quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

A ERA DO LUSCO-FUSCO


                                                                     
                                                                      Reinaldo Lobo


              Não é noite nem dia, a luz não é clara nem escura. É a hora do lusco-fusco, o crepúsculo vespertino ou matutino, quando o Sol se põe ou está nascendo. É o momento mais perigoso nas estradas, os motoristas adormecem ao volante, enxergam com dificuldade e as estatísticas exigem muita atenção e farol aceso. Um instante de transição perigoso.
              Nossa época está um pouco assim, no lusco-fusco. As significações sociais estão derretendo, várias instituições mudam com a velocidade da internet, a política oficial faliu,  as identidades pessoais e sociais são difíceis de discernir : pais não sabem o que fazer, homens inseguros, mulheres em estado de dúvida quanto ao seu lugar, filhos em plena mutação no ciberespaço e nos games, as famílias com várias configurações, a sexualidade cambiante, diversa e complexa, as imagens rápidas povoam a mídia, os computadores pessoais e os sonhos são distópicos. Têm-se a impressão de que não temos mais uma humanidade, mas fractais do que outrora foi o ser humano.
             Vivemos em uma época interessante, ainda que o antigo sábio chinês dissesse que Deus deveria nos poupar de viver em épocas interessantes, pois costumam ser as mais desastrosas.
            Na verdade, não sabemos, por enquanto, se o lusco-fusco em que estamos mergulhados é um crepúsculo ou um alvorecer, mas há uma evidente falta de clareza e visibilidade.  Nos anos setenta, na virada para o que Bauman chamou de “modernidade líquida”, o poeta mexicano Octávio Paz usou uma metáfora meteorológica para dizer que estávamos entrando num “tempo nublado”. Os sintomas seriam a decadência das ideologias que sustentavam a existência da Guerra Fria, a revolução cultural de Maio de 1968, o levante das novas gerações no mundo todo, a ascensão das mulheres ao trabalho e à igualdade de direitos, a explosão dos direitos civis nos EUA e na Europa, a natureza indiferenciada das novas   sociedades pós-industriais e os efeitos na arte, como a mutação nas narrativas, na poesia e nas expressões visuais.
          Hoje, depois da globalização e das resistências a ela, a situação ficou mais embaçada. A emergência do terrorismo, do novo racismo contra refugiados e a rejeição a culturas diferentes, trouxeram traços complicados ao quadro civilizatório que pareciam superados pela modernidade.   A atitude adequada diante desse panorama difuso não parece ser julgar – julgar as mudanças como se fossem más ou boas--, mas observar, primeiro, antes do juízo da razão prática.
            Há indicações de que o terrorismo veio para fazer parte da vida do século XXI, assim como o individualismo possessivo do capitalismo deve permanecer por algum tempo no nosso horizonte. Estão-se “naturalizando”. A teoria difundida nas últimas décadas de que “todos são vítimas e, portanto, não há carrascos”, parece prevalecer no clima depressivo do lusco-fusco vespertino. Se estivermos em uma era de decadência, os sinais e os novos hábitos apontam para uma crise civilizatória sem precedentes – e não temos a bússola funcional para dar uma direção melhor aos acontecimentos.
            Houve um período em que muitos esperávamos uma revolução redentora, capaz de emancipar de uma só vez a humanidade. Era a época do triunfo da razão, do progresso, da educação e dos “amanhãs que cantam”.
           Hoje, desconfiamos não só do conceito de revolução como da própria ideia de humanidade. Como diria Woody Allen: “Deus morreu, Marx morreu, o Homem morreu, e eu não estou passando muito bem”.
           Os filósofos da “modernidade líquida” não mais tratam a questão da identidade com os modelos racionais tradicionais. Um cientista Prêmio Nobel, Ylia Prigogine, escreveu um livro “A Era da Incerteza”, partindo do interior da própria ciência, que hoje desconfia de seus axiomas e postulados, da objetividade e da verdade, em função da Física contemporânea que trabalha com o infinitamente pequeno e suas variações.
            Atualmente, talvez seja preciso desenvolver uma reflexão que seja mais relacionada à dinâmica do transitório e do efêmero do que do universal e perene, mas sem perder de vista a dimensão histórica que nos é comum a todos. Não é tarefa fácil.
           A dificuldade de enxergar no crepúsculo ou no amanhecer leva muita gente para as certezas da religião, daí, talvez, a grande difusão e crescimento dos fundamentalismos. O fanatismo decorrente causa traumas sociais, políticos, o fechamento dos horizontes, o reaparecimento do autoritarismo e do totalitarismo e, possivelmente, pode ser o nosso maior desafio atual.  A luta principal, hoje, como diz Amós Óz, ocorre entre as pessoas de lucidez democrática e o fanatismo. Mas a questão fundamental -- a principal contradição ética e política--, continua a ser entre a civilização e a barbárie.
         É razoável pensar que existem formas de religião, maneiras de fazer política e estruturas sociais que conduzem mais os homens e mulheres à barbárie do que outras. Também é o caso de pensarmos, ao contrário, em modos de se comunicar e de usar os meios eletrônicos disponíveis que nos emancipem mais do que mídia atual e sua enxurrada de informação mal digerida.
        Buscar e imaginar essas alternativas capazes de abrir caminho no nevoeiro ou enxergar melhor na hora do lusco-fusco pode ser a única esperança real para os novos anos que temos pela frente.
 

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