado e um obstáculo à manutenção do capital internacional. É comum ouvirmos empresários declarando seu amor à China, onde há um capitalismo totalitário no qual imperaria, segundo eles, uma grande facilidade decisória, sem as amarras e meandros democráticos.
       O capitalismo chinês teria, por exemplo, o mérito de impor suas decisões  com mais rapidez e fluidez entre a ponta da produção e da comercialização, sem falar da repressão às reivindicações salariais e da submissão dos trabalhadores. A Rússia do autoritário Putin costuma receber elogios parecidos, por reunir restos centralizadores e a estabilidade do regime anterior combinados com a dinâmica do capital.
       O risco de abertura excessiva da democracia à criação de novos direitos e à participação popular constitui uma ameaça à “oligarquia liberal” que dá as regras e governa nos chamados países ocidentais. A preferência por Estados de Exceção é cada vez maior e talvez constitua a forma política e jurídica ideal a serviço da ideologia neoliberal. 
       Todo Estado é, num certo sentido, fechado em si mesmo. Forma um círculo de poder. É oligárquico. Dizia um célebre teórico da oposição entre democracia e totalitarismo, o sociólogo Raymond Aron, insuspeito de anarquismo ou de esquerdismo: “”Não se pode conceber um regime que, em algum sentido, não seja oligárquico”. Um outro autor, o clássico Robert Michels, de orientação mais à esquerda e estudioso dos partidos políticos, falava de uma “Lei de Ferro” da burocratização pela existência inevitável de oligarquias que empalmam o poder.  De fato, os que defendem a democracia como uma resistência ao avanço do poder sobre a sociedade, sabem perfeitamente que mesmo ela dá espaço às oligarquias dominadoras.
       No entanto, o que está ocorrendo no período histórico presente, cuja culminância foi a eleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos, parece ser algo mais sério, na forma de uma ofensiva de direita que busca, no mínimo, obter a fórmula ideal da “meia democracia”. Imagina-se a situação em que o Estado seria aparentemente mínimo, mas sua ação ultra eficiente prescindiria da aprovação das maiorias e os representantes do povo estariam desconectados ainda mais do que hoje de suas bases, a fim de tomar as decisões convenientes ao livre mercado e ao capital internacional. Sua meta seria uma desconexão entre as instituições como o Judiciário, o Executivo e os Legislativos, de um lado, e a soberania popular, do outro.
        É como se a direita tivesse roubado alguns argumentos da esquerda marxista, para dizer, por exemplo, que os Direitos do Homem são os direitos egoístas do individualismo burguês e que, agora, é preciso reduzir a esfera de sua legitimidade em nome da eficácia da ação política e econômica.
       Vários autores perceberam esse deslocamento, como o filósofo italiano Giorgio Agamben, cujas análises procuram demonstrar que os estados de exceção tendem a se tornar permanentes, como se constituíssem a essência das democracias contemporâneas. Ou, sobretudo, como o francês Jacques Rancière, para quem está-se desenvolvendo um verdadeiro ódio à democracia na cultura atual, cujos críticos do sistema, de direita e de esquerda, reduziram o “homem democrático” seja ao “indivíduo egoísta” ou ao “consumidor ávido”, suprimindo a dimensão original da revolução democrática, germinada lá atrás, na Grécia, que é a emancipação e a plena cidadania.
        O discurso do elogio da democracia, presente nos tempos do totalitarismo no século XX, vem sendo substituído por narrativas sobre os seus riscos. Curiosamente, há uma coincidência entre as palavras e os fatos. Os golpes parlamentares de direita, como em Honduras, no Paraguai e no Brasil, assim como a crise da esquerda, ainda sem desfecho, da Venezuela, mostram aqui em nossa América Latina que o fogo é disparado não pelos militares, mas pelos políticos e os membros do Judiciário.
        A democracia corre o risco de morrer pelas mãos dos que mais deveriam defendê-la, promovendo a sua institucionalização.
       A ilusão de que a democracia é o regime mais compatível com o capitalismo leva muitos a acreditarem que basta o seu funcionamento conjugado para que sua sobrevivência esteja garantida.

      Ao contrário, pode-se pensar que a maior ameaça contemporânea a esse regime venha justamente desse binômio, uma vez que o capital se conjuga apenas com sua própria lógica de reprodução e de crescimento. O sonho do crescimento sustentável e constante pode ser também a lenta agonia da democracia.