segunda-feira, 1 de março de 2021
HISTÓRIA DA VIRILIDADE
Reinaldo Lobo*
Já não existem “homens de verdade” na nossa civilização? Corre um boato de que as mulheres se queixam da falta de virilidade masculina, ao mesmo tempo em que desenvolvem sua própria força e desejam homens cada vez mais femininos, sensíveis, com traços outrora semelhantes aos delas próprias. Seria a invenção do “Viagra” um sinal inequívoco e derradeiro da decadência dessa virtude festejada como um ideal durante séculos: a virilidade?
Um grupo de antropólogos, historiadores das mentalidades, filósofos e psicólogos comandados por franceses buscaram responder a perguntas como essas numa obra monumental em três volumes, intitulada “História da Virilidade”, divididos em pesquisas sobre as “Origens”, o “Triunfo” e a “Crise” dessa ideia construída durante séculos para justificar a dominação masculina.
Usando métodos históricos e críticos rigorosos, essa equipe produziu uma pesquisa bastante séria sobre um fenômeno negligenciado e escondido, até porque a ideologia masculina dominante não permitia enxergar plenamente a sua natureza. Esse assunto proibido, que poderia pôr em dúvida o “macho ocidental”, ainda que seja um tema interessante e curioso, só agora começa a ser desvendado em todos os seus ângulos e momentos históricos, justamente no “crepúsculo do masculino” outrora cantado em prosa e versos.
Há um fio condutor nos três volumes desses franceses inspirados em Michel Foucault, Phillipe Ariès e a nova História “das mentalidades”. Consiste na hipótese de que a “capacidade” ou “virtude” chamada de virilidade ao longo do tempo foi uma construção psicossocial de um conceito ideológico que deu suporte à dominação masculina e ao patriarcalismo.
É preciso deixar claro que a virilidade não se reduz ao sexo, nem apenas à diferença de gênero, mas envolve atributos como coragem, ousadia, belicismo, caráter e até habilidade política. E também potência sexual, é claro.
O que se originou um pouco antes da Grécia e Roma, na Antiguidade clássica, passou pelos padres guerreiros das Cruzadas e os Templários misóginos, chegando até aos cowboys e cavalheiros do século 19, período do “triunfo”, veio desembocar na decadência da virilidade contemporânea, dos séculos 20 e 21.
Com oscilações e variações, o fio condutor do ideal de virilidade é o poder. O “machismo” é só uma manifestação exacerbada e meio patológica do desejo de poder, que, por sua vez, esconde o temor da “desvirilização” e da impotência. Uma espécie de machismo estrutural permeia até mesmo os gestos afetados das cortes europeias no advento da modernidade. A promiscuidade masculina também revela uma necessidade de corroboração do poder sobre as mulheres, as relações sociais e a posse das coisas.
Os autores dessa trilogia foram bastante influenciados pela psicanálise, sobretudo em capítulos como “Antropologias da virilidade: o medo da Impotência”, no qual, ao fim e ao cabo, o que se demonstra, baseado em Lévy Strauss e em François Heritier, é que a hierarquia estabelecida entre os sexos e a constituição das regras de comportamento sexual são uma complexa operação movida para evitar o medo à castração, diagnosticado por Freud.
Em suma, a crença na virilidade como uma “superioridade” masculina é um mito. Está evidente, como sempre ,aliás, que essa crença se baseia na insegurança e no desejo de poder, este muitas vezes frustrado no mundo contemporâneo. Foi -- como dizem nossos autores-- sobre um ideal de força física, de potência sexual, de domínio e de coragem que se construiu historicamente na cultura o que se passa como a “natureza” do homem.
Essa capacidade “natural” justificou por séculos a submissão das mulheres, “de natureza mais fraca”, e a repressão a todos os modos de sexualidade e de identidades que não se ajustavam ao modelo masculino. São famosas e já divulgadas pelas feministas as representações “científicas” da mulher como um corpo inacabado de homem, a figura biológica e socialmente dominante.
Hoje, porém uma “crise se propaga no império do macho”, como diz o último volume da trilogia: os massacres guerreiros apagaram a imagem dos heróis, a variação cíclica das depressões econômicas minou o orgulho do trabalhador, o consumo e o crescimento dos conformismos esgotou o gosto pelas aventuras e a ousadia.
O progresso das mulheres e do feminismo também têm amedrontado os homens, a igualdade maior entre os sexos e os protestos femininos estão contestando velhos privilégios masculinos e as violências impossíveis de aceitar.
Não sabemos o que virá, se o matriarcado ou uma plena diversidade e democracia sexual (como propõe a “filosofia Queer), mas não há dúvida de que os homens estão sendo postos, finalmente, no seu devido lugar.
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