quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

UMA MUTAÇÃO SOCIAL




                                                                     Reinaldo Lobo

        Ainda não vivemos inteiramente no mundo de “Black Mirror”, a série de terror tecnológico, mas caminhamos para uma época de automação no trabalho e de controle eletrônico por uma nova classe de comando na sociedade: a “cognicracia”. São os “nerds” e “geeks”, detentores do conhecimento e das informações, que servem de agentes da globalização e do capital financeiro na economia atual. Parece que as máquinas assumem o controle, contudo, é “a economia, estupido!”, já dizia Bill Clinton.
        Tem havido uma rápida e nada sutil mutação social no trabalho e na subjetividade humana. Está difícil até mesmo considerarmos a imagem tradicional de “humanidade” nesta era de autômatos, cartões, celulares, chips, robôs, drones e controle da privacidade.
       Não nos enganemos: o que move essa transformação é a lógica do capital, agora internacionalizado ao extremo na sua forma financeira, particularmente perversa.
        As novas gerações são convidadas a ressaltar a figura do economista em detrimento do político. Do “técnico” em lugar do cidadão. Os efeitos da mutação em escala global da economia são a precarização do emprego, a desterritorialização, o declínio da burguesia e do proletariado e sua substituição gradual pelo “cognitariado” e a classe executiva financeira, a submissão dos trabalhadores por dispositivos de automação e controle, cujos resultados incluem um obstáculo para criar formas de solidariedade e de relações do tipo pessoal ou corpo a corpo.
       Esse quadro tem sido muito bem descrito nos livros e entrevistas do filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, que acaba de lançar “Fenomenologia do fim. Sensibilidade e mutação conectiva (Caixa Preta)”, sobre a verdadeira mutação antropológica pela qual estaria passando hoje a humanidade. Ativista dos movimentos autonomistas em seu país, Berardi é também autor, entre outros, de “A Fábrica da Infelicidade”; “Geração Pós-alfa” e “A sublevação”, obras onde aborda especificamente essas transformações da subjetividade e do trabalho na economia do capitalismo avançado ou “pós moderno”.
      Como Zygmunt Bauman, o filósofo italiano vê uma especificidade no capitalismo atual, que não se resume à destruição de valores tradicionais ou à dissolução no ar de tudo o que era sólido. Vai além: estamos diante da construção de uma nova concepção de humanidade, isto é, uma diferente forma de ver e conceber um ser humano, sua mente e seu comportamento. Diferente de Bauman, Berardi não se detém na questão do tempo (tempo líquido e velocidade), mas considera isso implícito e descreve a estrutura comunicacional submetida ao capital.
       O “fim” de que fala Berardi é a transformação do humano, devida à “abstração e à aceleração frenética provocadas pela transição tecnológica em direção ao meio digital”.
      Numa entrevista concedida ao jornal argentino “Clarín”, Berardi mostra que “a exposição incessante da sociedade a fluxos de informação, em convergência com o novo modo do capitalismo (o que chama de “absolutismo capitalista”), corrói as capacidades humanas de empatia, supera as possibilidades neuronais de atenção, debilita as condições para transformar a esfera social através da vontade política”. Tudo isso tem como efeito a perturbação ou a eliminação: do gozo, da crítica, da decisão política, da sensibilidade (a faculdade de compreender o “tácito”), do erotismo (a habilidade “de perceber o corpo do outro como uma extensão viva do meu próprio corpo”).
      Berardi considera que os efeitos dessa automação humana sobre nossa sensibilidade são desastrosos e acredita que, “diante da perda de eficácia da política, está na hora de desconectar as “concatenações estressantes” que só conduzem ao pânico, à solidão e à depressão”.
      A mutação cognitiva e antropológica a que assistimos é uma parte importante da decadência da política e da ação no espaço público. Berardi tem razão em apontar o impacto disso. Mas, ao nosso ver, a emergência dos meios eletrônicos tem duas faces: uma, é negativa, pois envolve, aliena e distrai o cidadão de seu papel e o isola; a outra, pode ter um potencial positivo de resistência – a rede social de comunicação instantânea e internacional possibilita aglutinar as pessoas de diferentes locais e mobilizar massas.
     Essa visão distópica da modernidade, apesar de conter lúgubres verdades importantes, peca pela falta de visão dialética. Há contradições evidentes na forma pela qual se apresenta a comunicação eletrônica que está disponibilizada para o consumo. Não só os nerds e geeks do capital têm acesso a ela.  Uma face é unidimensional e induz à submissão automática; a outra é expansiva do contato e da mobilização. Grandes movimentos mundiais foram convocados por meios eletrônicos. Os hackers existem e figuras como Julian Assange e Edward Snowden representam expressões dessa possibilidade de resistência.
     Uma face democrática de participação direta por meios eletrônicos também pode ser vista no futuro da humanidade. Aliás, já acontece na forma de vários tipos de interação. Consultas populares, plebiscitos, voto eletrônico, pesquisas de opinião pública, controle de qualidade, recalls e outros recursos apontam para uma democratização participativa a ser explorada a favor da cidadania. Não é impossível sermos imaginativos e vislumbrarmos uma “Eclésia” grega onde os participantes possam tomar decisões rápidas sobre questões coletivas.
     Há, sem dúvida, uma decadência da política tradicional e uma exaltação do economista, assim como do tecnólogo da comunicação a serviço do capital. Isso tem consequências negativas e destrutivas. Mas há também o oposto disso, que é a possibilidade de resistência e de resgate da política por outros meios.