quarta-feira, 21 de novembro de 2018

MUNDO, VASTO MUNDO




                                                         Reinaldo Lobo

      Vivemos um surto de globalização nos anos 80 e 90 do século passado, sob o impulso do neoliberalismo e com o fim do comunismo em quase todo o mundo. O capitalismo parecia triunfante e definitivo, destruindo barreiras, costumes e tradições, como o descreveu Karl Marx já no seu manifesto comunista de 1848.
    Tudo indicava sua expansão sem limites, sua conquista universal e a conexão de todos os países entre si, caindo até mesmo as fronteiras. A União Europeia, o Mercosul e outros tratados de intercâmbio comercial e cooperação apontavam na direção de um certo equilíbrio internacional e de uma racionalidade bem temperada. Os economistas mais radicais imaginavam o livre comércio com pouquíssimas barreiras e a definitiva decadência do Estado como mediador social e econômico. A utopia neoliberal trazida inicialmente por Margareth Thatcher e Ronald Reagan parecia ter-se tornado realidade.
     Durou pouco. O século XXI se abriu com o ataque às Torres Gêmeas e o advento de um novo terrorismo, assustador. Era uma espécie de reação regionalista e particularista contra a universalização dos costumes e a destruição das tradições. Os militantes da Al Qaeda, chefiados por Osama Bin Laden, usaram os meios tecnológicos mais modernos para atacar o coração do capitalismo.
    O efeito foi devastador para as ilusões da livre competição entre empresas e nações, assim como da livre circulação de mercadorias e pessoas. Até mesmo porque essa liberdade competitiva nunca existiu de fato de modo pleno, sobretudo pela existência de um poderoso sistema de monopólios em escala mundial, mediado pelo capital financeiro, o famoso “cassino” que operou febrilmente nas três últimas décadas.
    Desde então, surgiram as contradições mais graves, que explodiram na crise de 2008 e cujas consequências reverberam até hoje.
    Um desses efeitos foi a emergência do Estado de Exceção, a suspensão frequente e temporária dos direitos civis e humanos em várias partes. Mais do que isso, surgiram guerras regionais e fenômenos como o Estado Islâmico, buscando instaurar um califado do século XII no Oriente Médio. Outro, foi o surgimento de levas enormes de refugiados dos países do “Terceiro Mundo” em busca de sobrevivência física, forçando as fronteiras de países mais ricos.
    A onda conservadora que atinge o planeta, inclusive o Brasil, é uma reação a essas contradições do capitalismo que se quer universal destruindo barreiras, e a permanência da existência dos Estados nacionais com suas fronteiras, interesses, costumes e tradições regionais.
    Há uma guerra aberta, neste momento, entre o universalismo e o particularismo, em escala internacional. As reações do tipo Brexit, Trump e, agora a resposta retardada do tipo Bolsonaro entre nós, são a contrapartida, o outro lado da moeda do fundamentalismo terrorista e do desespero das populações crescentes do chamado “Terceiro Mundo”, das ex-colônias e do “fraco baixo ventre” do mundo -- parafraseando uma declaração de Winston Churchill sobre a vulnerabilidade do sul da Europa, então pobre e suscetível aos avanços do comunismo após a Segunda Guerra.
    Hoje, o “perigo comunista” não existe. As fantasias da expansão de Cuba ou da Venezuela (que não tem nada de comunista, mas de um populismo atrapalhado e autoritário) pela América Latina, chegariam a ser risíveis, se não servissem de justificativa ideológica para legitimar a hegemonia norte-americana na região.
    O lugar do Brasil nesse contexto internacional é, para variar, paradoxal. O governo que vai começar em janeiro já delineou suas políticas ao escolher o novo chanceler, um desconhecido sem credenciais diplomáticas e experiência internacional de respeito, mas com uma ideologia de extrema direita bem clara e até teocrática. Vamos nos colocar, por um lado, na esteira atual dos EUA em matéria de particularismo. Teremos uma política externa fechada, de fato, à globalização e à mundialização. Aparentemente, uma política “nacionalista”.
     Por outro lado, porém, continuamos a adotar “ideias fora do lugar”, como diria o sociólogo e escritor Roberto Schwarz: quando o neoliberalismo faz água em toda parte, teremos um chefe da Economia doutrinado na Escola de Chicago e que prega a desregulamentação, a desestatização e a entrega de patrimônio público para as empresas internacionais em larga escala. O que é o contrário exato do nacionalismo ou do particularismo.
     O modelo da Argentina, que antecedeu o Brasil na onda conservadora e neoliberal, dá mostras de grandes problemas, ao ponto de o governo Macri estar pedindo ainda “mais sacrifícios” ao povo, isto é, que suporte uma maior recessão por mais tempo.
     Tudo indica que o governo Bolsonaro será uma contradição ambulante, a começar pela pressão do estamento militar, presente em várias esferas de sua programação. Os militares têm uma noção de “áreas estratégicas” na economia que não poderiam ser privadas e, muito menos, entregues ao capital internacional. Mas, como o Brasil já suportou várias feitiçarias ao longo de sua História, é difícil prever o que acontecerá no futuro pelos próximos quatro anos.
     Na política econômica, seremos “particularistas-universalistas”, e não exatamente liberais como apregoam os arautos das boas novas. Ou seja, será dado prosseguimento aos “ajustes” recessivos que era a tônica do governo Temer e serão tentadas privatizações aceleradas.
     Já na esfera propriamente política, a ideologia com traços fascistas do século XX (e do conservadorismo do século XIX) deve predominar. Nos costumes, nas reformas antipopulares com finalidades estritamente econômicas e não sociais, com a provável punição judicial da esquerda e preservação da corrupção sistêmica entre governo e empresas, tudo indica que continuaremos na mesma situação corrupta, agora mais discreta e beneficiando os partidos mais conservadores.
     As Igrejas de cunho comercial, como as da Teologia da Prosperidade --outro fenômeno de escala mundial, mas particularista e retrógrado--, vão ganhar mais poder do que a Igreja Católica, e isto é tão óbvio que não chega a ser uma previsão.
     No quadro mundial, o Brasil deve ter um período de isolamento e de desprestígio pelos personagens exóticos que estarão no poder: Bolsonaro, que não precisa de explicações, o inacreditável Ônyx Lorenzoni, o juiz “imparcial” Moro, dublê de Juiz Falcone e político pseudomoralista de extrema direita, o Guedes extemporâneo, e, sobretudo, o novo Golbery, o festejado general Augusto Heleno, estrategista da vitória obtida com fakenews.
     O Brasil estará no centro da contradição dos que acreditavam num “mundo, mundo, vasto mundo/ se me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não uma solução”, como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade.
     

terça-feira, 20 de novembro de 2018

CRÍTICAS AO PT


   
 
                                                                                                                     
                                                           Reinaldo Lobo*

      Quando se faz uma crítica ao PT, seus militantes mais aficionados respondem que isso é “fazer o jogo da direita”, não importa quem a faça. Consideram qualquer crítica, venha de onde vier, “inoportuna”. Ora, toda crítica é incômoda, independente do momento em que é feita. A questão é se pode ser verdadeira e se tem consequências positivas. Permitam-me citar Shakespeare: “A verdade é um cachorro que tem de ficar preso no canil. E deve ser posto para fora a chicotadas...”
       A sugestão do filósofo norte-americano Noam Chomsky – salvo engano, insuspeito de pertencer à direita--, de se formar dentro da própria esquerda uma “comissão da verdade” para avaliar “os erros do PT”, vem num momento em que o partido perdeu uma eleição e, apesar da grande votação, temos consciência da grande rejeição oculta nessa votação por parte dos eleitores que apenas queriam evitar Bolsonaro. Todos sabemos também que inúmeras pessoas à esquerda já haviam feito a sugestão de uma autocrítica petista, pois essa atitude só fortaleceria o partido internamente e junto ao eleitorado.
     A cúpula partidária, a começar por Lula, nunca aceitou uma posição de humildade, de submissão ao julgamento dos fatos, de reflexão ou de exposição das mazelas surgidas ao longo da Operação Lava Jato e mesmo antes, por ocasião do mensalão. Se houve autocrítica foi muito interna, quase secreta. Sua alegação sempre foi que isso fortaleceria o adversário à direita e que negaria tudo de bom que o PT fez para os trabalhadores, os pobres e pelo País.
     Ora, vamos por partes. “Favorecer o adversário” : o PT não fez a autocrítica para “preservar votos”  e, mesmo assim, perdeu. Houve um momento em que o candidato Fernando Haddad esboçou um afastamento das mazelas partidárias e sua popularidade subiu nas pesquisas. Por isso mesmo, ainda tem o respeito de parte do eleitorado e poderá tentar novos voos políticos. Além disso, sempre que um partido perde uma eleição – qualquer partido—é saudável que dedique um tempo à reflexão sobre os equívocos que cometeu e, principalmente, sobre sua maneira de governar.
     O segundo argumento, o mais forte, segundo o qual a autocrítica poderia fazer obscurecer o que o PT fez de bom, precisa de consideração mais detida. De fato, o partido fez coisas boas, a maioria nunca feitas antes. Os exemplos são uma longa lista: a agricultura familiar forte; o fortalecimento do crédito popular e das cooperativas de pequenos produtores; a preservação dos direitos trabalhistas – o que não foi pouco, e custou uma enorme resistência aos lobbies empresariais que hoje apoiam Temer e Bolsonaro--; a ressurreição do Nordeste, que hoje agradece com votos e fidelidade; a consistência na manutenção da democracia nacional; a legislação que permitiu a investigação da corrupção; a autonomia da Policia Federal e das Procuradorias ( o juiz Sergio Moro deve a Dilma sua carreira de “paladino da Justiça”, graças à instituição da delação premiada em seu governo); a redistribuição de renda não só via créditos, mas também dos programas sociais bem conhecidos, com destaque ao Bolsa Família, que até o governo de extrema direita de Temer-Bolsonaro hesita em anular; a política externa pacificadora que garantiu identidade, dignidade internacional e respeito ao Brasil; e muitas outras.
      A direita insiste em dizer que tudo aconteceu graças ao governo de FHC, o que é uma outra grossa mentira-- esse governo quebrou mesmo por três vezes o País, a desigualdade social cresceu cerca de 35%, assim como o desemprego, sua política externa era bilateralista, ignorou o Terceiro Mundo e se submeteu docilmente a Bill Clinton e ao neoliberalismo então imperante. Ao contrário do que dizem as más línguas, Lula colocou o Brasil na posição de manter 40% de seus negócios externos com os EUA (com a Venezuela e Cuba foram menos de 2%) e com o restante do mundo, como África e Ásia, sobretudo com a China.
       Tudo isso – e, repito, não é pouco—não justifica o que o partido andou fazendo ao se relacionar com gente como o deputado Roberto Jefferson no mensalão, comprando votos par aprovação de projetos no Congresso ou com o “pragmatismo” aventureiro do ex-guerrilheiro José Dirceu nos tratos com a Petrobrás. A teoria simplista de que “o fim justificam os meios” ignora que, numa política socialista, significa invalidar os fins.
       Dizer que o PT “cometeu erros” é bondade. O partido de Lula foi longe nos acordos e cambalachos com seus parceiros da Nova República, em nome de alcançar e manter o poder. Os casos que ocorreram não são dignos de um partido socialista, cujo objetivo, entre outros, é combater a corrupção capitalista, e não aderir a ela.
      O principal argumento dos defensores da teoria “pragmática” de Lula e Dirceu é que, se não tivessem recorrido aos meios correntes na Nova República (“afinal, todos faziam e não havia meio de sobreviver sem isso”.) não teriam chegado sequer à Presidência. Ora, houve também abusos pessoais de personagens mais ou menos importantes, como Palocci, o pequenino Silvio Pereira e sabe-se lá quem mais nos quadros intermediários.
     Dizer que Palocci foi um traidor, depois das delações, não resolve. Por que se permitiu que tudo  ocorresse nas barbas de Lula. E as relações de Lula com a Odebrecht? Ela era parceira, é verdade, de muitos governos anteriores, desde a Ditadura civil-militar, mas isso também não justifica o PT ter-se aconchegado no interior de um Sistema corrupto (como, aliás, tenho dito aqui há muito tempo e já dizia em 2005).
     Quem disse que o PT não conseguiria ajudar os pobres ou mesmo chegar ao poder, se se mantivesse menor e combativo como era em seus princípios? Teria a oportunidade, mesmo não se tornando poderoso nacionalmente logo de início, de ir dando o exemplo em programas menores, localizados em municípios e estados, formulados com a sua pressão nos parlamentos. Houve um tempo, no Rio Grande do Sul, que os deputados e prefeitos eleitos pelo PT criaram os orçamentos participativos, de grande repercussão e eficiência. Ajudaram, inclusive, em gerar sistemas de transparência adotados por todos os partidos perante o eleitorado.
     A fantasia de uma mudança global, em escala federal, foi instaurada a partir da ambição de poder de alguns líderes da cúpula. Essa cúpula deve ser criticada e responsabilizada, inclusive, pela derrota na eleição presidencial de 2018, pois demorou demais a assumir que precisaria unir-se a outras forças para barrar a direita. Quando fez isso, já era tarde e não se pôde evitar a avalanche em que tentam enterrar a esquerda brasileira, toda ela, mesmo a independente, sob a arrogância e repressão de fascistas e reacionários de todo tipo.
      Se o PT tiver a coragem coletiva de se autocriticar e de se renovar, seus militantes e simpatizantes poderão dizer, talvez mais cedo do que imaginam, algo que li no pórtico de uma floricultura: “Tentaram nos enterrar. Não sabiam que éramos sementes.”