quinta-feira, 30 de agosto de 2018

AS CABEÇAS DOS ELEITORES





                                                                  Reinaldo Lobo

   O eleitor não existe. Há eleitores, no plural. Pertencem a classes sociais diferentes, têm sonhos e aspirações distintas, alguns professam uma ideologia propriamente dita, expressam raivas, ressentimentos, visão-de-mundo e expectativas diversas. Os chamados analistas políticos costumam, às vezes, juntar tudo sob um mesmo rótulo e tentam entender as diversidades pelas pesquisas de opinião, hoje mais científicas do que no passado, mas ainda falhas.
    Em 2014, várias sondagens davam como vencedor Aécio Neves, que perdeu no seu próprio Estado e, de fato, quase ganhou em escala nacional. Foi apontado o fator Nordeste, o que também não é simples, pois o voto dos nordestinos não é homogêneo. Aí, um dado decisivo foi a saída do pernambucano Eduardo Campos da corrida presidencial. Outro ponto foi a sombra do ex-presidente Lula, de origem nordestina, catalisando votos em favor de Dilma Rousseff.
      Hoje, as disposições psíquicas dos eleitores variam nas diferentes classes e regiões, mas existem elementos comuns de desconfiança, de descrédito dos políticos e de completo realismo – quase cinismo— provocado pela crise econômica e o desencanto generalizados.
      O fator Lava Jato impera nas eleições deste ano de modo a produzir escolhas que variam da busca da “pureza” na política até uma certa complacência em relação a políticos alvejados pela Justiça, mas cuja história está registrada na memória de muitos eleitores como aqueles que deram algo novo à população –isto é,  os que fizeram efetivamente alguma coisa que beneficia as maiorias mais pobres do País.
       A complacência aparece com clareza no caso de Lula, a maior surpresa destas eleições estranhas, uma vez que está preso, mas ganharia no primeiro turno segundo as pesquisas mais recentes. Depois de vários anos de desconstrução de sua imagem de líder popular, seu registro  quase “de protesto” no TSE -- uma espécie de anticandidato, na forma de desobediência civil--, deixa muitos eleitores confusos e perplexos, mas também demonstra que o seu eleitorado registrou na memória a fase de crescimento econômico, de pleno emprego e de distribuição de renda, e entendeu perfeitamente sua mensagem.
        Houve uma desidealização geral da atividade política na mente dos eleitores, mas que deu lugar aos poucos a um maior realismo numa fatia significativa do eleitorado. O ódio surgido a partir de 2013 levou às ruas  uma classe média que se sentia ameaçada pela “ascensão” dos mais pobres e que saiu em passeatas repercutidas com barulho pela imprensa  Foi a origem do antipetismo militante que desembocaria nas vitórias eleitorais municipais do tucanato e do MDB há dois anos e meio, e ,agora, na candidatura do militar  fascista.
       Na cabeça dos eleitores de classe média, eliminar definitivamente o PT é um objetivo prioritário. Esses são os mais decepcionados com as pesquisas neste momento. A força simbólica da figura de Lula não deu espaço para candidaturas que expressariam o “novo”, isto é, a anticorrupção, a moral, os bons costumes e o anticomunismo, tradicionais “princípios” das frações que apoiaram um dia o golpe de 1964 e hoje pediriam, em última instância, intervenção militar.
      Os petistas costumam incluir nessa categoria de eleitores os juízes e procuradores que condenaram celeremente o ex-presidente Lula. Em parte, podem ter razão. Mas esquecem nessa avaliação a presença de um forte corporativismo no judiciário e o fato de que não são todos os juízes que comungam com os magistrados de Curitiba e de Porto Alegre.
      É muito provável que a escolha do próximo presidente, da maioria parlamentar e dos governadores dependerá de uma “onda” de impulsos na opinião pública, que é diferente das manifestações de classe, e que ultrapassa as fronteiras sociais na reta final das eleições. Essa “onda” esteve convergindo para o candidato militar até há pouco, em função do medo “do comunismo”, da inação das autoridades de segurança e do ódio anti-petista estimulados, inclusive, pelos meios de comunicação, incluídas aí as redes sociais, a TV, o rádio, os jornais e as revistas, em sua maioria.
     As aspirações dos mais diferentes eleitores podem ser dirigidas, em grande parte, para a visão paranoica que elege um” inimigo comum”. Neste momento da luta eleitoral, no entanto, os cidadãos estão cansados, saturados de informações e de notícias de violência. Há um governo praticamente inerte, incapaz de dar direção até aos seus próprios candidatos, Alckmin e Meireles, que representam o período de “austeridade” que se seguiu ao governo petista, exacerbando a crise e o desemprego sem o prometido crescimento econômico real. Além disso, o inimigo comum mais visível até agora --a Corrupção--, está diluído e presente em todos os partidos do cenário político, exceto em alguns virgens como o Psol,  na esquerda, e o Partido Novo, à direita. São os que mais empunham a bandeira do moralismo político, são as novas UDNs.
      O impeachment que derrubou Dilma Rousseff teve como consequência a destruição da força do Executivo quando já havia um Legislativo desmoralizado e fraco. Os corações e mentes dos cidadãos dirigiram-se, então, com esperanças para um Judiciário subitamente fortalecido, ao ponto de se falar de um Partido da Justiça.  Hoje, o próprio Judiciário perdeu força perante a chamada opinião pública, pela divulgação de seus privilégios e por suas contradições quanto ao prosseguimento da Lava Jato.
      A perplexidade é o estado mental de boa parte do eleitorado, mas os mais pobres ainda esperam dos seus símbolos uma saída vitoriosa. Vai depender do que o Judiciário Eleitoral vai fazer com a chapa “triplex”: Lula, Haddad e Manuela.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

SALADA IDEOLÓGICA




                                                         Reinaldo Lobo

         Não é de espantar que o cabo Daciolo tenha inventado a URSAL, “União das Repúblicas Socialistas da América Latina”, para descrever suas preocupações com o avanço do chamado “comunismo” nessa região do planeta. O cabo presidenciável, avatar de Bolsonaro, foi injustamente alvo de chacota nas redes sociais. Chamado de delirante e paranoico, é apenas um simplório e ignorante em matéria de política, ainda que se ache um espertalhão. Como, aliás, a maior parte da “elite” política brasileira.
         O cabo não sabe distinguir socialismo democrático de comunismo e isso não é só culpa dele. Toda a direita brasileira não vê gradações e nuances entre os que estão à esquerda no espectro político. Para essa turma, uma simples crítica social vira sinônimo de “comunismo”, a fim de aterrorizar a classe média e defender “intervenção militar”.
       A pobreza do imaginário político brasileiro só é comparável à sua capacidade para criar siglas falsas, vazias e absurdas, além das mais complexas fantasias conspiratórias.
      Temos um Partido Social Democrático, que não é social, mas só um grêmio fisiológico liderado pelo oportunista ex-prefeito Kassab, de São Paulo.
      Há um Partido Progressista, de Maluf, filho da Ditadura, agrupamento que não tem nada de “progressista”, dedicado hoje a fazer negócios e cujos membros apenas buscam se safar da cadeia.
     Existe uma série de partidos “trabalhistas” cujos militantes e líderes nem sabem exatamente o que é trabalhismo e nunca ouviram falar de Alberto Pasqualini. Hoje, seu chefe é o honorável Roberto Jefferson, cujo estilo nem chega perto do perfil de Getúlio Vargas.
     O PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), tido no início como de centro-esquerda, comportou-se como um autêntico grupo neoliberal no governo FHC, e, agora, alinha-se com o apodrecido governo Temer, cuja política de “austeridade” é ultraconservadora. Já o MDB de Temer nada tem em comum com um movimento que foi capitaneado por Ulysses Guimarães, tendo se tornado um saco de gatos pardos e noturnos.
     O próprio Partido dos Trabalhadores, considerado o mais coerente ideologicamente e visto como representante da classe operária, uma vez no governo defendeu interesses de banqueiros, de algumas empreiteiras corruptas e teve seu auge no governo Dilma, que chamou o banqueiro conservador Joaquim Levy para dirigir a economia. Quanto ao PC do B, originário da” linha chinesa”, afirma defender a democracia, mas tem no seu passado a meta da ditadura do proletariado.
     É de se duvidar que exista no mundo tamanha proliferação de partidos e  tanta contradição entre os seus “princípios” e sua prática efetiva como no Brasil. Não nos referimos somente ao jogo das denominações, mas ao vazio de conteúdo programático e ideológico. Boa parte do discurso político nacional reflete a ignorância em relação a qualquer filosofia, ética e fundamentos da política.
    Na Europa, o presidente francês Macron já citou o filósofo liberal Bertrand de Jouvenel com facilidade; os alemães social democratas lembram a filosofia de Jurgen Habermas ou mesmo recordam seus sólidos antecessores políticos, como Willy Brandt. Já os conservadores não hesitam em evocar Conrad Adenauer e, quanto aos ingleses, falam com naturalidade do filósofo liberal anglo-austríaco Karl Popper e de Winston Churchill, o seu grande estadista.
    É claro que, na Europa, existem o fisiologismo eventual e a estupidez dos neofascistas franceses ou, nos EUA, a de Donald Trump. Mas isso não é a regra dos partidos tradicionais nem do eleitorado que demonstra alguma fidelidade.
     Em nosso País, falta-nos uma tradição ideológica nítida, fundada não em reações epidérmicas, mas em pensamento. Nossos partidos têm programas frouxos, que oscilam em expressar interesses ou motivos eleitorais de ocasião.
    Boa parte do mantra anticomunista e anticorrupção que anima a direita vem dessa estreiteza de pensamento, que estimula fantasias simplistas como as dos eleitores de Bolsonaro e as do cabo Dalciolo, esse novo emergente da estupidez nacional, que ganhou uma audiência súbita e fugaz.
    Para esses, a política se resume a uma luta entre bandidos (comunistas e imorais) e a polícia (incluídos aí procuradores de justiça e juízes). Os mais sofisticados entre os conservadores falam do perigo “populista” na América Latina que precisa ser combatido com a extirpação de seus líderes e a promoção de uma “centro direita” privatista e pró-norte-americana. Desse ponto-de-vista, a URSAL é o populismo. Esquecem que pode existir populistas de direita, como fascistas, neonazistas, bolsonarianos, capitães, coronéis e generais latino-americanos, além de malucos do tipo de Trump.
    Em épocas de crise do capitalismo, que se sucedem em ondas recentes, o aparecimento de fantasias autoritárias é tão comum quanto as Fake News hoje em voga. As pessoas inseguras preferem crer em teorias conspiratórias e buscar soluções “rápidas e simples” para a segurança pública, o desemprego e a instabilidade social e econômica.
   Grande parte dos que seguiram Hitler nos anos 30 não se baseavam em nenhuma teoria filosófica nazista nem tinham tanta clareza do que faziam, mesmo existindo tradições social-democráticas na Alemanha, bem como liberais e monárquicas, todas foram diluídas pela salada ideológica oferecida pelo “tio Adolf”. Ele foi seguido, em grande parte, por gente motivada por impulsos reativos ao caos, à inflação e à ameaça de miséria permanente.
    Nossa salada ideológica não tem a maionese filosófica francesa nem o molho democrático inglês ou mesmo o chucrute prático alemão. Nossa salada tropical é salpicada de violência, fantasias mitômanas e ignorância profunda. Precisamos de muito cuidado nesse momento eleitoral pelo qual passamos.
   

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

BOLSONARIO, O MITO




                                                                Reinaldo Lobo

           A mitologia grega, com seus deuses e semideuses trágicos, está na base da cultura ocidental. Ainda hoje nos inspira. Todos sabemos que um mito tem um significado histórico, antropológico, filosófico e até político. O Mito da Caverna, de Platão, é ensinado nas escolas como forma de acesso a uma concepção da Razão. A revelação da verdade foi demonstrada muitas vezes por meio dos mitos, como o célebre mito de Édipo.
         Essa é a face nobre do mito, mas os dicionários nos ensinam que há um lado sombrio, com o sentido de pura mentira ou de “história da carochinha”. Os meios de comunicação veiculam mentiras nesse sentido mítico todos os dias.
        Os adeptos do capitão Jair Messias Bolsonaro, atual candidato à presidência por um certo “Partido Social Liberal”, perceberam, apesar de pouco sutis, essa ambiguidade da palavra. Inventaram a atribuição de “mito” a esse deputado bizarro, dublê de militar e político, antes desconhecido em sua longa permanência na Câmara Federal desde 1991.
        A palavra poderia conferir a essa figura do “baixo clero” político uma aura de potência, autoridade e coragem, como os heróis gregos. Nessa construção, o ex- capitão do Exército, aposentado em circunstâncias nebulosas, apareceria como um herói da luta contra corrupção, uma vez que foi citado pelo ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, como um dos únicos-- ao lado de Paulo Maluf!--, que não teria recebido a propina do “mensalão”. Além disso, a palavra alimentaria a narrativa de que lutou, durante a Ditadura, contra o “terrorismo”.
       No entanto, as contradições reveladas na entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura em São Paulo, mostraram que o ídolo não se sustenta. Aliado próximo do ex-deputado Eduardo Cunha, o Rei do Baixo Clero, de quem foi próximo durante vários anos, recebeu de forma indireta uma verba da JBS, que se apressou em devolver para o seu partido de então , o PP de Paulo Maluf e Ciro Nogueira, uma vez que a Lava Jato já estava em curso e os escândalos estouravam. Não há notícias de como pagou suas sucessivas campanhas a deputado federal nas legislaturas anteriores.
       Perguntado pela repórter Daniela Lima, da Folha, sobre a sua defesa do porte de armas pelo cidadão comum como forma de defesa contra os bandidos, enroscou-se de vez na resposta.  A jornalista fez uma pesquisa sobre ele e mostrou que , em 1995, o capitão treinado Bolsonaro foi assaltado numa rua do Rio de Janeiro e os assaltantes levaram sua arma e sua moto. Tentou explicar que foi “rendido” pelos bandidos num sinal de trânsito e que o seu batalhão de origem recuperou depois  a arma e a moto, sem responder de fato à questão.  Mas a repórter insistiu perguntando:  se ele que era treinado no uso de armas e defesa militar, foi rendido pelos bandidos, o que se poderia dizer do cidadão comum carregando uma arma?
        Os mitos da valentia militar e do herói messiânico também caíram no chão junto com o seu argumento a respeito da legislação sobre  armas e segurança.
        O capitão Bolsonaro, para associar a ex-presidente Dilma Rousseff à guerrilha de Carlos Lamarca, lembrou com orgulho que combateu no Vale do Ribeira, onde esteve, de fato, sob o comando, inclusive, do ex-coronel Erasmo Dias, como parte das tropas do Exército.
       O que ele não disse é que o Exército levou o maior baile dos guerrilheiros, que chegaram a capturar oficiais e a negociar sua soltura para abrir uma saída do cerco formado por centenas de soldados e vários batalhões, além de helicópteros e forças especiais anti-guerrilha. Enquanto negociavam, comandantes tentaram localizar Lamarca, o que resultou em combates e na morte de um tenente, executado pela guerrilha.
       A derrota das Forças Armadas no Vale do Ribeira levou o coronel Erasmo Dias a ser afastado de suas funções e relegado ao papel de chefe de polícia em São Paulo. Na versão de Bolsonaro – e, provavelmente, na versão oficial do Exército-- os “terroristas” de Lamarca foram traiçoeiros, os militares as vítimas e não existiram combates propriamente, apenas uma fuga. Ora, tudo indica, segundo inúmeros relatos históricos e de ex-agentes do governo, que os combates aconteceram e o Exército levou a pior. Lamarca só seria preso e executado no interior da Bahia muito depois.
      O capitão Bolsonaro não tem muito do que se orgulhar do desempenho no Vale do Ribeira nem em sua carreira militar de um modo geral.  Além de inventar versões históricas e dizer que apresentou 500 projetos de Lei nunca aceitos no Congresso-- quando, na verdade, admitiu na TV que foram 176 e nenhum foi aprovado--, sua carreira política não tem sido exatamente um sucesso. Mas é preciso admitir que sua equipe tem habilidade em criar “factoides” para impressionar a mídia e causar polêmica, como aquela foto dele ensinando crianças a atirar e fazendo gestos agressivos.
       O mito Bolsonaro é o resultado de vários fatores, sendo o principal a desilusão da população com os políticos em geral. Ele se apresenta como a única alternativa “fora do sistema” civil da chamada Nova República, agora em estado falimentar. As acusações de corrupção contra ele nunca apresentaram flagrantes e são relativamente pequenas.
       Seu discurso, se é que se pode chamar de discurso, é policialesco e se apresenta como um fruto da Operação Lava Jato, de caça aos políticos. A questão da segurança no País produz uma espécie de terror na classe média e também entre os pobres, que veem na fala de tom brutal uma única via simples para sairmos da guerra civil como a do Rio de Janeiro.
      Um fato inegável é que, desde 2013, quando os conservadores e a oligarquia dominante empalmaram um movimento de massas, pela primeira vez em décadas essas forças conseguem ter uma audiência. Existe hoje um público à direita que entende a política como uma luta entre a polícia e os bandidos, e ninguém apela melhor a essa demagogia simples.
       Bolsonaro não é um mito, mas uma “história da carochinha”. No entanto, tem o apoio de forças poderosas para exercer o seu populismo conservador e, se não for detido em sua ascensão eleitoral, causará sérios estragos à democracia.   Depois, será tarde, e nenhum de nós poderá dizer que não foi avisado.