sábado, 19 de setembro de 2020

HISTÓRIA MAL CONTADA

Reinaldo Lobo A teoria é simples: o impacto das novas tecnologias eletrônicas e a mundialização das comunicações provocou uma mutação profunda nas sociedades e decretou o fim dos embates sociais e inaugurou a “Era dos Conflitos Culturais”. Alguns sociólogos, historiadores e filósofos “pós modernos” declararam o “fim da História”, mas não apenas isso. Procuraram demonstrar a impossibilidade de pensar a História e a sociedade com conceitos políticos e econômicos, como se fazia nos últimos dois séculos. A temática e os instrumentos para estudar o assunto, dizem eles, são as diferenças culturais, as religiões e as questões das minorias. Em parte, eles têm razão. A chamada sociedade industrial clássica não existe do mesmo modo. O panorama de fábricas com as chaminés fumegantes e os altos fornos não existe mais. Hoje, existe a automação e a produção se faz em alta escala por máquinas sofisticadas sem um intenso trabalho humano. A velocidade e o consumo em alta escala dão o tom de uma meta imaginária de “crescimento infinito” e “consumo sem limites”. De fato, vieram à tona as questões das minorias que participam disso sem uma inclusão clara e sem reconhecimento social, gerando tensões culturais e lutas de princípios. Esse tipo de pensamento, contudo, desvia a atenção e desarma a inteligência sobre os conflitos sociais que persistem, como a enorme desigualdade social em todas as partes do mundo e, inclusive, entre os mundos, isto é, o desenvolvido e o dos países subdesenvolvidos ou emergentes. Não foi por caso que essa teoria simples foi elaborada na Europa e nos Estados Unidos. Mesmo nos países de seus autores, como os EUA, a França e a Inglaterra, a desigualdade não só persiste como tem aumentado bastante, como mostram as pesquisas recentes sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dessas regiões. Os teóricos que declaram o “fim do social” descrevem uma paisagem de uma revolução tecnológica da informação cujos efeitos sociais e culturais são visíveis por toda parte, sem dúvida. O aspecto social é o desemprego provocado pela automação, que é negado ou omitido. O cultural é o surgimento de novas subjetividades “informatizadas”: já se fala em uma geração “digital born”, nascida na era digital. O ponto em que mais insistem, contudo, é a ausência de todo determinismo tecnológico nessa sociedade pós industrial da informação, que a separaria claramente da sociedade industrial moderna, onde a divisão técnica do trabalho não podia ser separada das relações sociais de produção. Teria surgido uma situação nova em função da grande flexibilidade dos sistema de informação. Haveria, então, uma espécie de sistema que funcionaria no ar, sem qualquer base social imediata, pairando acima das instituições, dos grupos e mesmo dos estados-nação, o que possibilitaria uma perfeita “globalização” da economia, restando às sociedades locais apenas a função de regular seus conflitos culturais: lugar da mulher, das identidades locais e de raça. Os argumentos desses teóricos parecem fortes, mas não dão e não deram conta de algumas perguntas igualmente simples: o modo de produção capitalista, a reprodução do capital, desapareceu ou apenas mudou de forma? A apropriação da riqueza e da propriedade, inclusive da propriedade intelectual dos “sistemas flexíveis”, mudou essencialmente na sociedade da informação? As crises capitalistas cíclicas se alteraram com a informatização ou apenas se agravaram com as concentrações e manipulações do capital financeiro mundial por meio da flexibilidade e da velocidade? O grande equívoco desse tipo de pensamento “pós moderno” não é a crítica da modernidade ou a constatação de que houve mudanças nas sociedades, mas o exagero em adotar uma novo modelo de interpretação, um tanto acrítico, do que veio com a virada para o século XXI. A relativa separação entre forças produtivas e relações de produção não resolveu os antagonismos sociais. Ao contrário, produziu uma imensa multidão de excluídos e de refugiados. Os computadores funcionam bem na Europa assim como na África, mas isso não tirou os africanos de sua condição social e econômica difícil. O desenvolvimento desigual e combinado continua mantendo a América Latina no “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, como diziam o historiador da economia e sociólogo germano-americano Andrew Gunder Frank e o economista brasileiro Ruy Mauro Marini, autores da “teoria da dependência” do capitalismo. O que os pós-modernos exageram é o peso da tecnologia, sem considerar as nuances entre conflitos sociais e culturais. Dizem que um mundo acabou e começou outro, como se essa evolução fosse um simples milagre, não o resultado de inúmeras e complexas contradições e complementariedades no interior dos sistemas sociais. Deixam escapar toda uma dimensão, a reprodução do capital, e toda a esfera social, onde as classes subsistem e buscam sobreviver dentro do regime capitalista que está em busca do crescimento infinito. O raciocínio dos sociólogos, historiadores e filósofos “pós modernos” é reducionista e, às vezes, deslumbrado com um “admirável mundo novo”. Não é por acaso que alguns deles vendem uma “filosofia da felicidade”, aproveitando, aliás, a “flexibilidade” dos novos meios de comunicação, que aceitam muitas coisas.

domingo, 6 de setembro de 2020

MENTIRAS QUE NOS CONTARAM

Reinaldo Lobo Uma das mentiras mais escandalosas que nos pregaram, lá pelo final dos anos 80 e início dos 90, foi o rótulo de “globalização” para o que acontecia na economia e na sociedade do planeta. Foi uma invenção de neoliberais disfarçados de socialdemocratas, principalmente o presidente norte-americano Bill Clinton e o primeiro ministro inglês Tony Blair. Não é preciso dizer que logo foram imitados pelo nosso ilustre FHC, que a divulgou como se o mundo tivesse entrado numa nova era democrática, uma espécie de utopia de onde jorrariam o leite e o mel da comunhão entre os povos e da riqueza advinda do comércio sem barreiras. Um sociólogo britânico, Anthony Giddens, tido como conselheiro de Blair, deu a base teórica para a justificação ideológica desse programa, inventando outra mentira escrachada – na verdade reinventando, pois o fascismo já se denominava assim: foi a expressão Terceira Via (entre o comunismo-socialismo e o capitalismo). Na verdade, o governo trabalhista de Blair precisava de uma racionalização para explicar sua adoção, quase ao pé—da—letra, da política herdada de Margareth Thatcher, ultraliberal e conservadora. O objetivo do programa neoliberal era desmontar o Estado-do-Bem-estar Social adotado em quase toda a Europa após a Segunda Guerra Mundial. Essa desmontagem era um efeito do crescimento brutal da economia norte-americana no após-guerra, do novo domínio do capital financeiro e dos monopólios internacionais, chamados agora de multinacionais. A chamada globalização foi pintada como a livre circulação das pessoas e das ideias, como o congraçamento entre os povos, o início do fim das fronteiras e a aproximação cultural. A representação mais encantadora dessa nova etapa era a Europa do mercado comum, moeda comum e economias “cooperativas”. Só esqueceram de dizer que isso se dava no pano de fundo de um capitalismo cada vez mais voraz por novos mercados, além de se ignorarem três questões: os regionalismos culturais, como o do mundo árabe e muçulmano; a miséria crescente no Terceiro Mundo e seus conflitos como área estratégica das grandes potências; e—last, but not least—a crescente presença da economia chinesa, que aparecia como uma gigantesca nave deslizando num mar dominado pela Pax Americana. A economia dita mundializada se tornou um cassino de operações financeiras altamente concentradoras de renda e nunca se viu tamanha distância entre ricos e pobres no planeta. Hoje, a própria Europa, modelo para a utopia, enfrenta o Brexit e conflitos econômicos e monetários entre seus participantes. Com o 11 de setembro de 2001 caiu completamente a quimera de um mundo globalizado, e surgiu uma nova mentira: a crença de que tudo se resumia a uma guerra entre civilizações, a ocidental e a oriental, assim como a um conflito de religiões entre cristãos e muçulmanos. O que era a superfície virou a essência e, assim, fizeram-se duas guerras por petróleo no Oriente Médio, acirrando o novo espantalho—o terrorismo. A superfície, era o perigo terrorista; o fundamento, a guerra pela hegemonia do mercado de energia no mundo, bem longe de ser cooperativo e regulável apenas pelas leis de mercado. A aparente cena idílica da globalização foi substituída cada vez mais por conflitos com refugiados das regiões pobres, que tentam entrar em sociedades sobreviventes da crise geral do capital, cujas contradições consistem em buscar a internacionalização e , ao mesmo tempo, garantir os poderes hegemônicos locais e regionais. A mais nova mentira que nos contam é a do conflito fundamental entre os EUA e a China, quando as duas economias estão cada vez mais complementares e, se uma soçobrar, a outra também irá água abaixo. Há conflito político entre as duas potências pela manutenção dos atuais limites e interesses, agravados pela política regressiva de Donald Trump , forjando um falso nacionalismo norte-americano com finalidades eleitorais e, numa certa medida, financeiras. A pergunta que fica é: quem cria as mentiras, estimulando a ignorância e a submissão das pessoas em toda parte? Vimos como, no caso dos EUA e Inglaterra, a invenção ideológica da Terceira Via foi necessária para servir aos interesses políticos dos respectivos governos. Hoje, as lideranças da China e dos EUA também têm interesses semelhantes: os chineses, em manter o regime totalitário com o povo acreditando num inimigo externo; no caso norte-americano, a mentira serve para ganhar eleições para o partido de Trump, mas também para os democratas. Os chineses tinham um slogan do tempo de Mao Tsé tung: “ o imperialismo norte-americano é um tigre de papel”. Não poderíamos dizer agora que a China também é um tigre de papel?