Reinaldo Lobo
Dormimos uma grande parte de
nossas vidas, o que é, do ponto de vista da sociedade de consumo e do capital,
um desperdício de tempo e dinheiro. “Time is Money”, diz o velho clichê
norte-americano. Só faltava o capitalismo invadir o nosso sono e
instrumentalizar nossos sonhos. Faltava, pois já não falta mais.
A história desse processo de
conquista da última fronteira pelo capital—o sono e o dormir—está contada num
livrinho intrigante traduzido aqui na praça, denominado “Capitalismo Tardio e
Os fins do Sono -- 24/7”, de Jonathan Crary, lançado por uma nova editora, a
“Ubu”, criada em 2016.
O autor, professor de estudos
culturais na Universidade de Columbia desde 1989, conta que milhões de dólares
estão sendo investidos em pesquisas privadas e militares para produzir um ser
humano que não durma muito, ou, pelo menos, seja capaz de ficar insone por 24
horas por sete dias, daí o subtítulo 24/7.
Para o Pentágono, esse tipo humano seria um
soldado perfeito, tanto que foram designadas equipes de psicólogos e
neurologistas para realizar e estudar experiências de abstinência de sono,
inclusive o exame dos presos “extraoficiais”
torturados também dessa forma em Guantánamo.
Para a sociedade de consumo, “a
imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de
carências simuladas, subsiste uma das grandes afrontas humanas à voracidade do
capitalismo”—o sono, escreve Crary.
O autor sabe o que muitos de nós
sabemos, isto é, o capitalismo cria “desejos” e “necessidades” artificiais aos
quais estamos expostos e submetidos em nosso estado de vigília diurna. Também é
conhecido o fato de que esses artifícios são destinados a provocar o consumo,
nem sempre ao alcance de todos -- que vão desde um novo carro com maior
potência e rapidez para estradas com limites de velocidade, até uma marca
martelada pela publicidade ou um gadget eletrônico com recursos maiores do que
usamos, ou um novo sabor de comida ou viagens para resorts turísticos que são
verdadeiras ilhas de prazer construído e programado. Para isso, o consumidor precisa
estar atento e desperto.
Desde 2001, após o advento da maior
onda de terrorismo internacional e a instauração de um “Estado de Exceção” nos
EUA e vários outros países, a privação de sono tem sido uma prática de tortura
aplicada a vítimas de “custódia extrajudicial” e a outros presos. Muitos desses
“programas” para prisioneiros foram elaborados sob medida por psicólogos que,
fazendo parte de equipes de consultoria de ciências do comportamento,
procuravam explorar vulnerabilidades emocionais e físicas de cada detento.
A
privação do sono como forma de tortura é usada há muitos séculos, mas sua
aplicação sistemática coincide historicamente com a disponibilidade de luz
elétrica e a facilidade para amplificar o som de modo contínuo, diz Crary. A
polícia política de Stálin, a NKVD, a usava rotineiramente em 1930, como parte
de uma sequência de brutalidades e de violência gratuita que danifica
irreparavelmente seres humanos. Sabe-se que, em experimentos, ratos morrem
depois de três semanas de insônia. Em nós, humanos, é suficiente um período
curto de alguns dias para tal prática induzir a psicose. Após algumas semanas,
surgem danos neurológicos. A falta de sono produz um estado de extrema
submissão e desamparo, tornando possível extrair informações relevantes da vítima,
que confessará ou inventará qualquer coisa. O DOI-Codi, em São Paulo e no Rio,
usava muito esse método durante a repressão à oposição à ditadura militar-civil
de 1964-85.
O que mudou no pós-11 de setembro foi
a naturalidade com que a privação de sono e outras torturas passaram a vigorar,
no combate ao radicalismo islamita. E isso serve de modo especial para as
pesquisas sobre o sono no Departamento de Defesa dos EUA e em outras partes.
Sabe-se que o Pentágono organizou uma equipe e
investiu milhões de dólares na investigação sobre pássaros que migram, em
função das estações, do Alasca até o México, entre eles o pardal da coroa
branca, uma espécie que migra no outono para o sul e na primavera retorna para
o norte. O detalhe é que o pardal da coroa branca tem a capacidade
impressionante de permanecer acordado por até sete dias durante as migrações, o
que permite que voem e naveguem de noite, e procurem por alimento de dia, sem
descansar. Nos últimos seis anos, o Departamento de Defesa norte-americano
gastou uma fortuna para estudar essas criaturas. Cientistas investigam a
atividade cerebral desses pássaros durante a longa vigília, a fim de obter
informações aplicáveis aos seres humanos e saber como as pessoas poderiam ficar
sem dormir e funcionar com eficiência e produtividade. Se o objetivo inicial
era conseguir o soldado que não durma, com a expansão da pesquisa por
corporações privadas essa meta dirigiu-se ao mundo do trabalho e do consumo.
Parece que o livro anuncia um
admirável mundo novo, onde funcionaria uma distopia aterrorizante, onde o sono
estaria abolido. Não é bem assim. Mas não há dúvida que o estudo dos pardais da
coroa branca é apenas uma fração de um amplo esforço científico e militar para
obter algum controle, mesmo que relativo, sobre o sono humano. Diversos
laboratórios estão conduzindo hoje pesquisas avançadas e testes experimentais
de técnicas de privação de sono, recorrendo a substâncias neuroquímicas,
terapia genética e estimulação magnética transcraniana. A meta imediata é
conseguir que alguém fique 24 horas sem dormir por sete dias.
O autor se estende sobre questões filosóficas
e políticas sérias a respeito do sono e do sonhar, lembrando inúmeros
escritores, a começar por Freud, que associaram o dormir ao sonho, “esse
guardião do sono” -- e o sonho a uma fonte de projetos para um futuro melhor da
humanidade.
Diante disso, é preciso ficarmos atentos,
digamos acordados, para não ser possível que a sociedade humana se torne uma
lúgubre e triste distopia de robôs sem alma.
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