quinta-feira, 19 de julho de 2018

A POLÍTICA DAS PAIXÕES



                                                                 Reinaldo Lobo*

      
           Os fascistas são os conservadores que mais têm medo. Medo da instabilidade econômica sob o capitalismo, medo de perder privilégios, medo do caos, medo do outro, do que pode mudar na vida,  do que é diferente,  do que se projetou em um inimigo escolhido como bode expiatório, medo da insegurança em geral e da vingança daqueles que submeteram infundindo o medo.
           Um filme em cartaz nas boas salas de cinema e na internet intitulado “1945” ilustra bem essa paixão oculta no coração dos opressores fascistas e de seus aliados: numa cidade húngara, mas que poderia ser qualquer uma do centro leste europeu ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra, reaparecem após a libertação da ocupação alemã dois judeus ortodoxos que ali moraram. Os homens carregam duas misteriosas caixas que atemorizam os moradores locais: o que conteriam? Armas para a vingança contra a população aderida ao nazismo e que os delatou, roubou-lhes as residências e fingiu esquecer o que fez?
            A presença dos dois judeus causa um pânico nos moradores, pois aparentemente os novos ocupantes, os libertadores soviéticos, poderiam ter permitido que eles se vingassem. A insegurança se estabelece, a culpa leva uma personagem ao suicídio, as outras vivem conflitos aterrorizantes em relação àquelas caixas misteriosas e se preparam para o pior. O final é surpreendente, não vou contar para não dar “spoiler”, mas ilustra bem como paixões primitivas, como o medo e o ódio, levando à submissão irracional, ignoram o simbólico e a cultura.
          Os que não chegam a ser fascistas também têm medo da instabilidade na própria sociedade em que vivem, submetem-se e, muitas vezes, apoiam cegamente tiranias ou mesmo governos oligárquicos sob regime democrático. São os que colocam a felicidade e a segurança em primeiro lugar, como se esses fossem os principais objetivos da política e da sociabilidade. A principal paixão humana manipulada pelos governos, sejam autoritários, totalitários e mesmo hierarquias de regimes democráticos, é essa emoção subalterna, muitas vezes acompanhada de culpa, que leva a uma de servidão voluntária.
          Quem está submetido talvez imagine que está feliz e em segurança, e nega que o principal objetivo da política não seja nem a felicidade nem a segurança, mas a liberdade.
          Se aceitarmos a liberdade e a autonomia humanas como a essência da política, considerando necessária a criação de instituições que promovam realmente a liberdade, sem mentirinhas, não será o caso criarmos uma “boa sociedade” ou mesmo sem miséria. Mas seria necessário criar uma sociedade verdadeiramente livre, onde as paixões primitivas não sejam manipuladas para comandar as massas como bandos de incompetentes que não sabem o que desejam ou não possam escolher sobre suas próprias vidas. Uma sociedade autônoma será a mais consciente possível de suas necessidades, problemas, objetivos sociais e práticos. Não será perfeita, mas livre.
           Há lugares no norte do mundo, como Islândia, Finlândia, Noruega, Dinamarca e mesmo Suécia e Holanda, onde alguns experimentos que consistem em deixar a população governar quase diretamente deram excelentes resultados. Na Islândia, por exemplo, na crise do capitalismo deflagrada em 2008 e que afetou a todos até agora, a população tirou simplesmente a governança dos bancos, reuniu-se em assembleias autônomas e passou a gerir as decisões econômicas. A Islândia foi um dos primeiros, se não o primeiro país europeu a sair da crise.
            Ora, dirão, são países pequenos, fáceis de administrar e de aplicar “utopias”. Os resultados apresentados, como na Dinamarca, que em breve será o primeiro país totalmente sustentável do planeta, não são utópicos, mas concretos. O que possibilitou esses resultados não foi apenas o tamanho do território, mas uma história de conquistas sociais e políticas democráticas que vem de séculos.
           Além disso, a paixão política que alimenta essas decisões não é o medo, mas escolhas conscientes calcadas nas necessidades reais da população e nas discussões abertas de todos os canais da sociedade, onde o Estado existe, mas a serviço da população e não sobre a comunidade. São sociedades mistas, de economias “socialista” e “capitalista” ao mesmo tempo. Não são puras, nem perfeitas, mas perfectíveis em função do regime democrático.
          No Brasil, é fácil perceber dois fenômenos contrários a essa orientação: o clima de medo e de incerteza, de um lado, e a demanda de segurança, de “intervenção militar” e autoritarismo. Nem passa pela cabeça da maioria dos nossos políticos no poder convidar sequer a população para uma consulta popular ou abrir os canais de participação para a maioria opinar de verdade. Precisam manter as regras estritas das formas de representação atual, absolutamente falidas, porque têm...medo.  E, principalmente, porque eles seriam os primeiros defenestrados se a população tivesse voz e porque não defendem o bem geral, mas interesses particulares.
          Basta lembrar o que estão fazendo com a lei dos agrotóxicos, que é exatamente o oposto do que o mundo civilizado luta para atingir: a sustentabilidade e a sobrevivência geral, não apenas a do agronegócio.
          Enquanto o Brasil for manipulado pelo medo e a insegurança, teremos salvadores da Pátria fascistas, populistas e falsos democratas, oligarcas de luxo.
         Há um mito entre nós --de direita e de esquerda-- que consiste em espalhar a ideia de mais segurança, de salvação pela educação e pela redução gradual da miséria. O que esse mito esconde é que precisamos primeiro, justamente ao contrário, de uma sociedade politicamente mais livre, onde possa florescer a escolha da maioria, a mais ampla e participante possíveis, para termos os resultados práticos desejados.
       Para essa inversão dos valores e para a autoeducação política do povo, só uma paixão é necessária – a paixão da liberdade.
    

quarta-feira, 4 de julho de 2018

INVEJA NA COPA


  

                                                                    Reinaldo Lobo

       A inveja é um “monstro de olhos verdes”, disse Shakespeare – no “Otelo”, descrevendo-a sem nomeá-la exatamente e encarnada na personagem de Iago. Esse monstro é capaz de atormentar, corroer por dentro e até matar. Tem tudo a ver com olhar: a palavra “invidia” vem do latim, derivada do verbo “videor”, que quer dizer ver e, curiosamente, também ser visto. O olhar possessivo de um ser humano – todos nós—tomado pela inveja vê, vasculha, examina nos detalhes o que é do outro e que deseja para si. E ataca. A inveja dá medo.
       Não é por acaso que muitas pessoas, ao se sentirem invejadas por possuir um bem ou qualidades que as distinguem, fazem-se de humildes, como se pedissem desculpas. Têm medo de despertar ou confirmar a inveja dos outros. Algumas portam-se, ao contrário, de forma arrogante, mostrando seus bens e atributos admiráveis, defendendo-se pelo reasseguramento e o exibicionismo.
        Todos sabemos que ninguém quer se sentir um invejoso contumaz, mas o sentimento é universal. O mais difícil para contê-lo é quando está completamente mergulhado no inconsciente: a pessoa o nega com insistência, mas atua de modo a expressá-lo na conduta.
        No fundo, quem inveja se sente inferiorizado, sofre no íntimo por isso, sem se dar conta de que a inveja é apenas o desejo de possuir algo que pertence ao outro. Revela, é verdade,  o mal-estar pela felicidade do outro e por própria posição de inferioridade, por não ter o que o outro tem—e avaliar que nunca terá--, mas é um sentimento demasiado humano. A inveja envolve cobiça, voracidade e narcisismo ferido, isto é, orgulho atingido e sentimento de humilhação. Se assumida conscientemente, torna-se mais benigna.
       Não é uma emoção bonita, mas, no fundo, a inveja é admiração por linhas tortas. Para que a inveja leve a uma ação contra o objeto ou a pessoa admirada, depende do montante de raiva e de cobiça que envolve esse desejo, assim como do sentimento de inferioridade de quem cobiça. Daí os patuás de proteção, de “corpo fechado” contra o “olho gordo”, os esconjuros e as imprecações das religiões e crenças primitivas.
        É possível distinguir com certa facilidade um olhar invejoso, bem como uma fala carregada de inveja. Os jogadores mais famosos da Copa do Mundo são um alvo predileto dos comentários invejosos dos chamados cronistas esportivos e das pessoas em geral. Idealizados e admirados, são automaticamente invejados pelo público e, quando falham, é descarregado um desprezo violento ou um rebaixamento de sua condição de ídolos.
         O pavão é um bicho bonito de se ver, de plumagem colorida e de porte altivo, desfila sua beleza, mas um invejoso vai destacar um detalhe feioso: o pé do pavão. O pavão é lindo, mas o pé é feio – dirá o invejoso meticuloso.
          Há alguns dias, comentando uma declaração de alguém da equipe técnica da Seleção, que dizia a respeito do jogador Neymar que ele havia sofrido muito após uma cirurgia que o retirou dos treinos e dos campos por três meses, um cronista esportivo não hesitou em dizer na TV:
          -- Ele diz que sofreu, mas foi fotografado com a namorada Bruna Marquezine no colo em sua cadeira de rodas!
          Seguiu-se um muxoxo de desprezo no rosto do cronista. Ele ignorou o simples fato de que para um jogador de futebol no auge da juventude e da carreira brilhante ficar fora de sua atividade por três meses já é um sofrimento, além da cirurgia, da dor física, da difícil e incerta recuperação.
          E o cabelo de Neymar? Um capricho juvenil dele, um toque na imagem para fixá-la chamando a atenção, provocou uma torrente de ataques, de um tipo parecido com os dirigidos ao pé do pavão.
          Lembro-me de um episódio do célebre Ronaldo, o “Fenômeno”, que comprou certa vez uma Ferrari na Europa, no auge de sua carreira vitoriosa, e trouxe para o Rio de Janeiro, onde fez um rápido passeio à beira das praias. A imprensa caiu em cima dele com tal fúria, com afirmações sobre a indiferença   pelos pobres e a miséria no País. Não havia jornalista, esportivo ou não, que não falasse do assunto. Um cronista escreveu que Ronaldo não era lá essas coisas como jogador para merecer uma Ferrari e, ainda mais, exibir-se acintosamente pelo Rio.
         O tal cronista se esqueceu que só não ganhamos, possivelmente, a Taça em 1998 porque Ronaldo não estava em campo na final, acometido de uma doença, e que ele acabaria por vencer a Copa de 2002 com uma atuação que o consagrou como um dos maiores jogadores da história do futebol.
         Não deu outra: o coitado do Ronaldo (sim, nesse caso coitado) livrou-se da Ferrari e, para recuperar sua imagem desgastada, passou a mostrar as benemerências que fazia aos pobres e a visitar crianças doentes em hospitais.
         A frase do grande Tom Jobim --” No Brasil, o sucesso é uma ofensa” -- não vale só para o Brasil, ainda que, aqui, a desigualdade e a injustiça social tendam a  encobrir as manifestações invejosas com uma aura de respeitabilidade. É como se a inveja se justificasse pelas condições do País. Como a bíblica ira dos justos, a inveja dos cronistas esportivos e do público contra os ídolos do futebol é bastante cruel.
        Muitas vezes, a inveja provém do desamparo que a pessoa sofreu na infância, num ambiente que pode ter falhado com ela, levando-a a um sentimento de automenosprezo e fragilidade. Isso a faz atacar os “mais fortes”. Impede também de ver o outro em sua totalidade e a trajetória de vida que teve.
         Ronaldo -- como Romário, Neymar e outros-- saiu de vila pobre da periferia e passou, por seu trabalho, a ganhar milhões numa profissão que é uma das mais bem remuneradas do planeta. Não exploraram ninguém, não roubaram, não usaram o caminho da corrupção. Só jogaram bem.
         O contrário da inveja, dizia Melanie Klein, é a gratidão. Quando atacamos a mão que nos alimenta – com comida, amor, felicidade, prazer, alegria, identificação com o êxito, etc.—estamos sendo ingratos e incapazes de reparação pelo que recebemos e que podemos destruir. Há um ditado árabe que diz: “Por que me maltratas, se eu nunca te fiz bem”. Temos uma inclinação a maltratar aqueles que nos fazem bem.
        Por mais restrições que se faça a Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo e outros craques do esporte, alguém que goste de futebol pode dizer, em sã consciência, que eles não deram aos torcedores grande momentos de identificação no êxito e muita alegria?