quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O CAPITAL NUNCA DORME



                                                               Reinaldo Lobo

                 Dormimos uma grande parte de nossas vidas, o que é, do ponto de vista da sociedade de consumo e do capital, um desperdício de tempo e dinheiro. “Time is Money”, diz o velho clichê norte-americano. Só faltava o capitalismo invadir o nosso sono e instrumentalizar nossos sonhos. Faltava, pois já não falta mais.
              A história desse processo de conquista da última fronteira pelo capital—o sono e o dormir—está contada num livrinho intrigante traduzido aqui na praça, denominado “Capitalismo Tardio e Os fins do Sono -- 24/7”, de Jonathan Crary, lançado por uma nova editora, a “Ubu”, criada em 2016.
              O autor, professor de estudos culturais na Universidade de Columbia desde 1989, conta que milhões de dólares estão sendo investidos em pesquisas privadas e militares para produzir um ser humano que não durma muito, ou, pelo menos, seja capaz de ficar insone por 24 horas por sete dias, daí o subtítulo 24/7.
            Para o Pentágono, esse tipo humano seria um soldado perfeito, tanto que foram designadas equipes de psicólogos e neurologistas para realizar e estudar experiências de abstinência de sono, inclusive o exame dos  presos “extraoficiais” torturados também dessa forma em Guantánamo.
            Para a sociedade de consumo, “a imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo”—o sono, escreve Crary.
           O autor sabe o que muitos de nós sabemos, isto é, o capitalismo cria “desejos” e “necessidades” artificiais aos quais estamos expostos e submetidos em nosso estado de vigília diurna. Também é conhecido o fato de que esses artifícios são destinados a provocar o consumo, nem sempre ao alcance de todos -- que vão desde um novo carro com maior potência e rapidez para estradas com limites de velocidade, até uma marca martelada pela publicidade ou um gadget eletrônico com recursos maiores do que usamos, ou um novo sabor de comida ou viagens para resorts turísticos que são verdadeiras ilhas de prazer construído e programado. Para isso, o consumidor precisa estar atento e desperto.
          Desde 2001, após o advento da maior onda de terrorismo internacional e a instauração de um “Estado de Exceção” nos EUA e vários outros países, a privação de sono tem sido uma prática de tortura aplicada a vítimas de “custódia extrajudicial” e a outros presos. Muitos desses “programas” para prisioneiros foram elaborados sob medida por psicólogos que, fazendo parte de equipes de consultoria de ciências do comportamento, procuravam explorar vulnerabilidades emocionais e físicas de cada detento.
         A privação do sono como forma de tortura é usada há muitos séculos, mas sua aplicação sistemática coincide historicamente com a disponibilidade de luz elétrica e a facilidade para amplificar o som de modo contínuo, diz Crary. A polícia política de Stálin, a NKVD, a usava rotineiramente em 1930, como parte de uma sequência de brutalidades e de violência gratuita que danifica irreparavelmente seres humanos. Sabe-se que, em experimentos, ratos morrem depois de três semanas de insônia. Em nós, humanos, é suficiente um período curto de alguns dias para tal prática induzir a psicose. Após algumas semanas, surgem danos neurológicos. A falta de sono produz um estado de extrema submissão e desamparo, tornando possível extrair informações relevantes da vítima, que confessará ou inventará qualquer coisa. O DOI-Codi, em São Paulo e no Rio, usava muito esse método durante a repressão à oposição à ditadura militar-civil de 1964-85.
          O que mudou no pós-11 de setembro foi a naturalidade com que a privação de sono e outras torturas passaram a vigorar, no combate ao radicalismo islamita. E isso serve de modo especial para as pesquisas sobre o sono no Departamento de Defesa dos EUA e em outras partes.
          Sabe-se que o Pentágono organizou uma equipe e investiu milhões de dólares na investigação sobre pássaros que migram, em função das estações, do Alasca até o México, entre eles o pardal da coroa branca, uma espécie que migra no outono para o sul e na primavera retorna para o norte. O detalhe é que o pardal da coroa branca tem a capacidade impressionante de permanecer acordado por até sete dias durante as migrações, o que permite que voem e naveguem de noite, e procurem por alimento de dia, sem descansar. Nos últimos seis anos, o Departamento de Defesa norte-americano gastou uma fortuna para estudar essas criaturas. Cientistas investigam a atividade cerebral desses pássaros durante a longa vigília, a fim de obter informações aplicáveis aos seres humanos e saber como as pessoas poderiam ficar sem dormir e funcionar com eficiência e produtividade. Se o objetivo inicial era conseguir o soldado que não durma, com a expansão da pesquisa por corporações privadas essa meta dirigiu-se ao mundo do trabalho e do consumo.
           Parece que o livro anuncia um admirável mundo novo, onde funcionaria uma distopia aterrorizante, onde o sono estaria abolido. Não é bem assim. Mas não há dúvida que o estudo dos pardais da coroa branca é apenas uma fração de um amplo esforço científico e militar para obter algum controle, mesmo que relativo, sobre o sono humano. Diversos laboratórios estão conduzindo hoje pesquisas avançadas e testes experimentais de técnicas de privação de sono, recorrendo a substâncias neuroquímicas, terapia genética e estimulação magnética transcraniana. A meta imediata é conseguir que alguém fique 24 horas sem dormir por sete dias.
        O autor se estende sobre questões filosóficas e políticas sérias a respeito do sono e do sonhar, lembrando inúmeros escritores, a começar por Freud, que associaram o dormir ao sonho, “esse guardião do sono” -- e o sonho a uma fonte de projetos para um futuro melhor da humanidade.
      Diante disso, é preciso ficarmos atentos, digamos acordados, para não ser possível que a sociedade humana se torne uma lúgubre e triste distopia de robôs sem alma.


terça-feira, 12 de setembro de 2017

O ESTADO EMOCIONAL DO PAÍS


                                                    
                                                                  Reinaldo Lobo

    Os brasileiros estão confusos com o espetáculo da crise brasileira na TV e nas redes sociais. Não é mais possível a simples polarização entre o Bem e o Mal, nem a busca de um único inimigo ao qual acusar. Não existe apenas uma Gení a servir de bode expiatório. Todos “são culpados” e não se sabe mais em quem confiar.
     A novela da Lava Jato, acompanhada em capítulos estudadamente vazados para a mídia a fim de ganhar “apoio da população”-- como disse o juiz Moro-- parece que não terá um final feliz. Ou, pelo menos, tudo indica que acabou em paradoxo e complexidade, mas os seus agentes ainda não perceberam. Moro ainda tem a chance de atingir um ponto de sua missão, Lula, principal alvo inicial da operação, mas até isso está difícil agora.
     Curiosamente, a oposição principal à operação parte hoje de quem fingia defendê-la e queria servir-se dela para seus objetivos políticos.  
     A onipresença da mídia na sociedade, a manipulação dos estados emocionais dos cidadãos pelo impacto das notícias e dos comentários, o partidarismo da nossa imprensa – tudo isso leva à crença de que teríamos um povo mais politizado e consciente, mas não é bem assim.
    Os brasileiros estão perdidos com as mensagens contraditórias emitidas pelo Judiciário, pelos partidos e pelos meios de comunicação. Os que saíram às ruas de camisas amarelas pedindo o fim da corrupção estão perplexos e paralisados. Viram mais tarde muitos dos corruptos notórios nas fotos de suas próprias passeatas.
   Como entender que a Rede Globo, principal geradora dessa novela e formadora de opinião no País, passe de uma uma posição a outra, por motivos pouco conhecidos do público?
    Quem é o sujeito da ação política por trás do comando do espetáculo? Essa é uma indagação sem resposta visível para o povo.
     Os segmentos mais populares, sem camisas amarelas, estão numa angustiante expectativa sobre quais direitos sociais terão depois das chamadas “reformas”, desencadeadas em curto espaço de tempo pelo governo pós-impeachment. Só os sindicatos e frações de movimentos sociais fazem manifestações ignoradas em grande parte pela mídia.
     Os jovens, estudantes e profissionais, estão divididos entre apoiar os trogloditas da direita, a turma do Bolsonaro, os “gestores” do tipo Dória ou a paralisia da esquerda desmoralizada pelas acusações de corrupção, dividida e relativamente impotente na ação.
      No ataque ao sistema corrupto, está acontecendo no País algo semelhante ao que fez o novo prefeito de São Paulo na dita Cracolândia: atacou um ponto como se fosse o único alvo e o crack se espalhou para muitos lugares da cidade, alguns inesperados. As pessoas não sabem se o crack foi eliminado ou se apenas se diversificou.
      Os que tinham como referência política um determinado partido -- para combater os principais focos de corrupção nacional, segundo sua visão--, perderam a referência ao ver o líder em quem votaram aparecer indigitado por graves denúncias.
     Antes, os inimigos eram Lula e Dilma, então como é possível que Aécio Neves e mesmo o “mal menor” apoiado taticamente, Temer, surjam como chefes de quadrilhas?
       A essa dificuldade de percepção contraditória chama-se, em psicologia, “dissonância cognitiva”. Essa mesma dissonância afeta a esquerda, quando se vê o principal partido originalmente contrário à corrupção, o PT, com vários líderes citados em listas de propinas e manobras pouco republicanas.
      Contra quem dirigir o ódio neste momento, uma vez que a situação de crise econômica, também difícil de compreender, induz a essa emoção forte e politicamente poderosa? Já não é tão fácil achar um culpado, inclusive, pela própria crise econômica.
      Como recuperar uma visão de mundo binária, capaz de operar de modo semelhante aos computadores: sim ou não, isto ou aquilo? Apesar desse maniqueísmo não ser desejável, ele oferece às pessoas algum solo onde se apoiar. Não é justificável, mas compreensível. Até esse “consolo” está faltando neste momento da vida do País.
       Quando a perplexidade parece diminuir um pouco, logo vem alguma  notícia perturbadora e com linguagem de dupla mensagem. A mídia não para de dizer, por exemplo, que as “reformas” do governo pós-impeachment são essenciais para salvar o País e acabar com a crise.
    O uso da palavra reforma é enganador nesse caso e passa uma mensagem dúbia. Primeiro, porque nada indica que são verdadeiras reformas, mas medidas de “austeridade”, restaurações, acertos e legislações liberais à moda antiga, quase anteriores à revolução de 1930 -- quando houve, aí sim, uma série de reformas que deram maior segurança aos cidadãos em geral e aos trabalhadores, em particular. E nada garante que as tais “reformas” atuais vão tirar o País da crise econômica e, menos ainda, da precária situação política. Apenas ameaçam lançar o ônus da crise para os mais pobres.
    Um ponto parece certo: as mudanças propostas afetam negativamente a vida dos trabalhadores, retirando garantias conquistadas por décadas de lutas sociais e políticas.

     Como é possível confiar nas diretrizes propostas por quem dirige a vida nacional se as próprias palavras usadas são ambíguas ou contraditórias? Certamente, os mais pobres são os que têm as maiores expectativas, mas são também os que mais desconfiam e temem o futuro.