Reinaldo Lobo
Ainda não vivemos inteiramente
no mundo de “Black Mirror”, a série de terror tecnológico, mas caminhamos para uma
época de automação no trabalho e de controle eletrônico por uma nova classe de
comando na sociedade: a “cognicracia”. São os “nerds” e “geeks”, detentores do
conhecimento e das informações, que servem de agentes da globalização e do
capital financeiro na economia atual. Parece que as máquinas assumem o
controle, contudo, é “a economia, estupido!”, já dizia Bill Clinton.
Tem havido uma rápida e nada sutil
mutação social no trabalho e na subjetividade humana. Está difícil até mesmo
considerarmos a imagem tradicional de “humanidade” nesta era de autômatos,
cartões, celulares, chips, robôs, drones e controle da privacidade.
Não
nos enganemos: o que move essa transformação é a lógica do capital, agora
internacionalizado ao extremo na sua forma financeira, particularmente
perversa.
As novas gerações são convidadas a
ressaltar a figura do economista em detrimento do político. Do “técnico” em
lugar do cidadão. Os efeitos da mutação em escala global da economia são a
precarização do emprego, a desterritorialização, o declínio da burguesia e do
proletariado e sua substituição gradual pelo “cognitariado” e a classe
executiva financeira, a submissão dos trabalhadores por dispositivos de
automação e controle, cujos resultados incluem um obstáculo para criar formas
de solidariedade e de relações do tipo pessoal ou corpo a corpo.
Esse quadro tem sido muito bem descrito
nos livros e entrevistas do filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, que acaba
de lançar “Fenomenologia do fim. Sensibilidade e mutação conectiva (Caixa
Preta)”, sobre a verdadeira mutação antropológica pela qual estaria passando
hoje a humanidade. Ativista dos movimentos autonomistas em seu país, Berardi é
também autor, entre outros, de “A Fábrica da Infelicidade”; “Geração Pós-alfa”
e “A sublevação”, obras onde aborda especificamente essas transformações da
subjetividade e do trabalho na economia do capitalismo avançado ou “pós moderno”.
Como Zygmunt Bauman, o filósofo italiano
vê uma especificidade no capitalismo atual, que não se resume à destruição de
valores tradicionais ou à dissolução no ar de tudo o que era sólido. Vai além:
estamos diante da construção de uma nova concepção de humanidade, isto é, uma
diferente forma de ver e conceber um ser humano, sua mente e seu comportamento.
Diferente de Bauman, Berardi não se detém na questão do tempo (tempo líquido e
velocidade), mas considera isso implícito e descreve a estrutura comunicacional
submetida ao capital.
O “fim” de que fala Berardi é a
transformação do humano, devida à “abstração e à aceleração frenética
provocadas pela transição tecnológica em direção ao meio digital”.
Numa entrevista concedida ao jornal argentino
“Clarín”, Berardi mostra que “a exposição incessante da sociedade a fluxos de
informação, em convergência com o novo modo do capitalismo (o que chama de
“absolutismo capitalista”), corrói as capacidades humanas de empatia, supera as
possibilidades neuronais de atenção, debilita as condições para transformar a
esfera social através da vontade política”. Tudo isso tem como efeito a perturbação
ou a eliminação: do gozo, da crítica, da decisão política, da sensibilidade (a
faculdade de compreender o “tácito”), do erotismo (a habilidade “de perceber o
corpo do outro como uma extensão viva do meu próprio corpo”).
Berardi considera que os efeitos dessa
automação humana sobre nossa sensibilidade são desastrosos e acredita que,
“diante da perda de eficácia da política, está na hora de desconectar as
“concatenações estressantes” que só conduzem ao pânico, à solidão e à
depressão”.
A mutação cognitiva e antropológica a que
assistimos é uma parte importante da decadência da política e da ação no espaço
público. Berardi tem razão em apontar o impacto disso. Mas, ao nosso ver, a
emergência dos meios eletrônicos tem duas faces: uma, é negativa, pois envolve,
aliena e distrai o cidadão de seu papel e o isola; a outra, pode ter um
potencial positivo de resistência – a rede social de comunicação instantânea e
internacional possibilita aglutinar as pessoas de diferentes locais e mobilizar
massas.
Essa visão distópica da modernidade,
apesar de conter lúgubres verdades importantes, peca pela falta de visão
dialética. Há contradições evidentes na forma pela qual se apresenta a
comunicação eletrônica que está disponibilizada para o consumo. Não só os nerds
e geeks do capital têm acesso a ela. Uma
face é unidimensional e induz à submissão automática; a outra é expansiva do
contato e da mobilização. Grandes movimentos mundiais foram convocados por
meios eletrônicos. Os hackers existem e figuras como Julian Assange e Edward Snowden
representam expressões dessa possibilidade de resistência.
Uma face democrática de participação
direta por meios eletrônicos também pode ser vista no futuro da humanidade.
Aliás, já acontece na forma de vários tipos de interação. Consultas populares,
plebiscitos, voto eletrônico, pesquisas de opinião pública, controle de qualidade,
recalls e outros recursos apontam para uma democratização participativa a ser
explorada a favor da cidadania. Não é impossível sermos imaginativos e
vislumbrarmos uma “Eclésia” grega onde os participantes possam tomar decisões
rápidas sobre questões coletivas.
Há, sem dúvida, uma decadência da política
tradicional e uma exaltação do economista, assim como do tecnólogo da
comunicação a serviço do capital. Isso tem consequências negativas e
destrutivas. Mas há também o oposto disso, que é a possibilidade de resistência
e de resgate da política por outros meios.
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