Reinaldo Lobo
Para que haja oxigênio da vida
psíquica é preciso um ambiente de suficiente reconhecimento, aceitação,
confirmação e validação. Quando não existe essa atmosfera, a pessoa busca
adaptações para o seu Eu nas formas mais difíceis, às vezes bizarras. Uma delas
é o crime.
Boa parte da violência, ainda que não
toda, existente na cultura norte-americana ultracompetitiva, deriva do que
podem ser chamados de ferimentos narcísicos. Um sujeito humilhado, sentindo-se
um “loser” (perdedor), com o seu Eu ameaçado de decomposição, arma-se com a
facilidade encontrada nos Estados Unidos e sai à caça de seus agressores reais
ou imaginários.
Todos já vimos isso no cinema, mas
também nos noticiários. Um clássico da cultura norte-americana foi aquele filme
“Um dia de Fúria”, com Michael Douglas no papel central. Um homem desempregado
perde a família e o direito de ver o filho, enche uma sacola de armas e passa o
dia se vingando de todos os que possam humilhá-lo ou que representem um sistema
de constrangimento ao indivíduo. Tem um detetive encarregado de prendê-lo, em
sua última semana de trabalho, que revela uma certa empatia com o furioso, pois
entende que não se trata de um psicopata, mas de um ser humano profundamente
ferido em seu amor próprio.
É isso que acontece em uma cultura da
vingança: a pessoa humilhada sente-se no direito de buscar “retribution”, que,
em inglês, significa um gesto vingativo.
A cultura norte-americana é complexa,
não se resume obviamente a isso, mas apresenta características de um meio
ambiente que exige, por um lado, o “sucesso”, a liberdade e o culto do Eu
individual, às vezes à custa de enormes sacrifícios e a qualquer preço. Ao
mesmo tempo, por outro lado, prega o comunitarismo e a participação coletiva. O
indivíduo precisa ser um “winner” (um vencedor) e, se não o conseguir, tem o
direito a uma “segunda chance”. O reconhecimento coletivo está atrelado ao
“sucesso”.
O peso dessas exigências sobre
adolescentes e crianças é bem grande. Se somarmos a esse “superego cruel” o
bombardeio midiático dos filmes, séries, internet, redes sociais e também as
notícias das guerras no exterior de seus compatriotas, no Iraque, no
Afeganistão, contra as “ameaças terroristas” imaginárias ou verdadeiras, assim
como a própria criminalidade interna, teremos um quadro assustador que explica,
em parte, os massacres nas escolas e os tiroteios a bala. E, se surge um
presidente à moda do faroeste como Trump, sugerindo que os professores deem
aula armados, então o quadro fica ainda mais preocupante.
O cowboy e os super-heróis são, em parte,
os modelos da liberdade individual no imaginário instituído norte-americano.
Andar armado é uma expressão do individualismo possessivo, em defesa da
propriedade e da família. Mas quando a própria família está confusa, os pais
estão perdidos em seus valores e buscam especialistas para tudo na educação dos
filhos, o resultado pode ser uma exacerbação do narcisismo e da autoafirmação.
Entrar armado na escola é o sintoma de uma cultura da onipotência e da
fragilidade do Eu.
O exemplo de “Um Dia de Fúria” expõe um
caso de “furor narcísico”, quando o sujeito está desmoronando pelo ferimento em
seu orgulho pessoal, que é o nome popular do narcisismo. O narcisismo não é
sempre patológico nem uma coisa feia, pois significa também amor próprio, isto
é, investimento pulsional no próprio Eu (“self”), condição para sua integração.
Pessoas com vulnerabilidade narcísica,
que não tiveram na infância suficiente acolhimento ou sofreram algum
mal-entendido nessa área, tendem a formar defesas narcísicas exacerbadas, como
uma “pele psíquica” grossa, onde o outro é ignorado, desprezado e/ou uma ameaça.
Em outros casos, apresentam defesas tão frágeis (“pele fina”) que desmoronam
diante de qualquer crítica, ameaças externas ou mesmo internas, na forma de
ideias autocríticas e melancólicas.
Ninguém pode acreditar que seja saudável
uma pessoa que se arma para fuzilar outras em público, efeito da raiva por se
sentir inferiorizada e humilhada. Nem que esteja usando uma defesa adequada.
Mesmo que a “causa” alegada seja boa. Algumas dessas patologias do narcisismo
conduzem o sujeito para o terrorismo como forma de justificar a sua raiva.
Jovem ou não, criança, adolescente ou adulto, o indivíduo que extravasa sua
raiva solitária pela supressão do outro, racionalizando sua dificuldade na
forma de religião e ideologia, está revelando seu entranhamento narcísico e sua
impossibilidade que considerar alguém como um ser humano igual.
A
crença íntima, mais ou menos consciente, do assassino solitário é a de que seu
Eu será restaurado pela vingança brutal.
Nesses casos, o assassinato é um gesto de
puro egoísmo, como se diz. Não há nada de heroico, mas apenas desespero e falta
de saída psíquica, como no suicídio. Aliás, muitos dos autores de massacres se
matam em seguida, pois têm uma noção do que fizeram, além da possível culpa que
acompanha a vergonha (um sentimento narcísico típico) e a impossibilidade de racionalizar
seu gesto em sua radicalidade. A motivação vem da ferida narcísica e não da
situação errada em que o mundo possa se encontrar. A violência, em si mesma,
não tem justificação.
Entender os motivos da violência não
significa justificá-la. Alguns atos violentos são tão radicais que revelam um
superego de tal modo cruel e punitivo, uma espécie de repressão tão severa --
como dizia, por exemplo, Melanie Klein--, que só restam a polícia ou a morte
como formas de amenizá-la. Esse é um paradoxo do ideal de ego patológico: a
exigência moral é tanta, a punição à transgressão e à imperfeição é tamanha,
que só resta ao sujeito se tornar um psicopata.
Faltou-lhe em grau máximo um ambiente psíquico seguro-- na sua história
pessoal e familiar e nos seus primeiros relacionamentos-- que oxigenasse o seu
Eu com respeito mútuo, dignidade em lugar de orgulho, amor relacional e amor
próprio suficientes. O indivíduo é tomado pelos seus conflitos, mas prevalece
uma enorme onipotência, uma dose suplementar de crença onipotente, pois a
transição suave da doce ilusão de onipotência primária falhou.
Seria simplista supor que só a existência
das armas liberadas explicaria a violência na cultura norte-americana. Existem
os valores de cowboys amedrontados, a desigualdade social que precisa ser
vencida heroicamente por “winners”, a vergonha de não ter reconhecimento e a
patologia egocêntrica que não afeta só norte-americanos. Todos nós estamos
sujeitos à fúria narcísica, em crises ao longo da vida ou por cicatrizes e
brechas na nossa identidade pessoal.
As
armas liberadas, que para nós não se justificam, são um sintoma, não a causa,
do mal-estar civilizatório em que nos encontramos.
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