Reinaldo Lobo
Se houve um mérito na vida violenta de
Osama Bin Laden foi o de ter destruído o mito histórico da “globalização” em 11
de setembro de 2001. A ideia de uma livre circulação dos cidadãos, das culturas,
dos valores, das mentalidades entre os países e de um fim definitivo do
Estado-Nação, desabou no exato momento da queda das Torres Gêmeas, levando junto
as crenças no universalismo e na paz perpétua.
Ainda é possível pensar, como fazem
certamente os marxistas ortodoxos e os liberais idem, em um livre trânsito das
mercadorias e dos negócios. É verdade que as “fronteiras” mudaram relativamente
na Europa e vários organismos internacionais de regulação da economia, como o
Banco Mundial, o FMI, a OMC, a própria União Européia, enfraqueceram os
Estados, assim como a existência de um capitalismo quase que inteiramente
fundado nas grandes corporações mundiais tende a romper os limites das
barreiras nacionais e regionais.
Tudo isso não significa, entretanto, que
os particularismos tenham desaparecido, apesar de mudanças estruturais na
esfera econômica em larga escala, no comércio, no consumo e na produção. Nem
tudo está relacionado apenas à economia e, às vezes, nem ao imaginário
capitalista, num sentido estrito. O
Estado Islâmico, por exemplo, ressuscitou um imaginário feudal e
pré-capitalista, que está enraizado na cultura do Oriente Médio.
A resistência da Grã-Bretanha em
permanecer no sistema monetário e econômico do Mercado Comum Europeu (a reação
BREXIT) revela apenas um sinal tardio do paradoxo do mundo contemporâneo, onde
crescem espantosamente os fenômenos da xenofobia e do racismo.
O conflito revelado em 2001 no Onze de
Setembro é a dicotomia entre, de um lado, o universalismo relativo aos seres
humanos, que têm direito ao sonho de direitos para todos e do fim dos
nacionalismos excludentes, do bairrismo, da xenofobia, do racismo, e, por outro
lado, o universalismo pretendido pelas “culturas” singulares.
Como diria um autor pouco conhecido entre
nós, Cornelius Castoriadis, é a confrontação entre um universalismo relativo a “todos
os homens”, como é postulado pelos Direitos Humanos e o liberalismo clássico, e
o universalismo postulado pelas “significações imaginárias” criadas e
instituídas por uma cultura concreta ou específica. Essas significações
particulares, que não são apenas “valores” abstratos, conferem uma identidade real
aos cidadãos dessas nações, regiões ou tribos em particular. São a sua
“realidade” instituída, que consideram, em muitos casos, a única existente e
que postulam muitas vezes como a “verdadeira” e a “universal”. Num certo
sentido, são mesmo, pois são criações igualmente humanas.
Se você convidar um árabe a deixar de ser
árabe ou mesmo muçulmano, certamente dirá que deseja roubar-lhe a identidade e
destruir seu legítimo direito de ser quem é. Se convidasse um russo a pertencer
a uma união entre nacionalidades diferentes, como ocorreu na falecida União
Soviética, mas que, para isso, deveria deixar de ser russo, ele poderia até
submeter-se pela força, mas certamente não aceitaria o convite de bom grado. Poucos duvidam que uma das causas da
decadência da então “união das repúblicas soviéticas” foi a resistência de seus
diversos povos a se submeterem a uma uniformização.
A proposta de uma “globalização” a partir
de interesses econômicos “comuns” (que também não são tão comuns assim) passa
por cima desse conflito entre as culturas singulares e a universalização. Além
disso, resta sempre a pergunta: globalização comandada por quem? Submetida a
quais valores ou interesses?
Há, no sentido dessas perguntas, uma
diferença fundamental entre a xenofobia européia em relação aos refugiados e
imigrantes do Terceiro Mundo, originada pelo racismo e o temor de perda de
privilégios, que conduziu psicologicamente uma maioria do povo inglês a votar
pela saída da União Européia, e a resistência dos povos subdesenvolvidos à
imposição pelo poder de uma “globalização” provinda de uma cultura dominante e
colonizadora.
Essa diferença é explicativa, mas não
justifica a xenofobia em nenhum dos casos. Tampouco justifica o uso da
violência. Sabemos que xenofobia vem do conceito de “xenós” (estrangeiro) e
“phóbos” (medo), ou seja, “medo do estrangeiro”. Define o medo, a rejeição, o
estranhamento e/ou o ódio ao estrangeiro.
Sua manifestação psíquica provém da
tendência da mente humana, sobretudo de seu narcisismo e insegurança
existencial, de odiar aquilo que não é ela mesma ou o que ameaça sua percepção
de estabilidade. Como diria Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é ele
mesmo”. As manifestações xenófobas variam desde o desprezo mais ou menos
explícito, o isolamento do outro, sua expulsão, até as agressões e o
assassinato.
Uma forma muito frequente de xenofobia é a
que se exerce em função do racismo e não por que possam existir diferenças
apenas de natureza econômica ou nacionalista. Em vários casos os fatores se
combinam.
Em alguns lugares, como nos Estados
Unidos, o governo se declara anti- racista e anti-bairrista, mas sabe-se que
existem subculturas racistas muito fortes no interior da sociedade
norte-americana, até no nível do poder político. Mesmo com um presidente negro,
o racismo prossegue e, pelo menos um candidato à sua sucessão, Donald Trump, não
esconde sua rejeição a negros e não-brancos em geral, como os hispânicos. Na
Rússia, ocorre algo parecido que vem desde a extinta União Soviética:
oficialmente o governo era e é antirracista, mas é conhecido o estímulo de
poderosos ao antissemitismo e, agora, também a rejeição aos muçulmanos.
O paradoxo da xenofobia e do racismo é
que, para afirmar uma “identidade” ou os “valores” singulares, sejam nacionais,
grupais ou individuais, necessitam afrontar a esfera dos direitos humanos
universais.
Em outras palavras, a xenofobia reveste-se
de violência e de ódio porque representa, já na saída ou na sua fonte, uma
transgressão, às vezes de forma criminosa, das normas gerais e uma violação
particular dos direitos do outro.
Sua fraqueza está no fato de que agride
tanto os direitos universais quanto os direitos presumidos de outra cultura. A
sua força, contudo, está na persistência de sua existência ao longo da história
e na dificuldade de erradicá-la.
O
sonho de acabar com a xenofobia só se poderia realizar se houvesse uma
sociedade em que os cidadãos fossem verdadeiramente conscientes da autonomia do
outro, eles próprios autônomos e capazes de autogerir humana e democraticamente
a sua sociedade. Ainda estamos longe disso, mas o projeto existe potencialmente
sob o nome de democracia e não deveria ser extinto.