quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A GUERRA PELO PODER


  
                                                                    Reinaldo Lobo*

       Foi um norte-americano, Thomas Skidmore, quem estudou o autoritarismo brasileiro a partir do esquema: "os que estão dentro" e os que "são de fora". Esse cientista político viveu vários anos no Brasil, acompanhou todo o período ditatorial e também o advento da Nova República, e descobriu um sistema inteiro de poder implícito, informal, quase invisível, mas muito operativo entre nós. A fórmula é interessante para entender nossa atual - e grande- crise política.
      Ao longo de nossa história desde, pelo menos, o Império, Skidmore detectou um bloco interno da oligarquia dominante, que impede solavancos  e instabilidade no seu domínio. E auxilia sua recuperação das crises.Esse grupo é representado de forma variável por diferentes partidos e líderes. Na República Velha, antes de 1930, eram os governadores provinciais e presidentes nacionais sucessivos sob a égide dos barões do café e fazendeiros, aos quais foram acrescidos, aos poucos,os emergentes industriais e, claro, os banqueiros.  O grupo dominante "de dentro" eram os políticos mineiros e paulistas, a fórmula do "café com leite".
     O gaúcho Getúlio Vargas, revolucionário de 30, veio "de fora" ao lado de gente como o convertido ao comunismo Luiz Carlos Prestes. Ambos, além da burguesia e da pequena burguesia ascendentes, trouxeram a questão do trabalho e dos trabalhadores.
   Getúlio, que pertencia a um filão da oligarquia rural, aliou-se  a setores "de dentro", mas surrupiou dos comunistas e socialistas a bandeira do trabalho e criou o "trabalhismo", inspirado em parte no fascismo e também na social democracia européia. Procurou conciliar o empresariado, então ascendente, e a classe trabalhadora, mostrando um traço sociológico característico do populismo. Populismo, aliás, que é uma forma de dominação e não de transformação.
     O trabalhismo foi apenas tolerado pelos  "de dentro" do núcleo férreo da oligarquia dominante. A presença de Getúlio foi combatida com vigor por várias frações oligárquicas, durante décadas. E todos conhecem a história que culminou  no "mar de lama" criado pelos militares e Carlos Lacerda na República golpista do Galeão, com processos investigativos que inspirariam os sumários IPMs da Ditadura Militar, que foi o Estado Novo udenista.
     Após a morte de Getúlio, o bloco dominante "de dentro" , constituído politicamente pela UDN, o oportunista PSD mineiro e vários partidos satélites, não parou de perseguir o caminho do golpe contra qualquer resquício de trabalhismo. Até o liberal Juscelino Kubitschek, ao aliar-se a João Goulart no caminho da presidência e aos militares nacionalistas que impediram o cancelamento de sua posse, foi posto para fora do bloco dos "virtuosos" conservadores brasileiros -- que nada tinham de virtuosos em suas ações entre amigos no interior de seu núcleo.
      O trabalhismo e a tomada de posição pelos trabalhadores passaram a ser o sinal maldito que deixava "de fora" das elites oligárquicas qualquer político ou partido. Por outro lado, os trabalhistas do PTB e alguns do seus aliados circunstanciais,  o populismo ademarista, os comunistas e outros, cuidaram de formar seu próprio bloco. Chegaram ao poder com Jango em meio a uma crise violenta, provocada pelo populista que se aliara aos poderosos "de dentro", Jânio, e que tentou um golpe bonapartista, acima das classes e das diferenças ideológicas. Queria-- megalomaniacamente, diga-se-- ser uma espécie de Nasser ou de Nehru, líderes autoritários "neutralistas" na Guerra Fria. Jânio fracassou porque emitiu uma mensagem ambígua para os "de dentro" e os "de fora" do sistema dominante.
      Quando Lula foi eleito em 2002, acenou com concessões políticas e econômicas para os poderosos, a fim de passar por dócil o seu "novo sindicalismo", uma versão pós-ditadura e pós-modernista do trabalhismo. Lula começou combatendo o peleguismo getulista, estava ,portanto, com autoridade para negociar não só com o patronato, mas com as raposas políticas herdeiras do bloco anti-trabalhista, como os do DEM, do PMDB e -- last but not...-- a nova face da UDN, o PSDB.
      Lula tinha plena consciência de que fariam de tudo para varrê-lo para fora do bloco de poder, assim como sua sucessora, Dilma, pelos mesmos meios da desmoralização e dos IPMs. Agora, ao modo da Nova República.
       A caça a Lula e ao PT  foi adiada uma década em função do sucesso do modelo econômico duplo, de inclusão social e de crescimento econômico, que deixou satisfeitos a burguesia, as multi, os ruralistas e os banqueiros. Somadas às práticas "informais" rotineiras no sistema dos "de dentro", adotadas pelo PT para ser aceito, sobreviver e fazer sua política dupla de mudança e acomodação, o trabalhismo "lulopetista"  (como o chamam seus inimigos) até que tem durado bastante, com manobras cada vez mais conciliatórias.
      O PT aderiu, de várias formas, ao sistema que não o quer e adotou todos os métodos de ação da rotina de relação incestuosa entre poder político e empresariado, sobretudo desde a Ditadura Militar, que, neste sentido, prossegue na Nova República.
      A crise política, agravada por uma crise econômica real e pelo terrorismo econômico do empresariado ameaçado pelas investigações apoiadas por Dilma, que lhes tirou a "imunidade" histórica, chegou ao seu ponto máximo, ao paroxismo. A onda conservadora latino-americana (e norte-americana) que avança contra todos os governos populares da última década empurra ainda mais o governo Dilma para a defensiva na guerra de vida e de morte.
     Nos últimos dias, os combates se aguçaram, Dilma tenta as últimas táticas, chamou Ciro Gomes, mais ativo e agressivo que seus ministros, para se aconselhar e partiu para o ataque contra a tropa de choque de Eduardo Cunha e seu chefe no PMDB, Temer. Não vai ser fácil, a imprensa cuida para não deixar de enfocar as denúncias em Lula e pedir que a classe média participe nas ruas. Mas a população parece enojada também com os métodos dos representantes do bloco hegemônico dos "de dentro", que se tornaram públicos demais. A guerra não é moral, mas política. Só que a classe média está perplexa com o que tem descoberto. Pode estar dividida politicamente por isso.
      O golpe, se consumado, virá por cima partindo  em bloco dos "de dentro" da oligarquia neoliberal, incluída aí a mídia conservadora.Foi como aconteceu no Paraguai, ainda que mais sorrateiramente e nas suas proporções. Nossa oligarquia tem vergonha de seguir o "modelo" do Paraguai -- que dominam, estão imitando e,ao mesmo tempo, desprezam.

    Só não somos parecidos com o Paraguai por termos um movimento social, sindicatos, militâncias e  lideranças no Nordeste suficientemente fortes e grandes para reagir a um golpe...paraguaio. Quem viver, verá.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

UM PAÍS DE DELATORES



                                                               REINALDO LOBO*

       Delator, dedo-duro, traíra, informante, alcagüete, silvério dos reis, colaborador, rato, "snitch" e herói.  Herói?!
        Houve um tempo em que a delação era abjeta, quase um crime dentro do crime, algo de causar vergonha ao seu autor. Era só motivo de punição entre detentos, às vezes, por meio de rápida e simples "execução". Além da condenação moral da sociedade, é claro.
        Foi exageradamente banalizada na cena brasileira atual, de denúncia da corrupção generalizada. Hoje impera um clima  de total falta de confiança, inclusive nas instituições.Como confiar numa Justiça que não investiga quem for da oposição? Como acreditar na imprensa que toma partido e pede ostensivamente que se ignore o resultado das urnas? E numa Polícia Federal que tem alguém que "vende" informações? O governo fez ou não acordo tácito com Eduardo Cunha, aquele que sempre escapa?
       Não se espera mais de nenhum setor uma investigação normal, dentro das regras, mas deve haver inevitavelmente algo "por debaixo dos panos".  A delação já passou de "natural", algo como um jogo necessário,  a uma "ação positiva", quase um feito a ser dignificado. Não é por acaso que se denomina "delação premiada". A palavra é ambígua, designa  uma troca de informações por menos tempo e benefícios na pena,  mas  significa, ao mesmo tempo, um "prêmio".
      O traíra virou herói da "limpeza moral" da nação. O "convertido" em cidadão  exemplar. Um patriota!
      O primeiro grande delator premiado, o ex-deputado Roberto Jefferson, chegou a ser aplaudido nas ruas e restaurantes pelos caçadores de cabeças e mesmo pela opinião pública em sintonia com a imprensa. Não tinha importância que fora apanhado com a boca na botija nos Correios, nem que fosse um ex-apresentador de programa "mundo cão" na TV ("O Povo na TV"), onde houve até gente morrendo ao vivo no palco, por  humilhação e pânico. Era o herói da hora no "Mensalão". Entregou nada menos do que a cabeça do  ex-ministro José Dirceu, que Jefferson imaginava tê-lo cercado na operação dos Correios.
      O Brasil passa por um momento de maccartismo moral.  O quadro tem alguns traços semelhantes com o que aconteceu nos EUA.  A desconfiança,  o dedo-durismo e uma certa paranóia são a tonalidade e o centro da atual crise política.
      Para quem não se lembra, um senador fanático anti-comunista, Joseph McCarthy , dos EUA, inaugurou um período de delação premiada durante a Guerra Fria, que teve o seu auge mais ou menos entre 1947 até quase o final dos anos 50. Qualquer pessoa denunciada como comunista, ou mesmo como simpatizante, poderia ser julgada  traidor da pátria. O FBI , a polícia federal norte-americana, encarregou-se de procurar delatores, e de acusá-los para obter confissões. Procurou-os no meio artístico, nas universidades e onde quer que se imaginasse haver dissidentes. Isso se tornou um meio de vida e uma forma de fazer carreira para muitos cidadãos medíocres nas áreas culturais. Houve muitos suicídios, desemprego e humilhação pública de várias pessoas. O delator, ex-suspeito ou não, não só escapava à prisão como subia na vida e  era exaltado com alguém que estava prestando serviços cívicos.
      Aqui entre nós, temos atualmente  a caça aos corruptos. Em nome da excelência moral, verdadeiros corruptos virtuais ou consagrados apontam com muita facilidade o dedo em direção aos outros. Basta uma suspeita e o nome aparece na lista dos promotores de Justiça e, o que é muito grave, nas páginas da imprensa. Até a pessoa limpar seu nome, já foi investigada, julgada e condenada pela "opinião pública"
    O fanatismo moral pode ser equacionado pela psicanálise como uma espécie de ausência de ego e uma  exclusiva predominância de superego repressivo e impulsos primitivos (como ocorre naqueles jihadistas do terror e nos pastores extremistas de almas). É uma fonte constante de ódio, violência e medo. Também é uma raiz de inúmeras injustiças, muitas delas fatais. A crença moralista vem colada com uma potência destrutiva sem igual.
    A hipocrisia e a mentira fazem parte do quadro. As meias-verdades exaladas pelos fanáticos, assim como as insinuações e a malícia, criam uma espécie de circuito de afetos negativos, do qual faz parte ainda a inveja. Muitos denunciantes da corrupção não participaram da festa e do bolo do dinheiro e poder. Supõem em sua fantasia que foram excluídos, então atacam quem estiver por perto ou se destacando na esfera pública. Queriam estar lá, dividindo o butim.
    Neste momento nacional, o senso de humor é suspeito. Qualquer metáfora, ironia ou observação bem humorada pode ser mal compreendida pelos paladinos da moral. De repente, o Brasil ficou cheio de vestais, muitas delas...corruptas. A ética , para elas, não é uma questão de escolhas, mas de limites estreitos e fixos. Não importa que sejam limites arbitrários, contanto que sejam pertencentes ao seu próprio quadro de valores -- geralmente simplista.
    O maniqueísmo não tolera a complexidade nem a análise compreensiva. Não suporta a ambigüidade das ações humanas. A negação do que não é simples e bidimensional costuma acobertar áreas sinistras da mente individual e, muitas vezes, das multidões uníssonas.
   Não é de surpreender que pessoas com trajetórias no mínimo duvidosas em suas vidas profissionais e pessoais -- carreiristas, malandros , oportunistas e mesmo corruptos explícitos--sejam os primeiros a acusar ou a insinuar.
    Foi considerável o número de pessoas que saíram às ruas nas passeatas moralizadoras na Avenida Paulista e no País inteiro, carregando faixas,  cartazes,  pedindo aos gritos o combate severo à corrupção e , inclusive, a  volta da Ditadura.  Entre elas, havia gente mergulhada até o pescoço nos episódios mais escabrosos de "malfeitos", como se diz . Algumas foram  indiciadas logo após as manifestações, pois recebiam  ou forneciam propinas em seus cargos ou empresas.

    Vivemos uma triste época no País, onde os canalhas não estão só nas manchetes das denúncias, mas se escondem também por trás dos dedos em riste. A cultura do alcagüete-herói pode disseminar-se ao ponto de servir como ideal do ego, exemplo para as novas gerações. Um modelo de cidadania. Quem uma criança vai querer ser quando crescer: Silvério dos Reis?

sábado, 21 de novembro de 2015

CRENÇAS

Os seres humanos têm o desejo básico de conhecer, dizia Aristóteles.
Com todo o respeito a Aristóteles, desconfio que as pessoas têm o desejo básico de acreditar.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

ATENTADO EM MARIANA


                                                           Reinaldo Lobo*

      Mariana, doce nome de mulher para uma cidade. Linda e charmosa, por sinal.Um rio de nome doce. Um vale do Rio Doce. Não mereciam a morte e a devastação por toneladas de lama. Lama que arrastou 60 bilhões de rejeitos de mineração de ferro por mais de 500 km ao longo da quinta maior bacia fluvial do País, destruindo tudo pela frente, inclusive vidas humanas e animais.
     Nossa "Fukushima", dizem as gazetas do mundo. Mas, diferente do tsunami japonês, é impossível considerar a morte trágica do Rio Doce e dos seus arredores um simples "acidente" natural. Foi algo além disso, pois barragens que se rompem, depois de vários avisos de risco, são obras de seres humanos. Mais exatamente da empresa Samarco, resultado da sociedade entre a Vale do Rio Doce e a anglo -australiana BHP Billiton.
     Se no Japão um fenômeno natural provocou brechas em  estruturas de uma usina nuclear, vazando substâncias mortíferas, no caso de Mariana foi, ao contrário, a ruptura das duas barragens que provocou o desastre "natural", espalhando os rejeitos de minério pelo vale, pelo  rio  e atingindo até montanhas. Os biólogos e ecologistas estimam que levará décadas, talvez centenas de anos, para recuperar o solo da região.
     Quem já visitou a pequena cidade de Mariana, cujas construções e  igrejas foram tombadas pelo patrimônio histórico, sabem do que falo quando me refiro ao charme e beleza de suas ruas, morros e montanhas vizinhas. Mariana foi a primeira vila e depois capital de Minas Gerais nos tempos coloniais. Predominam as igrejas que remontam ao século XVII e as ruas estreitas de casas igualmente antigas, envoltas numa paisagem verde que nunca se imagina cercada de tantos interesses econômicos e da exploração sistemática de "commodities". 
     A maldição das riquezas minerais parece seguir Mariana e a região do Vale do Rio Doce. Primeiro, foi o ouro extraído em grandes quantidades pelo portugueses e, quando foi escasseando, a decadência da cidade tornou-se inevitável. Mais tarde, pedras e minério de ferro começaram a ser comercializados. A cobiça pelo ouro e, agora, pelo ferro, tem feito a prosperidade e a desgraça da região.
      O que houve em Mariana foi uma brutal violação da natureza, conseqüência de uma super-exploração econômica. Não se refere apenas à cidade, mas ao verde de uma paisagem que era, em alguns trechos, deslumbrante. Ocorreu um atentado contra o equilíbrio ecológico e a morte de várias espécies de animais. Diz André Ruschi, biólogo e pesquisador de uma das mais antigas instituições de ciência ambiental no país, a Estação de Biologia Marinha Augusto Ruschi:  "Há espécies animais e vegetais que podemos considerar extintas a partir de hoje (dia das explosões das duas barragens)".
       O rompimento das barragens coincidiu com o período de reprodução de várias espécies de peixes e, além disso, muitos tipos de vegetais que eram específicos da área atingida não mais nascerão lá e em parte alguma.
      Muita gente não faz idéia da delicadeza do equilíbrio da natureza e intervém nela de modo abusivo. O Brasil já virou cenário de destruição em vários pontos do Centro-Oeste, do Nordeste e na Amazônia, mas agora foi atingido no coração de Minas Gerais. "É o maior desastre ambiental da história do País" , comentou o cientista Ruschi.
      A quantidade de lama despejada foi calculada como o equivalente a 24 mil piscinas olímpicas, com a agravante de ter espalhado material erosivo nos resíduos.
     O mais curioso é que os políticos mineiros e a grande imprensa procuraram, no início, minimizar o evento, praticamente reduzindo-o a uma entre muitas catástrofes "naturais" que podem ocorrer, ainda que "lamentável". Em primeiro lugar, a empresa Samarco, responsável pelas barragens, procurou desviar a atenção para possíveis tremores de terra de pequena escala que teriam ocorrido naquele dia. Inúmeros cientistas descartaram essa possibilidade como causa provável.
     Houve um político, Aécio Neves, que se apressou em dizer :"Não é hora de buscar culpados". Se não era a hora, quando? Quem vai punir os culpados por tamanha perda ambiental e pelas vítimas humanas,  que incluem mortos, feridos e dezenas de "desaparecidos"?
      Uma reação interessante foi a do fotógrafo mineiro Sebastião Salgado, figura mundialmente conhecida pelas suas brilhantes fotos de situações sociais e humanas. Criado na região, propôs que se iniciem logo as obras de recuperação, levando um projeto para a presidência da República. Nele, preconiza a responsabilização da Samarco, da Vale do Rio Doce e da BHP Billiton, e o ressarcimento da região e da população na forma de recuperação ecológica e investimentos reparadores.

      Uma lição inevitável a ser extraída da violação da doce Mariana e do assassinato do Rio Doce só pode ser a conscientização política do nosso povo, no sentido de criar definitivamente uma verdadeira resistência ambiental e uma agenda ecológica severa contra a voracidade  do Capital.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

PAIXÃO DE FACEBOOK

                                     
                                                                       Reinaldo Lobo*

        Muitas pessoas se conhecem pelas redes sociais, via internet ou telefone  celular. Algumas, não se sabe quantas, apaixonam-se, amam, traem os (as) parceiros (as), têm algum sexo masturbatório, "relações sexuais", namoram,   divorciam-se ou casam com alguém que viram pela primeira vez ou reencontraram assim.
      É preciso achar um "culpado" por isso? Uma única causa determina essas situações? Parece que sim.
       A "culpa" é da tecnologia, dizem os afoitos! Ela aproximou de tal modo as imagens e a comunicação entre as pessoas,  que se tornou quase inevitável a intimidade, a exposição mútua, a expressão de emoções e dos tons de cinza. Amizades também se constroem a partir do virtual, mas essas não incomodam tanto.
      Há verdade nisso tudo, mas não toda e nem a definitiva.
      Quanto menos se entende como um aparelho funciona, mais misterioso e mágico parece. A técnica por trás de um computador ou de um celular só é conhecida por quem se dedicou ao assunto e, mesmo esses, tendem a divinizá-la ou atribuir-lhe poderes demoníacos. Imaginem o impacto que os primeiros humanos sofreram com a descoberta do fogo. Há toda uma história de significados e até uma psicanálise em torno do fogo e de seus milagres incríveis.
      Com as redes sociais e seu funcionamento acontece hoje a mesma coisa. Os "experts", às vezes, as idolatram e enxergam nelas possibilidades infinitas. Os moralistas, os religiosos e os ideólogos da modernidade as demonizam e as acusam de incrementar os divórcios e a pornografia. 
     O "meio é a mensagem", dizia o célebre Marshall McLulhan, radicalizando a importância dos meios de comunicação. Isto é, os meios condicionam o conteúdo.  Há um exagero na afirmação, ainda que se baseie na idéia interessante de que a mídia é uma extensão do sujeito humano, sobretudo do seu corpo. A frase do  teórico canadense implicava em criar um fetiche da técnica, atribuindo-lhe um significado moral e estimulando a "tecnofobia".
    O medo da tecnologia -- por exemplo, a ojeriza ao computador ou ao telefone celular -- é uma doença contemporânea tão alastrada quanto o seu contrário, a adesão cega. A tecnofobia se manifesta por meio dos  seus sintomas, inclusive o  da condenação moral.
      As crianças são automaticamente advertidas por seu interesse lúdico, vigiadas  e admoestadas quanto ao seu uso, ainda que o único problema real seria o excesso, o perigo de sedução dos pedófilos e o abuso. Quando não estão apenas trabalhando, os adultos são suspeitos de perderem tempo em namoricos, flertes e por seu vício pela pornografia.
      É impossível falar da tecnofobia sem lembrar a observação citada pelo falecido filósofo Gérard Lebrun , segundo a qual nossa época parece ter invertido as perguntas de Kant sobre o que podemos querer e o que devemos fazer, mas as substituiu pelas indagações "o que precisamos temer?" e "o que devemos proibir?".
    Vivemos num tempo  de muitos medos, inclusive o medo da tecnologia.
    É verdade que o computador facilitou a comunicação íntima e, ao mesmo tempo, a distância  entre as pessoas. O advento da internet possibilitou a criação das "salas de bate-papo".  Foi criado um novo modo de intimidade, sempre com o risco da exposição excessiva. É um tanto artificial, na verdade, mas não deixa de ser uma forma interessante de expressão.
    Reforça o narcisismo e o exibicionismo? Não. Apenas os veicula. Quem quiser se exibir , pode. Quem tiver mais recato,  vergonha ou timidez-- que também são  um sentimentos narcísicos--, consegue se preservar. Há também uma experiência de pertinência e de reconhecimento nos processos de resposta do outro, como o "like" ou os comentários favoráveis.
     A paixão de Facebook é facilitada, mas não provocada. E começa pela possibilidade de idealização que não depende só do que é  oferecido pelo meio. As pessoas aparecem felizes, em fotos selecionadas, bonitas e ativas,  narrando suas próprias vidas e histórias, mas isso sempre foi assim no contato humano de superfície ou inicial.
    Só o preconceito contra o "narcisismo de vida", como se fosse "de morte" (expressões de André Green), poderia colar na mídia, antropormoficamente,  o que é constituído pela subjetividade humana. O computador não é em si mesmo um objeto narcísico, mas pode ser assim utilizado, quando sentido como uma extensão do próprio sujeito ou de seu corpo.
     A imagem projetada na tela, vista pelo outro, pode gerar uma proximidade e intimidade inicialmente artificiais, que vão depender, em cada caso, do seu progresso e da sinceridade dos participantes. Pessoas comuns, assim como as "celebridades", podem estar juntas no Facebook, dando uma impressão de inclusão num meio especial, seleto e agradável.
     Os namoros de Facebook podem ser perigosos quando os participantes  acreditam de um modo especial na Coisa Real. E, " acreditando", podem se comportar "como se" ela existisse. São as vicissitudes do que os psicanalistas chamam de "alucinação normal" ou "transformação em alucinose", mas que prefiro denominar de ilusão -- como aquela que o bebê vivencia, òbviamente sem o saber, ao criar o seio da mãe no próprio momento de encontrá-lo efetivamente no mundo, ou como a que experimentamos geralmente na esperança e no amor.
     Os que censuram, reprovam e criticam a paixão de Facebook tendem a crer -- como diz o inglês Adam Phillips-- que "existe um Eu que , por definição,  não é enganoso".
      Os amores no Facebook são promessas de salvação, de beleza, busca de uma "segunda chance" e de surpresas. Às vezes, conseguem ser mais do que promessas, promissores.  Nesses casos (e sempre deve-se lembrar que cada caso é um caso à parte), é porque a idealização foi substituída pela experiência efetiva-- "presencial", como se diz--, sem cair no demérito e no desprezo pela pessoa que foi inicialmente idealizada.
     Alguns casamentos razoáveis surgiram de situações assim, mas essas também não foram "culpa" -- nem mérito-- da mídia. Foram apenas o encontro da esperança de duas pessoas com alguma capacidade de se preocupar e de amadurecer.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

O CASAMENTO AMEAÇADO

  

                                                                       Reinaldo Lobo

         Casamento e religião estão unidos há muitos séculos, até que a morte os separe. Não é nada de novo. Já um livro de auto-ajuda evangélico -- "Casamento Blindado- O seu casamento à prova de divórcio"-- para administrar o "empreendimento" que é a vida dos casais significa, que eu saiba, uma novidade aqui no Brasil.
        Quando seus autores , Renato & Cristiane Cardoso (apresentados assim mesmo, com o "&" de sociedade comercial), informam que venderam mais de 2 milhões de exemplares, pode-se dizer que essa obra é um fenômeno editorial.  O sucesso vem acompanhado de um programa de TV, "The Love School - A Escola do Amor", que passa na rede evangélica do bispo Edir Macedo.
        O casal globe-trotter viveu nos EUA e, possivelmente, aprendeu lá os métodos de ganhar dinheiro com auto-ajuda. Também morou em mais dois países e percorreu pelo menos 30 outros fazendo palestras, por vinte anos, para ensinar a performance do casamento "blindado" contra o Mal. Se é preciso "blindar" um casal é porque o vínculo é muito frágil diante dos "perigos" da sociedade moderna.
       O Mal é -- acreditem-- o Facebook, que teria provocado o crescimento do número de divórcios. É também a independência excessiva das mulheres, sobretudo as jovens, que estariam traindo em grandes proporções, além das tentações da pornografia: segundo uma pesquisa norte-americana,  citada por eles, até mesmo 54% dos pastores cristãos viram exibições pornográficas nos doze meses pesquisados e uma outra revelou que, entre os fiéis cristãos nos EUA, 50% dos homens e 20% das mulheres na igreja eram viciados em pornografia.
       A  dupla está  assustada com os "novos desafios" que "nenhuma geração antes conheceu",  como a internet, as redes sociais , as novas tecnologias de comunicação, o celular, o MSN, o SMS, a proliferação da indústria pornô, o "avanço da mulher na sociedade" que a tirou da "bíblica submissão" ao homem, a facilitação do divórcio e outros fenômenos, como a mudança dos valores e dos gêneros no interior da família.
     Dizem Renato & Cristiane e vale a pena citá-los literalmente:  "Mark Zuckerberg, criador do Facebook, é um dos maiores destruidores de lares na Grã-Bretanha. Segundo estudo divulgado pelo site especializado em divórcios Divorce-Online, o Facebook é citado como motivo de uma em cada três separações no país. Cerca de 1.700 dos 5 mil casos mencionaram que mensagens inadequadas para pessoas do sexo oposto e comentários de ex-namoradas (os) no Facebook foram causas de problemas no casamento. Em 2011, a Associação Americana dos Advogados Matrimoniais (AAML)  divulgou que o Facebook é citado em um de cada cinco divórcios".
        O que Mark Zuckerberg tem exatamente com isso? Será que adiantaria dizer ao ilustre casal que os meios de comunicação em geral, não só o Facebook, apenas facilitaram o contato mais direto e rápido entre as pessoas? E que a decisão de usar esses meios virtuais para fins amorosos depende de cada indivíduo e de sua escolha?
        A visão de mundo ameaçadora do casal parte do pressuposto de que o aumento da autonomia, sobretudo das mulheres, deixa todos expostos a uma tal fragilidade que os seus desejos e ações precisam ser controlados e educados, para que façam as "escolhas certas". As mulheres, desde Adão e Eva, levam a culpa.
      Os direitos e a liberdade individual não contam, pois os seres humanos estariam sempre sujeitos ao Mal.  Há uma concepção de uma natureza humana maliciosa,  incapaz e infantilizada por trás da "ajuda" oferecida por Renato & Cristiane. Pertence a uma pedagogia cristã, é verdade, mas fundamentalista e prescritiva.
      A performance do casal exemplar aparece  como modelo de comportamento a ser aplicado para a salvação de todos, principalmente os que se sentem ameaçados pelas mudanças da sociedade contemporânea. Um detalhe curioso : apesar da tecnofobia dos pregadores moralistas, a grande maioria das citações bibliográficas do livro são de sites, blogs e twites. Prestam assim uma homenagem involuntária aos meios que abominam, reconhecendo que tudo depende do uso que se faz deles.Não há "imoralidade" do meio técnico, mas uma função comunicativa. E eles a utilizam para divulgar sua mensagem persecutória a fim de amedrontar e adestrar os casais.
       A fórmula é bem simples. Basta evitar as tentações do mundo atual para que o Bem se instaure e advenha a Felicidade conjugal. Mas como evitar a atração do "pecado", mantendo intacto o elo conjugal? É aqui que entram as instruções preconceituosas.  Dona Cristiane se dirige às mulheres incitando-as a tomarem cuidado com  as amigas e as outras mulheres, pois representam o perigo de infidelidade do marido.  O conselho é que, uma vez casada, a mulher deve voltar-se para a missão de suprir as necessidades do seu homem, não dando chance ao acaso. Não se pode "dar mole" .
    Primeiro, a esposa precisa evitar manter amizades com mulheres em geral, as solteiras em particular. Deve ter o marido como o único , verdadeiro e melhor amigo -- diz ela.
     Segundo, a mulher "naturalmente gosta desabafar , contar a razão de seus estresses para a amiga, a mãe, ou outra confidente. Aí está o perigo : revelar pontos negativos do marido para outras pessoas. Em vez disso, seja a embaixatriz de seu marido. Represente-o bem e reforce assim o respeito por ele".  Além disso, precisa descobrir as necessidades reais do marido, sejam estéticas, sexuais ou afetivas,para atendê-las prontamente. Mas deve evitar atividades sexuais "contra a natureza", como o sexo anal e quaisquer outras variações.
    O que tem atrapalhado a mulher --diz a dupla de autores-- é se preocupar em estar bem de um modo geral, ocupando um lugar na sociedade e no trabalho, esquecendo-se de que o marido, segundo a Bíblia , é o líder a ser seguido. Mas esse líder tem de ser, como Renato, alguém que cuida e se preocupa com  seus liderados. Portanto, o homem deve cuidar bem da mulher.
    Essa ética do senso comum não vê paradoxos na monogamia, que exige, é verdade, uma espécie de "fé" na sua própria existência, mas que implica sempre a presença da infidelidade e a existência de um terceiro. Dois formam um par. Para haver um casal -- pelo menos no plano do inconsciente-- é preciso três. O terceiro excluído é, ao mesmo tempo, a sombra incluída em todo casal. Quanto maior a tentação de ceder ao outro fantasiado, maior deve ser a blindagem do casamento.
     Qualquer  tipo de complexidade  escapa a essa ética maniqueísta.  O casamento é como uma "empresa" que precisa ser bem administrada , dizem os sócios Renato & Cristiane. E uma empresa  elimina seus concorrentes. Simples assim.
     Os autores não se perguntam seriamente por que as pessoas "devem" permanecer juntas. O desígnio vem dos céus e do clichê : o amor tudo resolve. Cristo é amor. Cristo assim quer. O casamento não tem a História por trás e a família deve ser sempre a mesma, ainda que, de fato, venha mudando desde a Antiguidade.
      Esse livro deve ser lido como um sintoma. É uma defesa paranóide mal construída contra o desamparo, a solidão e a perplexidade diante de um mundo em rápida mutação. Renato & Cristiane são a nostalgia da família patriarcal burguesa do século XIX, apresentada por meios modernos. Seu discurso tem a audiência cativa dos que entregam sua fragilidade à manipulação da "salvação" messiânica. E pagam por isso.

      

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

OS FALSOS REBELDES

                                     

                                                                 Reinaldo Lobo*

        Nunca na história deste país os conservadores tiveram tanto público e tantos aplausos. São um sucesso na imprensa, na TV e até nas ruas. Alguns intelectuais orgulham-se de dizer que "endireitaram", isto é, foram cada vez mais para a direita. Têm seguidores e até mesmo "tietes". Fazem palestras pagas nas casas do Saber, escrevem em jornais, blogs e revistas de massa, são chamados para comentar as notícias dos telejornais e animam grandes audiências. É um fenômeno novo, que pode ter explicação.
        Os "novos conservadores" parecem fazer oposição ao "status quo", são verdadeiros representantes de um movimento contra o "politicamente correto" e culpam a esquerda e o Estado distributivista, "socialista keynnesiano", pela corrupção e o déficit das contas públicas.
       Não adianta argumentar que a corrupção, na forma de um velho Sistema Corrupto, sempre existiu em grandes proporções entre nós,  sendo apenas revelada agora. Ou que o déficit público tem uma história nos governos de direita, sobretudo na Ditadura. Vão responder rápido : a culpa é do governo do PT.
       Num país do Terceiro Mundo, onde a "intelligentsia"  costumava ser de esquerda, apoiava movimentos sociais e guerrilhas de libertação nacional, não deixa de ser um tanto surpreendente o sucesso do discurso de ex-stalinistas convertidos, ex-trotskistas, velhos ideólogos aristocratas, burocratas e mandarins universitários.
      Esses "neoconservadores", alguns deles bem antigos na praça, fazem questão de aparentar uma revolta indignada contra o "estabelecido", seja na universidade ou em qualquer área. Isso é facilitado pelo fato de a direita ter pela primeira vez, além da audiência, a possibilidade de chegar ao poder com apoio eleitoral.
     Um deles, professor de filosofia, não hesita em se rebelar contra o que chama de hegemonia das Ciências Humanas nas escolas, lembrando que o Japão, esse exemplo de civilização tecnocrática, está cortando as humanidades de seu currículo.
     Seu argumento é simples, tão lhano que Sócrates chamaria de mero sofisma: no meio universitário brasileiro há um grande número de professores que privilegiam o ensino de Marx e de Foucault, abusando na dose; logo, seria de bom alvitre até mesmo suprimir, quem sabe, o ensino das Ciências Humanas.
        O raciocínio é tão  irresponsável, leviano e tosco  que nem valeria a pena comentar, não fossem grandes o seu sucesso ideológico e os aplausos vindos do seu público fascinado. A aparência é de uma rebelião contra o "establishment" universitário, mas o sentido é o de corroborar os bons e velhos valores tradicionais acadêmicos, políticos e sociais. É um discurso justificador com aparência de transgressor. Com  todo o respeito, poderíamos dizer  que esse é "um discurso do poder", citando ... Foucault.
       O professor que "endireitou" tem o direito óbvio de pensar à sua maneira, mas é preciso dizer que está completamente equivocado no seu diagnóstico sobre as Ciências Humanas e o seu ensino -- de cujo mandarinato, aliás, faz parte. Não conhece ou prefere ignorar a história da universidade brasileira. Além disso, sua retórica tenta confirmar um mito da cultura tecnológica contemporânea segundo o qual as humanidades e as artes seriam um desperdício de tempo.Esse mito é fundado num valor de segunda classe -- o da eficiência a qualquer preço. Tudo o que funciona -- leia-se: dá resultados "produtivos" ou "econômicos" -- é bom.
       A explicação para o sucesso dessa conversa da "nova direita", reforçada pelas confusas manifestações do anti-petismo das classes médias, deve ser buscada em duas áreas diferentes : a da própria luta pela hegemonia intelectual na universidade e pela onda de moralismo oportunista que tomou conta dos meios de comunicação de massas no país.
     A opinião pública vem sendo preparada cuidadosamente nos últimos anos pelas revistas, internet , rádio e TV, para odiar o pensamento crítico, a distribuição de renda e a igualdade de direitos humanos. As campanhas anti-intelectualistas são tão  sistemáticas como aquelas contra a "ascensão da classe C" , a "preferência pelos pobres" , a presença de cubanos e estrangeiros no Brasil. Estão em  moda na mídia há pelo menos uma década e meia. Um conhecido jornalista "neoconservador" fez, recentemente, pregações abertas em favor de um  livro pseudo-sociológico intitulado "Em defesa do preconceito".
       Os setores intelectuais da direita, que sempre foram minoritários e indigentes nas universidades, apropriaram-se agora da linguagem transgressiva da ... esquerda,  como se esta existisse, por sinal, de modo uniforme e unívoco. Falam hoje como "rebeldes" para serem ouvidos, inclusive pela juventude. Inverteram o sinal ideológico da crítica, para ver se isso "pegava" . Pegou.
        Não se ouve nenhuma fala abertamente  "machista" oriunda dessa direita, mas uma linguagem que se apresenta "contra a dominação" da fala feminista na mídia. Apresenta-se contrária ao "abuso do feminismo" e à sua pregação "exagerada". Também não há nenhum ataque direto aos negros e a seus movimentos, mas um combate contra o "racismo ao contrário" que partiria dos próprios negros.
        Todos conhecem a arenga contra o sistema de cotas nas universidades, que seria "injusto" com os que merecem por "legítimo" desempenho escolar, que seria um "privilégio" dos negros e pardos e que a seleção seria falha , contemplando pessoas de "cor duvidosa". Com isso, oculta-se a injustiça histórica contra os negros, a desigualdade de classes e de educação que os atinge principalmente.

         O efeito ideológico e político dessa "rebeldia" conservadora é engrossar os números da massa que sai às ruas para "protestar" contra a corrupção e insuflar, paradoxalmente, o imaginário dos que pedem uma "profunda transformação" no país : a volta à Ditadura.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

ONDE ESTÁ A SAÍDA?



                                                                           Reinaldo Lobo*
         As pessoas estão mais preocupadas com a bunda da Kim Kardashian do que com as brutalidades do Estado Islâmico, afirma a escritora e feminista norte-americana Camille Paglia, o furacão pensante que veio  pela nona vez ao Brasil e deu uma interessante entrevista ao suplemento "Aliás", do Estadão.
        Crítica feroz da alienação da sociedade contemporânea, a autora de "Personas Sexuais", "Vadias" e outros ensaios tão brilhantes quanto polêmicos, Camille Paglia fala como uma metralhadora. Dispara. 
      Seu estilo lembra muito  o daquele filósofo leninista lacaniano, Slavoj Zizek, de origem eslovena,  cujos diagnósticos sobre a contemporaneidade são tão peremptórios e incisivos quanto os dela. Ambos, cada um a seu modo, descrevem as mazelas da modernidade com alguma precisão e muito pessimismo, mas têm dificuldades de apresentar soluções. Diz ela: "Estamos caminhando para a morte, ou melhor, para o suicídio da civilização ocidental.[...] Sinto que a classe média próspera está numa bolha em relação à instabilidade internacional, do terrorismo ".
       A ênfase de Paglia é na critica à tecnologia eletrônica e à realidade virtual, que estariam facilitando por demais a vida da classe média dos países desenvolvidos. Diz ainda mais:
      "As pessoas não querem dificuldades, não querem se sentir deprimidas.E deixam de fazer reflexões importantíssimas. Precisamos reaprender a contemplar a arte para sobrevivermos na era da vertigem. As crianças , principalmente, merecem ser salvas do redemoinho de imagens que hoje fazem a realidade, com suas tarefas e preocupações, parecer uma coisa fútil e menor".
     A caracterização de uma Era da Vertigem pode ser correta. É um dos nomes da época em que vivemos --pós-modernidade, modernidade líquida, sociedade do espetáculo, capitalismo avançado, modernidade singular, etc. A expressão descreve bem a velocidade e a torrente de imagens no meio das quais estamos mergulhados. Somos atravessados por informações e figuras veiculadas por mídias cada vez mais rápidas e perecíveis. Uma figura substitui ou se converte em outra, um novo meio técnico é inventado a cada dia. A imagem de um menino sírio morto numa praia turca "viralizou-se" de tal maneira no mundo inteiro que acolher os refugiados da guerra civil na Síria se tornou ... moda.
    A sociedade da Vertigem funciona assim. Não dá para dizer que estamos numa nova estrutura social diferente do capitalismo, uma vez que permanecemos submetidos ao consumo irrefreável e ao mito do crescimento econômico interminável. Mas existe, sem dúvida, algo que poderíamos chamar de "pós-industrial" nessa era vertiginosa.  Não é mais uma sociedade puramente industrial, onde predominavam as fábricas com aquelas colunas de chaminés fumegantes e o sistema taylorista de trabalho das linhas de produção. Hoje existem empresas que começam a funcionar automatizadas diariamente, apenas com a inserção de um cartão com chip,. Só que continuam essencialmente desiguais os métodos de apropriação dos meios de produção, da renda, da distribuição do capital e das classes sociais.
     Houve algo como uma inversão do esquema da sociedade, onde o saber e a informatização tornaram-se a nova infra-estrutura. Como lembrou o filósofo Michel Serres, a ciência entrou diretamente para o rol da produção e da reprodução do capital.
     Camille Paglia não está especificamente interessada na descrição sócio-econômica dessa nova estrutura, mas em seus efeitos na cultura, que está fragmentada e à deriva. Dirige-se ao público privilegiado da próspera classe média dos países desenvolvidos e adverte com seu prognóstico: esse universo está-se tornando autista e vai-se auto-destruir.
     O remédio que aponta é fraco. Propõe a reflexão como antídoto para essas elites culturais, como se pudessem se interessar por repensar o próprio meio em que afundam. Acha que a única solução é pela arte, isto é, uma nova forma de pensar a arte que poderia nos levar a todos a uma espécie de purificação perceptiva e estética. Essa solução é compreensível numa intelectual que se dedica a ensinar cultura e literatura numa universidade norte-americana. E  que, apesar de gostar da sensualidade brasileira e desta nossa parte do mundo, ainda não parece ter compreendido que o sistema capitalista é ligado à miséria dos outros, não apenas a uma classe média próspera e desenvolvida.
     Sua solução da salvação pela arte é tão simples e ingênua, a meu ver, quanto a fórmula de Slavoj Zizek para resolver as contradições da sociedade ocidental : voltar ao comunismo, por meio de uma mudança do tipo leninista-stalinista. Quem leva isso a sério?

     Fato é que ainda não temos a saída visível para essa sociedade que caminha, é verdade, por sendas perigosas e produz o aumento da alienação, ao lado de invenções tecnológicas extraordinárias. Como dizia um filósofo alemão do século XIX, se tudo o que é sólido desmancha no ar, também é legítimo esperar que o incremento sem igual das forças produtivas leve à criação de um novo mundo. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

" O mundo--não somente o nosso-- está fragmentado.
Contudo, não cai em pedaços. Refletir sobre isso me parece uma das primeiras tarefas da filosofia hoje".

Cornelius Castoriadis
(Paris- 1989)

FUTILIDADE

                                          

                                                      Reinaldo Lobo*

            O novo filme em cartaz de Woody Allen, "O Homem Irracional", é sobre  alguém que tem o sentimento de que sua vida não tem sentido. Perdeu o significado ("meaningless") ou nunca teve. Uma pessoa sente que sua vida é sem espontaneidade, surpresas, alegria genuína, esperança e criatividade. Há algo de falso  nela, mas não sabe bem o quê, nem a razão.
            A personagem chega a um ponto crítico em que não é mais possível o auto-engano, a mentira ou o disfarce. O desespero se instala. É como se essa pessoa não existisse "realmente". Há um enorme vazio, um tédio e a sensação de que tudo é fútil. Parece que perdeu tudo, exceto a lucidez. Surge a dúvida: a única saída seria o suicídio?
          Ocorre, então, uma virada espetacular, provocada por uma contingência fortuita, como em quase todos os filmes de Allen. O professor, cuja história é narrada por uma aluna predileta,  descobre um meio de recobrar alguma alegria de viver, mas é uma tentativa forçada, igualmente falsa e artificial. Uma saída eufórica, excitada. Algo que se chama, em psiquiatria, de hipo-maníaca. De novo, o acaso vai operar e um acidente contingencial põe fim a essa tentativa.
          Há um dilema ético no filme, também recorrente nessa filmografia. A questão é do tipo "crime e castigo". Aliás, Dostoievsky é citado explicitamente.  Existe igualmente um fino humor nas aventuras do professor de filosofia perdido e de sua aluna apaixonada e empolgada, mas não ao ponto de perder um saudável ceticismo, o seu senso ético e uma inteligência sagaz.
        Esse dilema moral e o humor não são, porém,  os pontos que gostaria de destacar nesta obra brilhante de Allen, pois afinal são ângulos freqüentes em muitas de suas outras, assim como o jogo do acaso e do destino, presente de forma genial em "Match Point" em " Blue Jasmine".
       Chamo a atenção para o sentimento de futilidade existencial e para o sentimento de irrealidade da personagem central, o professor de filosofia atrapalhado. Do ponto de vista psicanalítico, o filme descreve de forma inteligente e sutil uma grave distorção do Eu, que é uma formação defensiva global da personalidade do tipo "como se" ou "Falso Si Mesmo (Self)".
      Não há na história um "diagnóstico" nem um tratamento "clínico", mas o assunto está lá, e bem expresso.   Também não é surpresa haver psicanálise num filme de Allen e o modo como a ilustra é muito claro e bem feito.
       A sutileza e a precisão do diretor do filme não é acidental, uma vez que toda a sua obra, com raras exceções, tem uma qualidade auto-reflexiva e de apreensão dos fenômenos psíquicos inspirada pela psicanálise.
     Allen mostra a psicanálise de um ponto de vista...psicanalítico. Já contou inúmeras vezes em entrevistas que fez análise pessoal por trinta anos. Piadas à parte, disse ainda que , apesar de tanta análise com os melhores profissionais "freudianos" de Nova York, precisou do cinema -- da sua arte-- para tocar em alguns pontos intocados de sua própria análise.
     Não ouso dizer que o filme "O Homem Irracional" é autobiográfico, porque não sei se é. Não há como ter certeza, pois nós, espectadores, não tivemos acesso à análise pessoal de Allen. Não será que todos são autobiográficos? Além disso, esse detalhe é quase irrelevante. Seria ainda mais irrelevante se ele mesmo não tivesse tocado no assunto de que alguns pontos de sua análise pessoal permaneceram intocados, o que é muito comum em muitas análises clássicas.
      O interessante nesse filme é como capta esteticamente e expressa um detalhe particular da condição humana. O fenômeno do sentimento de futilidade decorrente da existência de um "falso self" é muito específico. Escapa à escuta e à sensibilidade de muitos analistas, acostumados com os diagnósticos de neurose, psicose, "border lines", etc. Além disso, é preciso dizer que futilidade, aqui, não se refere, como diz o senso comum, à "superficialidade social"  de algumas pessoas, ainda que essa possa ser   uma conseqüência freqüente do "falso self". 
      A futilidade em questão é -- "tecnicamente", digamos -- um sinal da presença de um "falso si mesmo" e o fracasso da defesa armada para esconder um "verdadeiro si mesmo", cindido, recolhido e ignorado pela própria pessoa. O falso self ajuda alguém a se adaptar ao meio ambiente, quando está dividido entre um núcleo verdadeiro, silencioso, e uma área visível explícita, relativamente adaptada..
     Não é um teatro consciente que um ser humano monta, mas uma operação inconsciente destinada a  proteger uma intimidade desconhecida das ameaças ambientais e poder  funcionar na vida.  A criança pequena teme mostrar-se inteiramente à mãe ou aos pais e,para isso, esconde seu núcleo mais verdadeiro, a fim de garantir a proteção e o amor parentais. O "verdadeiro self" fica guardado para ser -- um dia-- vivido e utilizado. Muitas vezes, forma-se uma camada de intelectualização e um estilo de vida para proteger cuidadosamente a área mais secreta e autêntica de um ser humano.
      A personagem do professor-filósofo de Woody Allen funcionava muito bem na vida de superfície e na área intelectual. Era um acadêmico bem sucedido com trabalhos publicados, prêmios, histórias de aventuras e lendas. Seu carisma dando aulas era elogiado e seu desempenho, tido como brilhante. No entanto, faltava-lhe uma consistência existencial, falta sentida na crise só por ele mesmo, mas que acaba afetando todos ao seu redor. Seu brilho era "fake", em relação a um núcleo que poderia ser vivo e criativo na transgressão.
     Quando se fala de "falso" e "verdadeiro", aqui, não significa atribuir nenhuma conotação de valor. Mas pode aproximar-se do que chamamos de "inautêntico" e "autêntico". O "verdadeiro self" é o que vem de dentro, do mais intimo do ser humano. Muitas vezes, a autenticidade só aparece na crise de identidade ou na transgressão. E nada melhor do que a arte para desvelar o que há de transgressivo e verdadeiro no ser humano.

     Vejam esse filme, vale a pena. Pode despertar o mais estranho, secreto e revelador dentro de todos nós.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A DOR DA CRISE

                             
                                                         Reinaldo Lobo*

         O custo de uma crise econômica não se mede em cifras, números ou diagnósticos econômicos. Por mais que o empresariado e os governos apresentem as crises como fatos inevitáveis, quase naturais,  dos quais todos parecem vítimas de uma estranha "racionalidade" do sistema financeiro e industrial, o seu cálculo deve ser avaliado em sofrimento humano.
      Uma crise impõe às pessoas dor mental e física. A banalização das tormentas provocadas pelos ciclos do capitalismo esconde uma face sinistra, que é a incidência da insegurança e precariedade sobre os seres humanos. Depressão, suicídios , doenças psicossomáticas, impotência sexual e perda de sentido na vida -- são algumas das conseqüências mais freqüentes dos períodos de recessão.
     Durante a devastadora crise argentina de 2001/2002, quando ocorreram inúmeros suicídios, saques e violência,  uma psicanalista já falecida,Silvia Bleichmar, bastante conhecida  e respeitada na época, propôs num artigo de jornal que  as autoridades parassem de falar apenas em PIB, Índices de Preços, Taxas de Juros, e considerassem a elaboração de  uma espécie de ISH,  Índice de Sofrimento Humano . A idéia é sugestiva.
      Fala-se da crise como se fosse uma fatalidade, algo como um  terremoto que se abate  de tempos em tempos sobre todos nós. Sabemos que as crises econômicas não são um acidente, mas o resultado de um sistema econômico existente e o efeito de políticas públicas. Implicam em escolhas, decorrem também de erros dos governantes e do caminho selecionado para conduzir uma sociedade.
    A cruel política de "austeridade" que está sendo imposta ao Brasil neste momento não é algo "racional", mas uma estratégia de conseqüências destrutivas, sobretudo, para as pessoas.
   O capitalismo orienta-se pela lógica do Capital, mas na crise os seres humanos perdem muito mais do que dinheiro. Perdem a segurança, muitas vezes dissolve-se  a estrutura familiar, perdem a dignidade e até a identidade. Desabam certos mecanismos de defesa justificadores que fazem os trabalhadores terem resiliência ou tolerância ao sofrimento implícito no processo produtivo. A racionalização, a negação, as compensações de lazer, as válvulas de escape para a humilhação cotidiana e o stress -- tudo isso cai por terra e o que aparece na vida psíquica é  o medo, em alguns casos desespero, a violência e os "actings outs" (atuações fora de conflitos internos).




     Perder o emprego é humilhante. Para qualquer trabalhador, seja da classe  média ou operário, significa uma ameaça à sua dignidade pessoal e ao seu reconhecimento público como cidadão.  Ao ocupar um lugar na cadeia produtiva ninguém pretende "servir ao patrão", mas está em busca de uma "realização pessoal" e também do reconhecimento pessoal na intimidade dos mais próximos, da família, bem como da sociedade.
    Há toda uma psicopatologia do trabalho, tão bem estudada por autores como o francês Christophe Dejours, assim como existem as doenças decorrentes da perda do trabalho. São freqüentes os casos, inclusive entre executivos, de homens e mulheres que chegam aos consultórios médicos e psiquiátricos com sintomatologias difusas, que não entendem --como alheamento, perda de identidade e distúrbios sexuais--, desencadeadas depois que "saíram do mercado".
    Ao perderem o emprego de uma empresa com a qual estavam acostumadas ou se identificavam, as pessoas não deixam apenas de ganhar  dinheiro ou  de "vestir a camisa" do seu time de atividade. Em muitos casos em que há algum grau de desequilíbrio que fora disfarçado pela própria atividade, essas pessoas são levadas a uma perturbação  esquizóide,  paranóide ou de desrealização. Em outros casos, homens passam a se sentir "castrados".Há situações nas quais a identidade dos indivíduos está tão colada ao papel que ocupa no trabalho que, ao serem postos para fora (mesmo em eventual demissão coletiva por crise), sentem que perderam a própria individualidade.  Simplesmente passam a sentir que não são nada. Ninguém. E se "defendem" com mais mecanismos patológicos e sintomas.
    As crises econômicas destinam-se não à destruição de riquezas, mas á sua redistribuição. Em cada crise existem sempre alguns que ganham mais em detrimento de outros. Como lembra o sociólogo Zygmunt Bauman, estudioso da modernidade, após a crise de 2008 nos EUA, após a lenta recuperação da economia produziu-se  um PIB adicional, do qual 93% dele beneficiaram somente 1% da população.
    O ápice da crise não é um sintoma, mas a própria doença do sistema econômico  em ação. O capitalismo precisa de crises periódicas para poder funcionar , abrindo constantemente novas "áreas virgens" de mercado. Na fase de implantação do grande capital monopolista, as guerras mundiais cumpriram esse papel de reordenação dos mercados.  Hoje, o capital financeiro e de serviços recicla-se como se fora uma "revolução permanente", destruindo muitos recursos e criando novos.Estimula o mito do crescimento infinito e do consumo irrefreável. Tudo fica rapidamente obsoleto e os objetos se renovam.    

     Só que , no meio disso tudo, estão os seres humanos. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

SOCIALISMO PARA BILIONÁRIOS



                                                               Reinaldo Lobo*
           Conselho de auto-ajuda de George Bernard Shaw em seu livro "Socialismo Para Milionários" (hoje, bilionários) : não desperdicem dinheiro fazendo benemerência, mesmo que seja uma vantagem junto ao imposto de renda. Ele será mal aplicado, destinado a uns poucos, às vezes desviado. Se tiver um dinheiro queimando no bolso e quiser "jogar fora", aplique pelo menos em educação, cujo alcance e reprodução será maior. Mas, o ideal mesmo, seria usar a verba para mudar progressivamente a infra-estrutura econômica e social do capitalismo, transformando-o em socialismo, distribuindo automaticamente a renda entre todos, limitando os lucros dos ricos, criando impostos decentes e gerando riquezas menos concentradas nas mãos de alguns privilegiados.
        É de duvidar que os muito ricos seguiram os seus conselhos, exceto talvez aqueles que gostaram da idéia  preferencial de investir em educação. Na maioria dos casos, os bilionários (cerca de um por cento da população mundial, segundo o economista francês Thomas Piketty) estão acumulando cada vez mais capital às expensas, às vezes, de um crescimento bem lento das  próprias economias de seus países e mesmo em plena crise ou recessão.  Justificam sua situação afirmando que, ao enriquecerem, estão criando postos de trabalho. O que é meia verdade, pois também estão criando consumidores de seus produtos e ampliando o escopo do acúmulo de capital.
      A ironia de grandes escritores como Shaw -- teatrólogo e humorista irlandês, um dos inspiradores do Partido Trabalhista britânico, da primeira metade do século XX-- deu origem a personagens curiosos e paradoxais, como o do poeta Fernando Pessoa,  o "Banqueiro Anarquista" :  um sujeito cínico capaz de sofismar ao ponto de provar que, mesmo sendo dono de banco, comerciante e açambarcador, representa o modelo exemplar da política anarquista e libertária. Respeita ,sobretudo, a "liberdade alheia" e, por isso, não ajuda a ninguém, para que todos  possam realizar sozinhos suas próprias potencialidades. Algo assim com o "banqueiro petista", que nunca lucrou tanto na vida, mas compreende e defende em teoria a causa dos pobres.
     Já Oscar Wilde, igualmente irlandês como Shaw, disserta com a elegância e o humor habituais em "A Alma do Homem sob o Socialismo" sobre  a crença de que a individualidade humana correria risco sob um regime socialista e , conclui que sim, correria perigo --  mas também poderia ser despida do seu egoísmo,   enriquecida, preservada e tornada mais livre para criar. O principal é livrar o indivíduo da escravidão de trabalhar para o enriquecimento de outro, dizia o autor de "O Retrato de Dorian Gray".
     No Brasil atual, não chegamos ao socialismo e, no entanto, já ouvimos algumas pessoas admitirem que a era Lula procurou diminuir a fome e a miséria, apesar de fazê-lo da "forma errada" e até de modo a preservar privilégios. Admitem, porém, que avançamos. É alguma coisa. Apesar do ódio generalizado da classe média contra a ascensão dos sem terra, dos sem comida, dos sem geladeira nova, dos  sem teto e dos sem letras, quem sabe alguns gatos pingados já aperfeiçoaram um pouco a própria alma?
     A tendência dos muito ricos, contudo, é "naturalizar" a sua situação. É "normal" que existam pessoas desmedidamente ricas e outras extremamente pobres. O único problema seria a dificuldade de resolver  a condição dos muito pobres.   A ordem natural das coisas, segundo essa ideologia, é que haja diferença de classes -- e não se questione nunca isso, pois é a "realidade". A questão da justiça fica reduzida às leis existentes -- fazer o quê, se as leis consagram a propriedade privada e a "livre" concorrência? Que vença o melhor...
    George Bernard Shaw sugere que a questão da justiça social seja colocada assim, com uma metáfora: "Quando um homem quer matar um tigre, chama a isto de "esporte". Quando o tigre quer matá-lo, o homem dá a isto o nome de "ferocidade". A distinção entre crime e justiça não é maior". Se os trabalhadores sem terra querem um pedaço do quinhão das grandes propriedades rurais, são criminosos; se os grandes latifundiários conquistaram seu quinhão pela violência, grilagem ou a matança de índios, mas detém o papel  que lhes garante a posse, então eles estão com a justiça do seu lado.
    A filantropia dos bilionários é, segundo Shaw, apenas uma forma de dispensar os governos de cumprirem o seu dever, isto é, prover educação, saúde e trabalho ao povo. Gente como Bill Gates, uma das maiores fortunas do planeta, compensa  privilégios enviando computadores usados para a África e fazendo contribuições para entidades assistenciais latino-americanas e asiáticas. Neste caso, o indivíduo foi pressionado pelo imposto de renda e pelas agências fiscalizadoras de seu país a não concentrar tudo num monopólio internacional. Ele merece ser rico, por ter tido a intuição genial de formar uma empresa de informática criativa? Talvez. Mas deveria concentrar o poder econômico e tecnológico exclusivos em escala mundial? Certamente, não. Monopólio não é "livre concorrência", como prega a ideologia oficial.

    Para que os bilionários aprendessem algo sobre o socialismo seria necessário, primeiro, que não fossem idolatrados como faraós e a diferença social não estivesse "naturalizada" na mente das pessoas. Em segundo lugar, seria preciso que a filosofia dos caçadores de tigres não prevalecesse e os pobres não fossem apenas chamados de invejosos, vagabundos ou de criminosos potenciais.
Aquele que diz a verdade cedo ou tarde será descoberto.

Oscar Wilde

terça-feira, 11 de agosto de 2015

UM LIVRO INQUIETANTE

   
                                                                             Reinaldo Lobo*
       Que tempo é esse em que vivemos? Quando começou, quais as suas linhas de ruptura e quando desandou? É um tempo planetário , global, ou fragmentário? Obedece a uma lógica dialética marxiana ou constitui um acidente histórico? Pura contingência?
       Que sociedade é essa,  em  estado de guerra civil permanente e  belicismo internacional, que parece ter um fio condutor unindo tudo:  extermínio colonial, campos de concentração, crises econômicas, escassez, a destruição da natureza, o colapso urbano, a ameaça de hecatombe nuclear , desemprego em massa, o sofrimento no trabalho, a exploração humana para a produção incessante de mercadorias, o medo crescente do futuro -- tudo isso ao lado da criação de tecnologias cada vez mais avançadas de administração da vida?
     O diagnóstico do filósofo Paulo Arantes, autor de "O Novo Tempo do Mundo" (Boitempo Editorial, 2015) é severo e peremptório -- essa é a natureza da sociedade moderna, que obedece a um ritmo e a uma temporalidade próprias. Uma sociedade que emergiu com o capitalismo, vive em regime permanente de crise e de destruição e que se alimenta disso.
      O texto de Arantes não é muito fácil para quem não está familiarizado. Autor de obras anteriores como "Hegel: a Ordem do Tempo" e "Extinção", seu procedimento dialético está contido no próprio discurso, marcado por uma considerável erudição e referências precisas. Já foi definido como um processo de pensamento em cascata, como se as palavras se derramassem em cachoeira. Às vezes, uma nota de rodapé é tão significativa quanto os longos parágrafos, cifrados por uma ironia fina e crítica. Certa vez, Bento Prado Jr. definiu o estilo de sua prosa como tendo sempre "algo de críptico, de elíptico  e de alusivo, que desnorteia o leitor", assinalando o que também dissemos acima, isto é, que o estilo é "expressão da matéria" de que trata.  Vale a pena o esforço de leitura.
      O prefaciador da obra, Marildo Menegat,  aponta que os escritos de Arantes  podem ser pensados como "uma das formas possíveis da teoria crítica, quando o mundo já não se apresenta em linhas bem armadas de encadeamentos progressivos quase óbvios". Sem dúvida, seu pensamento pertence à linhagem da teoria crítica, inspirada em autores da chamada escola frankfurtiana-- talvez tocado, salvo engano,  mais por Walter Benjamin do que Theodor Adorno ou Max Horkheimer. Tem, contudo, algo em comum com todos: o interesse pela negatividade, o proverbial laivo de pessimismo , a influência hegeliano-marxiana e a recorrência de uma problemática crítica encontrada no "jovem Marx".
      Há, contudo, algo de muito singular nos textos de Arantes, notável pelo menos desde o "Sentimento da Dialética", o "Ressentimento da Dialética" e o "Fio da Meada" --  é o seu traço 'brasileiro', de força literária , e também o seu encontro destemido e firme com a 'prática". Isso o torna muito diferente de autores mais teoricistas e abstratos, como o outrora estudioso de Marx, José Arthur Giannotti. Além disso, penso que há um fio de Ariadne em toda a sua obra:   a questão da temporalidade como ponto de partida e de chegada. Arantes busca e persegue a linha e a natureza do tempo como o processo que dá sentido e tecido à História.
       As entrevistas contidas neste livro inquietante  também mostram o lado militante de Arantes,  seu diálogo com grupos de teatro, seu respeito pelos movimentos sociais, seu confronto com os fatos de junho de 2013.  Revelam outra diferença em relação  aos frankfurtianos clássicos, que pareciam limitar-se à  espera passiva da negação da negação e a comprazer-se com o pessimismo, a melancolia e o exercício da  crítica literária e musical. Ao capitalismo nascido na promessa de felicidade e liberdade e tornado barbárie, boa parte do pensamento frankfurtiano ainda hoje limita-se a contrapor o desânimo diante da barbárie. Só enxerga a desesperança e não vê saída além dela.
       Arantes vai além: detecta esperança no "Occupy Wall Street", no "Podemos", no Syriza, na juventude que vai às ruas pelo Passe Livre, em rebeliões como a Primavera Árabe e em eclosões episódicas de negatividade anti-capitalista.
      Um outro interesse desta obra densa é o de ser um contraponto eficaz ao "pensiero debole" (Gianni Vattimo), que concebe uma superação da modernidade por uma suposta "pós-modernidade", onde os contrários se reconciliariam no bojo do status quo, na complacência em face da barbárie e na qual a liberdade iria imperar, finalmente, na forma de expressão cultural. Fruto do cinismo neoliberal, a ideologia da "pós-modernidade" esconde o quadro de conflitos, de violência e mascara uma época do capitalismo em que se tornaram inevitáveis as expectativas decrescentes.

       O quadro da contemporaneidade é, sem dúvida,  assustador. É a era das distopias. Nas telas dos cinemas, zumbis e dráculas. No mundo do trabalho, opressão e insegurança mal disfarçadas. Na sociedade, crises sucessivas e guerras  intermináveis.  Tudo parte de um tempo global de natureza ora bélica, ora de doença social crônica. Nas ruas, seres humanos ameaçados de extinção, isto é, em vias de se tornarem menos do que zumbis e dráculas. Ao mesmo tempo, porém, uma sociedade onde as pessoas nunca se casaram tanto, independente do gênero, onde a comunicação estendeu-se em escala planetária e a juventude busca avidamente livros e sinais de um novo tempo. Que sociedade é essa? Que destino terá?