Reinaldo Lobo
Muitos se perguntam quando voltaremos à
normalidade. Mas de qual “normalidade” se fala? É a da volta ao trânsito
engarrafado, da poluição, do stress e da neurose urbana? Do retorno ao
desemprego estrutural? Ao consumo desenfreado de bens desnecessários e
supérfluos? À rotina do lazer programado por terceiros e dosado para as horas
de maior cansaço? Volta a quê?
A quarentena imposta pela pandemia do novo
Corona Vírus abriu uma brecha no cotidiano social bastante reveladora. Um
exemplo: foi preciso um evento de proporções traumáticas e assustadoras, capaz
de produzir uma espécie de paranoia generalizada, para que descobríssemos a
possibilidade de vivermos com o básico necessário para a sobrevivência.
Por um instante, muitos de nós tivemos que
nos confrontar com a simplicidade da vida doméstica, com a intimidade, a
evidência de problemas conjugais, sem a fuga compulsiva para o prazer em
eventos hipomaníacos, atividades comerciais programadas ou o consumo permanente
em qualquer escala.
A rotina e os hábitos repetidos têm um
papel importante na estruturação da vida mental das pessoas de qualquer país.
Independente da cultura, a continuidade do cotidiano forma um quadro de
referência, como uma moldura do dia-a-dia, dando limites e parâmetros.
Mesmo quando as condições de existência são
difíceis, quase insuportáveis, os indivíduos se adaptam, criam e mantém esse
quadro referencial que é o cotidiano minimamente confiável. Há uma expectativa
permanente de acordar no dia seguinte e encontrar a rotina, as programações e
os projetos no mesmo lugar onde foram deixados no dia anterior. É como a nossa
crença de que, após a noite, o sol vai aparecer.
A
pandemia instaurou uma espécie de eclipse solar, um apagão e uma quebra
surpreendente na continuidade da vida cotidiana. Isso tem sido traumático, pois
toda ruptura brusca na linha da existência causa uma perturbação importante na
mente individual e no esquema de representação coletiva.
Houve
grandes perdas, como no luto. Todos sentem nostalgia dos objetos e referências
perdidas, por mais difíceis que tenham sido nas circunstâncias anteriores “normais”.
Uma cultura alienada não deixa de ser uma cultura funcional a seu modo. O
rompimento da estrutura do cotidiano abala a continuidade da própria vida
cultural e de seus valores.
Para os trabalhadores, voltar ao “normal”
seria superar a ameaça à própria sobrevivência, mas também ter a segurança de
alimentar a própria família. Ocorre que os que trabalham sob o regime do
Capital estão permanentemente ameaçados pelo desemprego, os congelamentos
salariais e as ordens cuja racionalidade nem sempre está clara ou bem
estabelecida. Seria voltar para a insegurança diária que já conhecem
No Brasil, como em alguns outros países, a
quarentena provocada pela pandemia teve um problema a mais com a redução
salarial, às vezes sob o pretexto da diminuição da jornada ou do “home office”.
Além disso, veio junto com a retirada de direitos trabalhistas e sociais, o que
aumentou muito a insegurança das famílias.
Como ter um salário, por menor que seja, é
melhor do que não ter salário algum, os trabalhadores aceitaram a situação, mas
estão nostálgicos e ansiosos pela volta à “normalidade”. Os que simplesmente
perderam seus empregos e passaram a engrossar o Exército de reserva do Capital
mantém a expectativa de que, com a volta da vida rotineira, algo possa ser
resolvido.
Voltar ao cotidiano de uma sociedade
alienada de seus fins e propósitos, calcada na desigualdade e na exploração do
trabalho, não é o melhor dos mundos. Mas, mesmo assim, é ter de volta um quadro
comportamental e mental conhecido, que torna possível alguma expectativa e a
retomada das atividades populares de lazer, ou da elite. O respiro da roda de
samba, dos shows e espetáculos, não muda uma existência, mas a alivia. Por
isso, muitos torcem pelo fim da crise sanitária e das mortes pela Covid19.
Num regime capitalista, a “normalidade” é
acomodar-se às condições de trabalho, aceitar as regras do jogo e aproveitar
migalhas de descanso e lazer. As pessoas mais adaptadas à realidade do sistema
almejam ter uma propriedade, educar os filhos, reproduzir a mão de obra e
adequar-se ao dia-a-dia da indústria cultural.
A rotina de trabalho- cansaço--assistir à TV--
churrasco no fim de semana-- cerveja -- futebol pode ser o melhor para a
maioria. Muitas vezes, são ações sem criatividade alguma.
As mídias cumprem o papel de moldar as
consciências, oferecendo, muitas vezes, um lixo cultural como um caminho para a
fuga da realidade.
Ao contrário do que pensava Nietzsche, a
arte só torna a realidade mais suportável para alguns. Para a grande maioria, o
que se oferece hoje é um entretenimento de baixa qualidade, que faz parte dessa
mesma realidade difícil de suportar.
Os homens primitivos, das cavernas,
provavelmente viviam num estado em que muitos de nós vivemos durante a
quarentena: com medo, perseguidos pela morte e voltados para a sobrevivência. Muitos
aproveitaram a quarentena para ler, escrever, ouvir música, fazer yoga e
pensar. Esses são os privilegiados do sistema, com acesso à educação e a uma
cultura mais sofisticada.
A maioria, porém, ficou submetida às
palavras de ordem de Bolsonaro ou lutando para sobreviver nas filas da caridade
aos “mais vulneráveis”. Como disse um amigo, foi preciso a pandemia para
descobrirem que o Eduardo Suplicy tem razão. Uma renda básica de cidadania pode
salvar vidas e manter um consumo mínimo na sociedade, até para que a economia
funcione.
Enquanto
prevalecerem as condições de desigualdade e privilégios, de egoísmo e o individualismo
possessivo, a norma será a do crescimento econômico “infinito” e do consumo sem
limites.
Se retornar à normalidade for ao eterno retorno
do mesmo, isto é, à “normalidade anormal”, insegura e disfuncional do
capitalismo, cabe ainda a pergunta inicial: voltar a quê?
Nenhum comentário:
Postar um comentário