sexta-feira, 20 de outubro de 2017

UMA DEMOCRACIA DE TORCEDORES

                            
                                                             Reinaldo Lobo

    O governo brasileiro continua a produzir pacotes de maldades, atendendo as camadas mais privilegiadas da sociedade. A última foi a portaria do Ministério da Agricultura facilitando o trabalho escravo no campo, velha reivindicação dos “ruralistas”. A medida viola os direitos humanos, mas o cinismo de Michel Temer deixa claro que tudo não passa de uma manobra para atrair votos no Congresso a fim de livrá-lo da deposição e da cadeia.
     Estamos assistindo paralisados a um caso único de governo que não se importa com a impopularidade e só age para preservar interesses particulares. É o mais impopular da nossa História desde que existem as pesquisas de opinião. O mais cínico também. As decisões partem de uma constatação negativa: “já que possuímos maioria comprada no Congresso igualmente impopular, não temos nada a perder em adotar medidas contra a população mais pobre e os trabalhadores em geral”. É a “positividade do negativo” para os mais poderosos do País.
      A mídia – os jornais, as revistas, a TV, as redes sociais dirigidas, a publicidade política—têm parte na formação do que o linguista Noam Chomsky chama de “consenso” na opinião pública. Só que, no nosso Brasil, é um consenso negativo: “não há nada a ser feito; não temos nada com isso, pois são todos corruptos; não há solução para a crise política; a economia anda sem os políticos; a Justiça também está comprometida; só um milagre em 2018 poderia salvar-nos”.
       O consenso formado pela mídia era o de que havia uma única causa para os problemas nacionais: a presença do PT no poder. Removido o PT e neutralizada a candidatura de Lula, o que resta? O vazio e o consenso negativo, no qual se apóia Michel Temer.
       Não há modelos positivos em que se apoiar, porque, de fato, o Sistema Corrupto corroeu tudo e a Lava Jato, cujas origens no judiciário são anti-políticas, acabou por atingir potencialmente todas as esferas da área institucional -- inclusive os juízes, atualmente ultrapolitizados. 
    As revistas nacionais insistem que estamos num beco sem saída, eliminando a possibilidade de organização na esfera da sociedade civil e de manifestações populares. Como são conservadores em sua maioria, as revistas e os jornais evitam estimular qualquer pressão de baixo para cima que possa desestabilizar a “lei e a ordem”.
    Não por acaso, o governo Temer tenta aliar-se à mídia conservadora, adotando o slogan da bandeira, Ordem e Progresso, para dizer de que lado está, apesar de corrupto.
    Estabilidade, leis de contenção das reivindicações populares e “austeridade” – são as palavras-de-ordem atuais
     A mídia ocupa um papel dominante na política. Por isso mesmo, um papel perigoso. Rege o espetáculo político, determina quem presta e quem deve ser desprezado, às vezes julga e condena, seleciona os eventos a serem percebidos pelo público e os que devem ser ignorados.
    A seletividade não é resultado de qualquer censura, mas a própria imprensa, que hoje envolve o audiovisual e todo tipo de comunicação rápida, dá forma aos “fatos”. A morte de trabalhadores sem-terra, muitas delas em massacres, ocupa um espaço muito menor do que as brigas pelo poder entre notórios corruptos ou mesmo do que a novela das delações de corrupção. Denúncias contra Lula e o PT ocupam manchetes, enquanto as delações contra conservadores são minimizadas.
    Não se trata de má fé explícita, mas de percepção seletiva, automática e inconsciente. É o trabalho da ideologia, que determina a percepção sem que as pessoas saibam. Mas, muitas vezes, assume a forma de decisão consciente e proposital.
    Cito novamente Chomsky: “Considerando o papel que a mídia ocupa na política contemporânea, somos obrigados a perguntar: em que tipo de mundo e de sociedade queremos viver e, sobretudo, em que espécie de democracia estamos pensando quando desejamos que essa sociedade seja democrática? ”
     Essas observações do filósofo e linguista não valem apenas para o poder na sociedade norte-americana, onde o atual presidente utiliza a mentira e as “fake news” para governar. O fato mais importante é que Trump não inventou as “fake news”, mas elas são o resultado da disseminação dos novos meios de comunicação e da própria imprensa relativista e tendenciosa.
     A “pós verdade” hoje se confunde de modo grave com a própria notícia “regular” da mídia, pela falta de transparência quase generalizada. Se, por um lado, ficou difícil para qualquer governante esconder certos fatos, uma vez que as técnicas contemporâneas permitem até uma notável invasão de privacidade, também é possível, por outro, mascarar, inventar e armar situações onde as aparências podem ser tomadas como “verdades”.
     Aqui no Brasil, onde temos uma democracia de espectadores de TV, de consumidores e de torcedores que assistem às brigas de que o povo não participa, o consenso negativo foi criado para paralisar ações que não se dirijam apenas aos alvos selecionados e que deixem a chamada opinião pública incapaz de se tornar um movimento efetivo de cidadãos.



quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O CINISMO PROTETOR

  

                                                       Reinaldo Lobo*

       O cinismo psíquico é uma defesa sofisticada, usada principalmente pelos adultos. Do que nos defendemos? Da realidade, ou melhor, da dor que ela provoca ou pode causar. Dizemos de algumas profissões como a de policial, de cirurgião, de juiz e de jornalista, que elas expõem seus praticantes a duras experiências da vida. Podem levar ao cinismo, que envolve uma certa indiferença cúmplice e uma anestesia diante da dor infligida ao outro.
     O Brasil é hoje um país com muitos cínicos nesse sentido, gente de quase todas as profissões.
     Uma grande parte do povo que foi às ruas a partir de 2013, pedindo a cabeça dos governantes, agora está paralisada, medrosa ou, sobretudo, cínica. Isso tem a função óbvia de não ver o próprio erro e de não reconhecer as consequências dos seus atos. O alcance de uma atitude política imediatista nos escapa com frequência e pode dar no que está acontecendo agora, no presente de recessão profunda e estagnação econômica.
    Além disso, pode revelar o que ninguém esperava—ou seja, que nossos aliados eram também corruptos, alguns até há mais tempo do que aqueles que imaginávamos.
    O cinismo protege também de ver a miséria, a destruição da natureza, as leis arbitrárias e regressivas, a perseguição às minorias, o fanatismo religioso a serviço do dinheiro, o massacre de jovens nas favelas, a inoperância do combate às drogas, a eliminação de direitos humanos e trabalhistas e a enxurrada de leis aprovadas em benefício de bilionários e aproveitadores dos recursos públicos.
      A irmã do cinismo é a hipocrisia, outro recurso pré-consciente e, às vezes, consciente, destinado a reassegurar uma pessoa ou um grupo.
     Não deixa de ser uma ironia bizarra sabermos que boa parte dos que ostentavam cartazes e gritavam contra a corrupção eram, eles próprios, notórios corruptos. Geddel Vieira Lima, por exemplo, estava na linha de frente das manifestações de camisas amarelas e, agora, tudo indica que é o dono daquelas malas com mais de 50 milhões de reais achadas em apartamento de sua propriedade. Assim como não deixa de ser ridículo, mas revelador, que personagens como o ator pornô Alexandre Frota esteja também à frente dos protestos moralistas contra a nudez em museus, ou, ainda, que se lance um olhar pedófilo recalcado sobre uma performance no MAM.
          O preconceito consiste em julgar um fato ou um fenômeno baseado em apenas informações parciais. É assim que um antissemita justifica sua generalização a partir de uma experiência com um judeu determinado ou por sua estranheza em relação a hábitos que não entende ou não conhece o suficiente.
         Essa extensão no julgamento é frequente igualmente na avaliação dos políticos, como defesa em relação à constatação de que aqueles nos quais votamos também prevaricaram: “Todos são iguais, devem ser punidos igualmente com a violência da Lei! ”.
        O cínico atribui a culpa ao outro e lava as mãos.  Pilatos pode ser considerado um dos pioneiros do cinismo comportamental. Interessante é o seu recurso à inação, que, na verdade, é um ato. Parece um gesto de complacência, neutralidade e de democracia, mas consiste numa tomada de posição. Pilatos escolheu o seu lado, romano, deixando para o povo a decisão que sua própria lei e seu pessoal executou.
         No Brasil atual, Pilatos encarnou na forma de uma parte do povo, que se recusa a agir contra a máfia que empalmou o poder na onda de ódio anti-petista. Aceitar que certos atores políticos são parte de um antigo Sistema Corrupto é dar aval ao petismo. O PT virou a Gení da atualidade. O ódio e o pseudomoralismo exacerbado de juízes e promotores estão levando a desastres como o suicídio daquele reitor da Universidade Federal do Paraná, que se jogou do alto do vão livre de um shopping.
        Agir saindo às ruas ou protestando contra o governo Temer seria reconhecer a precipitação, a parcialidade, o excesso, o erro, a ingenuidade política, mas, sobretudo, constituiria violar uma lei ideológica atacando um governo que, apesar de acusado de corrupto como o anterior, é conveniente para setores adeptos do capitalismo de resultados.
       Boa parte das nossas classes médias está surfando a onda do “todos são iguais, mas alguns são nossos iguais”. Há, para esses, alguns corruptos chiques que devem ser mais tolerados do que os sindicalistas “vulgares e deselegantes”. Daí o silêncio cínico.
       O cinismo a que nos referimos tem pouco ou nada a ver com o cinismo filosófico, aquela doutrina criada por Antístenes de Atenas (444-365 a.C.), que pregava uma vida simples e natural, uma felicidade desapegada de riquezas, artifícios e frivolidades e que tomava a vida dos cães como uma espécie de modelo ideal da simplicidade. A única ligação possível com o sentido original da palavra, hoje deformada, talvez seja a indiferença, comum ao desapego grego aos bens e riquezas vigentes e, hoje, o gesto de virar os olhos para lá diante da imoralidade evidente “dos iguais”, cheios de riquezas e de bens.

        O cinismo a que nos referimos é diferente da filosofia antiga, pois aplaca a consciência dos que não querem enxergar a corrupção, a riqueza ilegal e o abuso daqueles que amavam, toleravam, e até agora toleram. Muitos dos que votaram em Aécio Neves, por exemplo, só querem ouvir falar de outros corruptos e, apesar de prometerem não votar mais nele, lastimam sua decadência política: “um rapaz tão igual a nós, simpático e bem vestido”.
       O cinismo psíqu