quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

O ANO DA GRAÇA DE 1968



                                                           Reinaldo Lobo

      Há 50 anos, aconteceu um milagre no mundo. Não foi nada religioso nem um produto da fé. Foi um espantoso evento histórico, inesperado por todos: uma brecha se abriu nos sistemas de poder mundiais. Por essa fenda, passaram vietcongs, mulheres, negros e minorias, estudantes de Paris e de São Paulo, de San Francisco, de Praga e de Tóquio, artistas, desempregados, hippies e roqueiros. Atrás desse cortejo, entraram os operários e trabalhadores em geral, puxados por antigos partidos comunistas e outras denominações ideológicas.
      Por um instante apenas, um grão na história de civilização, a humanidade inteira se viu diante de uma revolução diferente, inédita, que parecia mudar quase todos os valores, derrubar preconceitos milenares e abrir um futuro mais brilhante dos que surgiram após as revoluções francesa, de 1789, e russa, de 1917.
     As mulheres, que vinham entrando para o mercado de trabalho e para a cultura, passaram corajosamente por essa brecha e começaram a transformação que o nosso escritor Tristão de Ataíde considerou a única revolução exitosa do século XX, a feminina.
     Os negros norte-americanos puseram-se em marchas históricas, conquistaram os direitos civis e o sonho de Martin Luther King, assassinado em abril desse ano luminoso e violento, começaria sua realização na eleição de Barack Obama, décadas depois.
     Nas ruas de Paris e de várias cidades europeias, houve um surto de imaginação e elas se encheram de pichações criativas, como: “É proibido proibir”; “A Imaginação ao Poder”; “Rompam as cadeias infernais”; “Debaixo dos paralelepípedos, a praia”;  “Sejam realistas: peçam o impossível”.
    Foi o tempo de Bob Dylan e de John Lennon, que invocavam a paz e o amor. Foi o tempo da liberação sexual, da anti-psiquiatria, da ascensão do respeito à diversidade e  das comunidades alternativas--as “famílias” formadas por jovens e adultos que se escolhiam para viver juntos.
     Por um breve momento histórico, tudo parecia possível: a queda das oligarquias liberais ocidentais e das burocracias comunistas. No Ocidente e no Leste, surgiram fenômenos de massa como as rebeliões em Berkeley, manifestações em Londres e Belfast, e a Revolução Cultural chinesa, percebida por Mao Tsé-tung e canalizada em seu proveito. Na Polônia, na Hungria, na então Tchecoslováquia, estudantes saíram às ruas e pediram liberdade para todos. Pode-se dizer hoje, sem risco de errar, que a queda da União Soviética começou no Ano da Graça de 1968, com a chama anti-burocrática iniciada.
       Na América Latina, na África e na Ásia, os movimentos ocorreram principalmente guerrilhas de libertação nacional, para tentar pôr abaixo ditaduras sangrentas e regimes corruptos. Os jovens latino-americanos perceberam -- na esteira da Revolução Cubana e inspirados por um ícone de 68, Che Guevara-- que era possível fazer uma revolução fora dos partidos comunistas e até contra eles.
       No sudeste da Ásia, no minúsculo Vietnã o ano começou com a maior ofensiva guerrilheira contra mais de 400 mil soldados ocupantes norte-americanos, a ofensiva do Ano Novo, temporada das chuvas e da lama. Nesse momento, a guerra virou completamente a favor dos guerrilheiros vietcongs e das tropas norte-vietnamitas e culminou com a primeira grande derrota do império norte-americano desde o seu triunfo na Segunda Guerra Mundial.
      Os conservadores costumam dizer que a guerra do Vietnã foi perdida no Ocidente, em função dos movimentos a favor da paz dentro dos EUA . Talvez eles tenham razão, em parte, pois houve mesmo uma onda mundial de protestos pacifistas e,  nos EUA, as mortes dos jovens norte-americanos foram transmitidas pela primeira vez na TV. Mães no Texas ou em Nova York  chegaram a ver seus filhos mortos ou mutilados, carregados nas macas de guerra.
      Vários historiadores contemporâneos, sobretudo os conservadores, fazem uma avaliação negativa de 1968, que, afinal, não chegaria a se consumar integralmente como uma revolução. Alguns ressaltam o fato de não ter surgido nenhum poder e nenhum regime derivado do movimento.
     Ora,  o objetivo dos vários levantes internacionais de 1968 foi justamente o de negar os regimes existentes e de criticar as formas clássicas de poder. Foram movimentos libertários, que desconstruíram a política tradicional e propuseram novas relações no interior das sociedades existentes, assim como novas formas de poder menos hierárquicas e mais participativas. Alguns deles mostraram justamente que o poder está difundido na estrutura das sociedades e que só a criação de contra poderes e de uma contracultura poderiam fazer avançar a emancipação humana.
     Intelectuais franceses de direita exaltam 1968 por sua crítica do totalitarismo e um pretenso elogio do individualismo, que viriam desembocar no pós-modernismo e no neoliberalismo. Essa é uma interpretação equivocada e uma distorção ideológica. Assim como os comunistas tradicionais, que lamentam os movimentos daquele ano por não chegarem a tomar nenhum Palácio de Inverno e por abrirem caminho para uma reação da direita, os pensadores de direita confundiram com individualismo a busca pela emancipação, des-alienação e autonomia.  
     1968 é mesmo um ano que não acabou--como disse uma vez, com outro significado, o escritor brasileiro Zuenir Ventura. Foi um período que, além de ter aberto a discussão sobre o sentido de uma revolução, estimulou uma transvaloração de todos os valores existentes, introduziu uma nova noção de luta social, abriu caminho para os movimentos LGBT, feministas, ecológicos e antirracistas e deixa o futuro aberto para a criação de novas maneiras de resolver as questões políticas e sociais.

      Surgiu, em consequência dele, uma disputa sobre os comportamentos e valores que-- pode-se dizer-- deu origem a uma esquerda e a uma direita que se digladiam na esfera “comportamental”. Mas, sobretudo, o ano de 1968 representou a esperança de liberdade para toda uma geração de seres humanos, inclusive para aqueles que ainda estão por vir.

A ERA DO LUSCO-FUSCO


                                                                     
                                                                      Reinaldo Lobo


              Não é noite nem dia, a luz não é clara nem escura. É a hora do lusco-fusco, o crepúsculo vespertino ou matutino, quando o Sol se põe ou está nascendo. É o momento mais perigoso nas estradas, os motoristas adormecem ao volante, enxergam com dificuldade e as estatísticas exigem muita atenção e farol aceso. Um instante de transição perigoso.
              Nossa época está um pouco assim, no lusco-fusco. As significações sociais estão derretendo, várias instituições mudam com a velocidade da internet, a política oficial faliu,  as identidades pessoais e sociais são difíceis de discernir : pais não sabem o que fazer, homens inseguros, mulheres em estado de dúvida quanto ao seu lugar, filhos em plena mutação no ciberespaço e nos games, as famílias com várias configurações, a sexualidade cambiante, diversa e complexa, as imagens rápidas povoam a mídia, os computadores pessoais e os sonhos são distópicos. Têm-se a impressão de que não temos mais uma humanidade, mas fractais do que outrora foi o ser humano.
             Vivemos em uma época interessante, ainda que o antigo sábio chinês dissesse que Deus deveria nos poupar de viver em épocas interessantes, pois costumam ser as mais desastrosas.
            Na verdade, não sabemos, por enquanto, se o lusco-fusco em que estamos mergulhados é um crepúsculo ou um alvorecer, mas há uma evidente falta de clareza e visibilidade.  Nos anos setenta, na virada para o que Bauman chamou de “modernidade líquida”, o poeta mexicano Octávio Paz usou uma metáfora meteorológica para dizer que estávamos entrando num “tempo nublado”. Os sintomas seriam a decadência das ideologias que sustentavam a existência da Guerra Fria, a revolução cultural de Maio de 1968, o levante das novas gerações no mundo todo, a ascensão das mulheres ao trabalho e à igualdade de direitos, a explosão dos direitos civis nos EUA e na Europa, a natureza indiferenciada das novas   sociedades pós-industriais e os efeitos na arte, como a mutação nas narrativas, na poesia e nas expressões visuais.
          Hoje, depois da globalização e das resistências a ela, a situação ficou mais embaçada. A emergência do terrorismo, do novo racismo contra refugiados e a rejeição a culturas diferentes, trouxeram traços complicados ao quadro civilizatório que pareciam superados pela modernidade.   A atitude adequada diante desse panorama difuso não parece ser julgar – julgar as mudanças como se fossem más ou boas--, mas observar, primeiro, antes do juízo da razão prática.
            Há indicações de que o terrorismo veio para fazer parte da vida do século XXI, assim como o individualismo possessivo do capitalismo deve permanecer por algum tempo no nosso horizonte. Estão-se “naturalizando”. A teoria difundida nas últimas décadas de que “todos são vítimas e, portanto, não há carrascos”, parece prevalecer no clima depressivo do lusco-fusco vespertino. Se estivermos em uma era de decadência, os sinais e os novos hábitos apontam para uma crise civilizatória sem precedentes – e não temos a bússola funcional para dar uma direção melhor aos acontecimentos.
            Houve um período em que muitos esperávamos uma revolução redentora, capaz de emancipar de uma só vez a humanidade. Era a época do triunfo da razão, do progresso, da educação e dos “amanhãs que cantam”.
           Hoje, desconfiamos não só do conceito de revolução como da própria ideia de humanidade. Como diria Woody Allen: “Deus morreu, Marx morreu, o Homem morreu, e eu não estou passando muito bem”.
           Os filósofos da “modernidade líquida” não mais tratam a questão da identidade com os modelos racionais tradicionais. Um cientista Prêmio Nobel, Ylia Prigogine, escreveu um livro “A Era da Incerteza”, partindo do interior da própria ciência, que hoje desconfia de seus axiomas e postulados, da objetividade e da verdade, em função da Física contemporânea que trabalha com o infinitamente pequeno e suas variações.
            Atualmente, talvez seja preciso desenvolver uma reflexão que seja mais relacionada à dinâmica do transitório e do efêmero do que do universal e perene, mas sem perder de vista a dimensão histórica que nos é comum a todos. Não é tarefa fácil.
           A dificuldade de enxergar no crepúsculo ou no amanhecer leva muita gente para as certezas da religião, daí, talvez, a grande difusão e crescimento dos fundamentalismos. O fanatismo decorrente causa traumas sociais, políticos, o fechamento dos horizontes, o reaparecimento do autoritarismo e do totalitarismo e, possivelmente, pode ser o nosso maior desafio atual.  A luta principal, hoje, como diz Amós Óz, ocorre entre as pessoas de lucidez democrática e o fanatismo. Mas a questão fundamental -- a principal contradição ética e política--, continua a ser entre a civilização e a barbárie.
         É razoável pensar que existem formas de religião, maneiras de fazer política e estruturas sociais que conduzem mais os homens e mulheres à barbárie do que outras. Também é o caso de pensarmos, ao contrário, em modos de se comunicar e de usar os meios eletrônicos disponíveis que nos emancipem mais do que mídia atual e sua enxurrada de informação mal digerida.
        Buscar e imaginar essas alternativas capazes de abrir caminho no nevoeiro ou enxergar melhor na hora do lusco-fusco pode ser a única esperança real para os novos anos que temos pela frente.