Reinaldo Lobo*
No auge da “ditabranda”, em 1968, quando
houve centenas de prisões, cassações, pessoas desaparecidas, guerrilhas, fechamento
de instituições democráticas e o fim de todas as liberdades civis, chegou de
Brasília um folclórico parlamentar paulista em pleno dia da edição do AI-5, e
foi cercado pelos jornalistas. Um deles perguntou:
-- Deputado, como está a situação em
Brasília?
-- Bem...—disse ele—a situação está cheia
de conjunturas e as estruturas são complexas!
Além do riso provocado, o parlamentar
mostrou involuntariamente como a situação estava, de fato, feia. Ao ponto de
precisar ser temida e escondida por uma nuvem de palavras de sentido obscuro e duvidoso.
Hoje, quando temos uma crise quase tão
grave como aquela -- bastando os caminhoneiros pararem para a sociedade chegar
à beira do colapso--, os ideólogos do neoliberalismo estão dando explicações
parecidas com a daquele ilustre parlamentar bizarro dos tempos da ditadura.
Um conhecido colunista da Folha de S.
Paulo, Hélio Schwartsman, paladino da causa do mercado e do “laissez faire”,
deu uma brilhante explicação para o caos provocado pela crise dos combustíveis.
Permitam-me citá-lo:
“Como nos tornamos tão vulneráveis? A
resposta é simples: complexidade. Há poucas coisas mais complexas do que o
funcionamento de uma economia que se conecta em redes cada vez mais
interdependentes milhões de agentes que atuam de forma autônoma. A ação
estratégica de um único indivíduo – um erro de operação em Itaipu, por
exemplo—pode parar o país inteiro”
O famoso Conselheiro Acácio não daria
uma explicação melhor e mais genérica sobre a economia atual. Ficando no nível
mais abstrato, cabe tudo e é possível esconder o principal: o fato de a crise dos combustíveis não se tratar de um acaso randômico, mas do
resultado de uma política geral de preços da Petrobrás, orquestrada por um
conhecido adepto do mantra neoliberal, o tecnocrata Pedro Parente. A flutuação
de preços, com reajustes automáticos, atrelados ao preço do barril no mercado
internacional, vem sendo apontada por vários economistas sérios como a causa
eficiente do drama em que meteram o País.
Citemos mais uma vez --com a permissão
do leitor-- a explicação fornecida pelo ilustre colunista:
“Não nos pusemos nessa posição de
fragilidade a troco de nada. A complexidade tem uma face mais positiva que
aparece no desenvolvimento tecnológico e na produtividade. As interdependências
que nos tornam reféns do imponderável também fazem com que avanços, mesmo que
incrementais, tenham impacto positivo exponencial”.
Ah, agora descobrimos a chave
explicativa para o fracasso da política “interdependente” de Pedro Parente na
Petrobrás – é o “imponderável”! Os Deuses da Probabilidade mandaram alterar um
único elemento para bagunçar o todo!
Tudo era muito positivo -- ainda que “avanços incrementais” -- até que
se abatesse sobre a Petrobrás uma “desregulação” do mercado.
Aliás, a pergunta inevitável: positivo
para quem? Quem se beneficia, o País ou os acionistas? A lógica é a da
racionalidade ou a do lucro que nos leva a perdas internacionais? Então é
preciso colocar a sociedade em risco em busca da “face mais positiva” da
produtividade, mesmo que o remédio possa matar o doente?
Em nenhum momento, o articulista diz que
houve o fracasso da política que conduziu os caminhoneiros à greve geral. O que
a retórica do ideólogo procura esconder é a feiura do “salve-se quem puder”
neoliberal. Para isso, faz um contorcionismo pseudocientífico onde só falta
apelar para Teoria do Caos ou a Quântica.
O viés do ideólogo é, curiosamente, o
mesmo da chamada grande imprensa que, em geral, desvia a atenção do equívocos
da “equipe econômica dos sonhos” ( o “Dream Team”) do governo Temer. O habitual
é criticar a fraqueza política desse governo, mas ressalvando-se os “êxitos” da
equipe econômica. Começa a existir uma ambiguidade diferente dessa imprensa em
relação aos fatos, na medida em que está ficando clara a dificuldade da área
econômica em resolver as questões do crescimento e da estabilidade.
A narrativa anti-Estado também tende a
reduzir sua retórica diante do impacto da greve dos caminhoneiros, que colocou
a necessidade de intervenção – não a militar, mas o tabelamento de preços. A
imprensa descobriu igualmente, de repente, que a dependência quase absoluta da
malha rodoviária, e a não existência de ferrovias e da cabotagem para o
escoamento da produção, apontam para necessidade da presença estatal no
remodelamento da infraestrutura.
O modelo baseado no caminhão e no
automóvel está-se esgotando, junto com a dependência do combustível fóssil.
Isso exige transformação global por uma saída desenvolvimentista, com forte
presença do Estado. Exige o que nenhum neoliberal gosta: planejamento
estratégico. O culto do espontaneísmo monetarista e a implementação do capital
financeiro internacional, fontes da interdependência louvada pelo ideólogo da
Folha, não podem dar conta das realidades econômicas, nem das classes sociais
em conflito. A crença de que o mercado regula tudo com sua mão invisível nega
que as classes têm interesses e almejam a hegemonia no seio da sociedade.
As contradições do capitalismo brasileiro
ficaram evidentes com essa crise, que está longe de acabar. Mas as explicações
dadas pelos porta-vozes do establishment lembram um pouco aquele mecânico de
carros que, diante de uma pane seca, resolve enganar o cliente propondo trocar
a “rebimboca da parafuseta”.
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