Reinaldo Lobo
Não é noite nem dia, a luz não é
clara nem escura. É a hora do lusco-fusco, o crepúsculo vespertino ou matutino,
quando o Sol se põe ou está nascendo. É o momento mais perigoso nas estradas,
os motoristas adormecem ao volante, enxergam com dificuldade e as estatísticas
exigem muita atenção e farol aceso. Um instante de transição perigoso.
Nossa época está um pouco assim,
no lusco-fusco. As significações sociais estão derretendo, várias instituições
mudam com a velocidade da internet, a política oficial faliu, as identidades pessoais e sociais são difíceis
de discernir : pais não sabem o que fazer, homens inseguros, mulheres em estado
de dúvida quanto ao seu lugar, filhos em plena mutação no ciberespaço e nos
games, as famílias com várias configurações, a sexualidade cambiante, diversa e
complexa, as imagens rápidas povoam a mídia, os computadores pessoais e os
sonhos são distópicos. Têm-se a impressão de que não temos mais uma humanidade,
mas fractais do que outrora foi o ser humano.
Vivemos em uma época interessante,
ainda que o antigo sábio chinês dissesse que Deus deveria nos poupar de viver
em épocas interessantes, pois costumam ser as mais desastrosas.
Na verdade, não sabemos, por
enquanto, se o lusco-fusco em que estamos mergulhados é um crepúsculo ou um
alvorecer, mas há uma evidente falta de clareza e visibilidade. Nos anos setenta, na virada para o que Bauman
chamou de “modernidade líquida”, o poeta mexicano Octávio Paz usou uma metáfora
meteorológica para dizer que estávamos entrando num “tempo nublado”. Os
sintomas seriam a decadência das ideologias que sustentavam a existência da
Guerra Fria, a revolução cultural de Maio de 1968, o levante das novas gerações
no mundo todo, a ascensão das mulheres ao trabalho e à igualdade de direitos, a
explosão dos direitos civis nos EUA e na Europa, a natureza indiferenciada das
novas sociedades pós-industriais e os
efeitos na arte, como a mutação nas narrativas, na poesia e nas expressões
visuais.
Hoje, depois da globalização e das
resistências a ela, a situação ficou mais embaçada. A emergência do terrorismo,
do novo racismo contra refugiados e a rejeição a culturas diferentes, trouxeram
traços complicados ao quadro civilizatório que pareciam superados pela
modernidade. A atitude adequada diante desse panorama
difuso não parece ser julgar – julgar as mudanças como se fossem más ou boas--,
mas observar, primeiro, antes do juízo da razão prática.
Há indicações de que o terrorismo
veio para fazer parte da vida do século XXI, assim como o individualismo
possessivo do capitalismo deve permanecer por algum tempo no nosso horizonte.
Estão-se “naturalizando”. A teoria difundida nas últimas décadas de que “todos
são vítimas e, portanto, não há carrascos”, parece prevalecer no clima
depressivo do lusco-fusco vespertino. Se estivermos em uma era de decadência,
os sinais e os novos hábitos apontam para uma crise civilizatória sem
precedentes – e não temos a bússola funcional para dar uma direção melhor aos
acontecimentos.
Houve um período em que muitos
esperávamos uma revolução redentora, capaz de emancipar de uma só vez a
humanidade. Era a época do triunfo da razão, do progresso, da educação e dos “amanhãs
que cantam”.
Hoje, desconfiamos não só do
conceito de revolução como da própria ideia de humanidade. Como diria Woody Allen:
“Deus morreu, Marx morreu, o Homem morreu, e eu não estou passando muito bem”.
Os filósofos da “modernidade
líquida” não mais tratam a questão da identidade com os modelos racionais
tradicionais. Um cientista Prêmio Nobel, Ylia Prigogine, escreveu um livro “A
Era da Incerteza”, partindo do interior da própria ciência, que hoje desconfia
de seus axiomas e postulados, da objetividade e da verdade, em função da Física
contemporânea que trabalha com o infinitamente pequeno e suas variações.
Atualmente, talvez seja preciso
desenvolver uma reflexão que seja mais relacionada à dinâmica do transitório e
do efêmero do que do universal e perene, mas sem perder de vista a dimensão
histórica que nos é comum a todos. Não é tarefa fácil.
A dificuldade de enxergar no
crepúsculo ou no amanhecer leva muita gente para as certezas da religião, daí,
talvez, a grande difusão e crescimento dos fundamentalismos. O fanatismo
decorrente causa traumas sociais, políticos, o fechamento dos horizontes, o
reaparecimento do autoritarismo e do totalitarismo e, possivelmente, pode ser o
nosso maior desafio atual. A luta
principal, hoje, como diz Amós Óz, ocorre entre as pessoas de lucidez
democrática e o fanatismo. Mas a questão fundamental -- a principal contradição
ética e política--, continua a ser entre a civilização e a barbárie.
É razoável pensar que existem formas
de religião, maneiras de fazer política e estruturas sociais que conduzem mais
os homens e mulheres à barbárie do que outras. Também é o caso de pensarmos, ao
contrário, em modos de se comunicar e de usar os meios eletrônicos disponíveis
que nos emancipem mais do que mídia atual e sua enxurrada de informação mal
digerida.
Buscar e imaginar essas alternativas
capazes de abrir caminho no nevoeiro ou enxergar melhor na hora do lusco-fusco pode
ser a única esperança real para os novos anos que temos pela frente.
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