Reinaldo Lobo
O Brasil passa por uma aguda politização.
Os que só enxergam os efeitos negativos da crise política, gostariam da volta a
uma pasmaceira oligárquica onde quem tem poder, manda, e quem é prudente
obedece. O principal mérito da investigação conhecida como Lava Jato,
independente das intenções pessoais de quem a iniciou, foi expor aos olhos de
todos o que tenho chamado aqui de Sistema Corrupto, que vem de longe, de bem
longe na história do País.
O resultado foi uma fissura política
no Sistema, agravada pela presença de um partido político na aliança no poder,
o PT, que era um estranho no ninho da oligarquia tradicional e uma ofensa
ideológica às classes dominantes. A liberdade para investigar a corrupção,
mudando a legislação, fortalecendo a Polícia Federal e a Procuradoria, partiu
paradoxalmente desse mesmo partido que se tornaria o alvo predileto do núcleo
inicial da Lava Jato. Os mais conservadores viram nisso uma oportunidade de se
livrar do PT, empalmando um genérico combate à corrupção. O impeachment da
presidente petista agravou a crise política, em lugar de resolvê-la,
desestabilizando as fundações da instituição central, a própria Presidência.
A consequência foi um presidencialismo
de coalizão entre suspeitos e denunciados que desejavam encerrar ali a Lava
Jato, mas a dinâmica judicial e policial desencadeada não parou nem “estancou a
sangria”, segundo a célebre frase do Richelieu do Sistema, o senador Jucá. Essa
coalizão tem funcionado a favor do chefe maior, o presidente sem votos
populares, Michel Temer.
Da fissura política, com quase todos os
políticos dos principais partidos envolvidos e acusados, da cínica permanência
do grupo de Temer no comando da Câmara e do Senado, bem como da sua
interferência em áreas da Justiça e da Polícia, resultou uma feroz
radicalização no seio da sociedade e os anti-petistas enfurecidos ganharam
fôlego com as condenações e possível exclusão de Lula das eleições
presidenciais.
Um detalhe importante: entre os que
pedem a rápida e imediata prisão de Lula não estão apenas os direitistas
contumazes, os proto-fascistas, mas também uma gama de setores sociais politizados
e semi-politizados que acreditam de boa-fé que isso abriria o caminho para a
prisão e purgação de todos os políticos na República envolvidos em corrupção.
Esse sentimento genérico, bastante
ingênuo, que supervalorizou um simples juiz de primeira instância, Sérgio Moro,
é o mesmo que parece animar a polêmica série de TV “O Mecanismo”, lançada
perigosamente no contexto de um ano eleitoral de absoluta indefinição até
agora.
A discussão sobre se essa série mente ou
não -- da qual o autor José Padilha se defende, neste caso malandramente,
dizendo que é ficção--, não é a questão mais importante. A principal, a meu
ver, é se Padilha não caiu na mesma crença genérica de que basta combater os
criminosos para eliminar o crime.
Os filmes desse diretor enfocam, geralmente,
a realidade social e política sob a ótica e o estilo do policial, transformando
a ação em uma luta entre o Bem e o Mal a ser vencida pelos “homens de bem”.
Nessa luta, a força bruta é bem-vinda, como em qualquer filme de ação “B”
norte-americano. Foi assim, inclusive, nos lançamentos sobre a “Tropa de
Elite”. Agora, “O Mecanismo” parece até a continuação de uma trilogia.
A complexidade do Sistema Corrupto --
suas entranhas empresariais e políticas no bojo do Estado, a longa
promiscuidade histórica do Estado Patrimonial brasileiro, que vem desde a
colônia, passando pelo autoritarismo do Estado Novo, da Ditadura civil-militar
de 1964, atingindo a Nova República--, não pode ser reduzida a um caso de
polícia. Não há mocinhos, nem apenas bandidos nesse quadro. Os policiais,
promotores e juízes também não são santos, nem isentos.
A
própria ruptura jurídico-policial imposta pela Lava Jato, aproveitada
politicamente por forças que queriam tomar o governo de assalto justamente para
perpetuar o Sistema e promover sua autodefesa, foi uma avalanche com
repercussões que aprofundaram não só a crise política, mas a econômica. O combate
à recessão com mais recessão, seguido pelo atual governo, é uma consequência do
ambiente de “terra arrasada” decorrente de uma brutal e repentina brecha na
estrutura política, social e econômica do País.
A emergência de um político simplório como
Jair Bolsonaro no gosto de parte das classes médias e do lumpen, nesse ambiente
de redução da política a um assunto policial, não deveria surpreender ninguém.
Ele é um fruto dessa mentalidade policial expressa na série da TV.
Num ponto, o diretor Padilha está certo e
diz a verdade: há um mecanismo que dá forma à corrupção brasileira. Só que o
acionamento e as funções desse sistema são de natureza histórico-social e
institucional, muito mais complexos do que parecem a um juiz de primeira
instância ou a um policial.
O sonho de um herói ou de um grupo de
heróis idealizados que enfrentem a corrupção criminosa ignora a dura realidade
de uma sociedade constituída por setores mandonistas com o chicote na mão há
séculos, acrescida de estratos que já naturalizaram a exploração, o oportunismo
e as táticas de submissão e compadrio.
Os políticos que hoje mandam no País já armaram,
inclusive, sua própria autodefesa para as próximas eleições, com regras
eleitorais que garantem a permanência dos grandes partidos na posse do dinheiro
publicitário. E nada garante que, mesmo sem a permissão de financiamento
empresarial, o fluxo da dinheirama não se dê pelo caixa dois já conhecido de
todos.
Como enfrentar, então, esse sistema? Há um
impasse agudo nesse momento, dentro do seu próprio núcleo sistêmico e na
sociedade. Contudo, é desse mesmo ponto sem retorno que pode fluir um conjunto
de ações da sociedade civil, hoje mais politizada e atenta aos movimentos tanto
dos políticos quanto do judiciário. Ainda existe um povo neste País, por mais
viciado que esteja em ser apenas espectador (e telespectador), que se tem
movimentado em manifestações, redes sociais e mesmo numa nova atitude quanto ao
voto. Não há por que desesperar, nem contar apenas com a polícia.
A intensa
corrupção contemporânea -- dizem alguns sociólogos bem informados--, resulta,
sobretudo, de um movimento interno de sociedades em desenvolvimento quando a
mobilidade social se intensifica entre as classes, com alguns querendo cortar
caminho para a ascensão via Estado e outros se revoltando com a própria
exclusão. É uma dinâmica complexa, agravada por uma sociedade como a existente
no Brasil, ainda marcada por valores em conflito entre o arcaico o moderno—um
Sarney, coronelzão do Norte, convive com políticos sulistas, mais antenados no
futuro.
A engenharia política para desmontar o
Sistema Corrupto ainda está sendo elaborada, mas não se resume certamente a
prisões, delações e desmoralizações públicas, mesmo que estas possam fazer
parte do quadro. Essa visão simplista é tão prejudicial quanto a própria
corrupção. É preciso lembrar a frase lapidar de Antônio Carlos Jobim, nosso
grande compositor: “O Brasil não é para amadores”.
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