terça-feira, 20 de março de 2018

UMA CULTURA DA VINGANÇA




                                                                         Reinaldo Lobo

          Para que haja oxigênio da vida psíquica é preciso um ambiente de suficiente reconhecimento, aceitação, confirmação e validação. Quando não existe essa atmosfera, a pessoa busca adaptações para o seu Eu nas formas mais difíceis, às vezes bizarras. Uma delas é o crime.
        Boa parte da violência, ainda que não toda, existente na cultura norte-americana ultracompetitiva, deriva do que podem ser chamados de ferimentos narcísicos. Um sujeito humilhado, sentindo-se um “loser” (perdedor), com o seu Eu ameaçado de decomposição, arma-se com a facilidade encontrada nos Estados Unidos e sai à caça de seus agressores reais ou imaginários.
       Todos já vimos isso no cinema, mas também nos noticiários. Um clássico da cultura norte-americana foi aquele filme “Um dia de Fúria”, com Michael Douglas no papel central. Um homem desempregado perde a família e o direito de ver o filho, enche uma sacola de armas e passa o dia se vingando de todos os que possam humilhá-lo ou que representem um sistema de constrangimento ao indivíduo. Tem um detetive encarregado de prendê-lo, em sua última semana de trabalho, que revela uma certa empatia com o furioso, pois entende que não se trata de um psicopata, mas de um ser humano profundamente ferido em seu amor próprio.
        É isso que acontece em uma cultura da vingança: a pessoa humilhada sente-se no direito de buscar “retribution”, que, em inglês, significa um gesto vingativo.
         A cultura norte-americana é complexa, não se resume obviamente a isso, mas apresenta características de um meio ambiente que exige, por um lado, o “sucesso”, a liberdade e o culto do Eu individual, às vezes à custa de enormes sacrifícios e a qualquer preço. Ao mesmo tempo, por outro lado, prega o comunitarismo e a participação coletiva. O indivíduo precisa ser um “winner” (um vencedor) e, se não o conseguir, tem o direito a uma “segunda chance”. O reconhecimento coletivo está atrelado ao “sucesso”.
        O peso dessas exigências sobre adolescentes e crianças é bem grande. Se somarmos a esse “superego cruel” o bombardeio midiático dos filmes, séries, internet, redes sociais e também as notícias das guerras no exterior de seus compatriotas, no Iraque, no Afeganistão, contra as “ameaças terroristas” imaginárias ou verdadeiras, assim como a própria criminalidade interna, teremos um quadro assustador que explica, em parte, os massacres nas escolas e os tiroteios a bala. E, se surge um presidente à moda do faroeste como Trump, sugerindo que os professores deem aula armados, então o quadro fica ainda mais preocupante.
      O cowboy e os super-heróis são, em parte, os modelos da liberdade individual no imaginário instituído norte-americano. Andar armado é uma expressão do individualismo possessivo, em defesa da propriedade e da família. Mas quando a própria família está confusa, os pais estão perdidos em seus valores e buscam especialistas para tudo na educação dos filhos, o resultado pode ser uma exacerbação do narcisismo e da autoafirmação. Entrar armado na escola é o sintoma de uma cultura da onipotência e da fragilidade do Eu.
       O exemplo de “Um Dia de Fúria” expõe um caso de “furor narcísico”, quando o sujeito está desmoronando pelo ferimento em seu orgulho pessoal, que é o nome popular do narcisismo. O narcisismo não é sempre patológico nem uma coisa feia, pois significa também amor próprio, isto é, investimento pulsional no próprio Eu (“self”), condição para sua integração.
       Pessoas com vulnerabilidade narcísica, que não tiveram na infância suficiente acolhimento ou sofreram algum mal-entendido nessa área, tendem a formar defesas narcísicas exacerbadas, como uma “pele psíquica” grossa, onde o outro é ignorado, desprezado e/ou uma ameaça. Em outros casos, apresentam defesas tão frágeis (“pele fina”) que desmoronam diante de qualquer crítica, ameaças externas ou mesmo internas, na forma de ideias autocríticas e melancólicas.
       Ninguém pode acreditar que seja saudável uma pessoa que se arma para fuzilar outras em público, efeito da raiva por se sentir inferiorizada e humilhada. Nem que esteja usando uma defesa adequada. Mesmo que a “causa” alegada seja boa. Algumas dessas patologias do narcisismo conduzem o sujeito para o terrorismo como forma de justificar a sua raiva. Jovem ou não, criança, adolescente ou adulto, o indivíduo que extravasa sua raiva solitária pela supressão do outro, racionalizando sua dificuldade na forma de religião e ideologia, está revelando seu entranhamento narcísico e sua impossibilidade que considerar alguém como um ser humano igual.
     A crença íntima, mais ou menos consciente, do assassino solitário é a de que seu Eu será restaurado pela vingança brutal.
      Nesses casos, o assassinato é um gesto de puro egoísmo, como se diz. Não há nada de heroico, mas apenas desespero e falta de saída psíquica, como no suicídio. Aliás, muitos dos autores de massacres se matam em seguida, pois têm uma noção do que fizeram, além da possível culpa que acompanha a vergonha (um sentimento narcísico típico) e a impossibilidade de racionalizar seu gesto em sua radicalidade. A motivação vem da ferida narcísica e não da situação errada em que o mundo possa se encontrar. A violência, em si mesma, não tem justificação.
      Entender os motivos da violência não significa justificá-la. Alguns atos violentos são tão radicais que revelam um superego de tal modo cruel e punitivo, uma espécie de repressão tão severa -- como dizia, por exemplo, Melanie Klein--, que só restam a polícia ou a morte como formas de amenizá-la. Esse é um paradoxo do ideal de ego patológico: a exigência moral é tanta, a punição à transgressão e à imperfeição é tamanha, que só resta ao sujeito se tornar um psicopata.  Faltou-lhe em grau máximo um ambiente psíquico seguro-- na sua história pessoal e familiar e nos seus primeiros relacionamentos-- que oxigenasse o seu Eu com respeito mútuo, dignidade em lugar de orgulho, amor relacional e amor próprio suficientes. O indivíduo é tomado pelos seus conflitos, mas prevalece uma enorme onipotência, uma dose suplementar de crença onipotente, pois a transição suave da doce ilusão de onipotência primária falhou.
     Seria simplista supor que só a existência das armas liberadas explicaria a violência na cultura norte-americana. Existem os valores de cowboys amedrontados, a desigualdade social que precisa ser vencida heroicamente por “winners”, a vergonha de não ter reconhecimento e a patologia egocêntrica que não afeta só norte-americanos. Todos nós estamos sujeitos à fúria narcísica, em crises ao longo da vida ou por cicatrizes e brechas na nossa identidade pessoal.
    As armas liberadas, que para nós não se justificam, são um sintoma, não a causa, do mal-estar civilizatório em que nos encontramos.