quinta-feira, 7 de julho de 2016

XENOFOBIA

   

                                                           Reinaldo Lobo

        Se houve um mérito na vida violenta de Osama Bin Laden foi o de ter destruído o mito histórico da “globalização” em 11 de setembro de 2001. A ideia de uma livre circulação dos cidadãos, das culturas, dos valores, das mentalidades entre os países e de um fim definitivo do Estado-Nação, desabou no exato momento da queda das Torres Gêmeas, levando junto as crenças no universalismo e na paz perpétua.
        Ainda é possível pensar, como fazem certamente os marxistas ortodoxos e os liberais idem, em um livre trânsito das mercadorias e dos negócios. É verdade que as “fronteiras” mudaram relativamente na Europa e vários organismos internacionais de regulação da economia, como o Banco Mundial, o FMI, a OMC, a própria União Européia, enfraqueceram os Estados, assim como a existência de um capitalismo quase que inteiramente fundado nas grandes corporações mundiais tende a romper os limites das barreiras nacionais e regionais.
      Tudo isso não significa, entretanto, que os particularismos tenham desaparecido, apesar de mudanças estruturais na esfera econômica em larga escala, no comércio, no consumo e na produção. Nem tudo está relacionado apenas à economia e, às vezes, nem ao imaginário capitalista, num sentido estrito.  O Estado Islâmico, por exemplo, ressuscitou um imaginário feudal e pré-capitalista, que está enraizado na cultura do Oriente Médio.
     A resistência da Grã-Bretanha em permanecer no sistema monetário e econômico do Mercado Comum Europeu (a reação BREXIT) revela apenas um sinal tardio do paradoxo do mundo contemporâneo, onde crescem espantosamente os fenômenos da xenofobia e do racismo.
     O conflito revelado em 2001 no Onze de Setembro é a dicotomia entre, de um lado, o universalismo relativo aos seres humanos, que têm direito ao sonho de direitos para todos e do fim dos nacionalismos excludentes, do bairrismo, da xenofobia, do racismo, e, por outro lado, o universalismo pretendido pelas “culturas” singulares.
    Como diria um autor pouco conhecido entre nós, Cornelius Castoriadis, é a confrontação entre um universalismo relativo a “todos os homens”, como é postulado pelos Direitos Humanos e o liberalismo clássico, e o universalismo postulado pelas “significações imaginárias” criadas e instituídas por uma cultura concreta ou específica. Essas significações particulares, que não são apenas “valores” abstratos, conferem uma identidade real aos cidadãos dessas nações, regiões ou tribos em particular. São a sua “realidade” instituída, que consideram, em muitos casos, a única existente e que postulam muitas vezes como a “verdadeira” e a “universal”. Num certo sentido, são mesmo, pois são criações igualmente humanas.
     Se você convidar um árabe a deixar de ser árabe ou mesmo muçulmano, certamente dirá que deseja roubar-lhe a identidade e destruir seu legítimo direito de ser quem é. Se convidasse um russo a pertencer a uma união entre nacionalidades diferentes, como ocorreu na falecida União Soviética, mas que, para isso, deveria deixar de ser russo, ele poderia até submeter-se pela força, mas certamente não aceitaria o convite de bom grado.  Poucos duvidam que uma das causas da decadência da então “união das repúblicas soviéticas” foi a resistência de seus diversos povos a se submeterem a uma uniformização.
      A proposta de uma “globalização” a partir de interesses econômicos “comuns” (que também não são tão comuns assim) passa por cima desse conflito entre as culturas singulares e a universalização. Além disso, resta sempre a pergunta: globalização comandada por quem? Submetida a quais valores ou interesses?  
     Há, no sentido dessas perguntas, uma diferença fundamental entre a xenofobia européia em relação aos refugiados e imigrantes do Terceiro Mundo, originada pelo racismo e o temor de perda de privilégios, que conduziu psicologicamente uma maioria do povo inglês a votar pela saída da União Européia, e a resistência dos povos subdesenvolvidos à imposição pelo poder de uma “globalização” provinda de uma cultura dominante e colonizadora. 
     Essa diferença é explicativa, mas não justifica a xenofobia em nenhum dos casos. Tampouco justifica o uso da violência. Sabemos que xenofobia vem do conceito de “xenós” (estrangeiro) e “phóbos” (medo), ou seja, “medo do estrangeiro”. Define o medo, a rejeição, o estranhamento e/ou o ódio ao estrangeiro.
     Sua manifestação psíquica provém da tendência da mente humana, sobretudo de seu narcisismo e insegurança existencial, de odiar aquilo que não é ela mesma ou o que ameaça sua percepção de estabilidade. Como diria Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é ele mesmo”. As manifestações xenófobas variam desde o desprezo mais ou menos explícito, o isolamento do outro, sua expulsão, até as agressões e o assassinato.
     Uma forma muito frequente de xenofobia é a que se exerce em função do racismo e não por que possam existir diferenças apenas de natureza econômica ou nacionalista. Em vários casos os fatores se combinam.
     Em alguns lugares, como nos Estados Unidos, o governo se declara anti- racista e anti-bairrista, mas sabe-se que existem subculturas racistas muito fortes no interior da sociedade norte-americana, até no nível do poder político. Mesmo com um presidente negro, o racismo prossegue e, pelo menos um candidato à sua sucessão, Donald Trump, não esconde sua rejeição a negros e não-brancos em geral, como os hispânicos. Na Rússia, ocorre algo parecido que vem desde a extinta União Soviética: oficialmente o governo era e é antirracista, mas é conhecido o estímulo de poderosos ao antissemitismo e, agora, também a rejeição aos muçulmanos.
     O paradoxo da xenofobia e do racismo é que, para afirmar uma “identidade” ou os “valores” singulares, sejam nacionais, grupais ou individuais, necessitam afrontar a esfera dos direitos humanos universais.
     Em outras palavras, a xenofobia reveste-se de violência e de ódio porque representa, já na saída ou na sua fonte, uma transgressão, às vezes de forma criminosa, das normas gerais e uma violação particular dos direitos do outro.
     Sua fraqueza está no fato de que agride tanto os direitos universais quanto os direitos presumidos de outra cultura. A sua força, contudo, está na persistência de sua existência ao longo da história e na dificuldade de erradicá-la.

    O sonho de acabar com a xenofobia só se poderia realizar se houvesse uma sociedade em que os cidadãos fossem verdadeiramente conscientes da autonomia do outro, eles próprios autônomos e capazes de autogerir humana e democraticamente a sua sociedade. Ainda estamos longe disso, mas o projeto existe potencialmente sob o nome de democracia e não deveria ser extinto.