Reinaldo Lobo*
Muitas pessoas têm preconceitos, talvez a
maioria delas. Ideias politicamente incorretas sobre raça, gênero sexual, imigrantes,
pobreza e democracia. Até há poucos anos, enunciar publicamente essas opiniões
era uma vergonha. Poderia prejudicar alguém no trabalho ou nas relações
sociais. A maioria se submetia a uma era de avanço dos direitos civis e humanos
e ficava silenciosa. Mas se sentia, ao que tudo indica, injustamente
silenciada.
Com a crise econômica internacional, o
fracasso da chamada globalização em promover a integração, a harmonia cultural
e a universalização dos valores, vai surgindo aos poucos o retorno do reprimido.
A catarse promovida nas eleições norte-americanas por Donald Trump tem
acelerado o processo de virada à direita no mundo dos valores e dos costumes.
Há alguns dias, um veterano jornalista
ligado ao PSDB e ao Movimento Contra a Corrupção soltou esta pérola na sua rede
social :’Homem que é homem não casa com homem”. Recebeu algumas “curtidas” de
seus semelhantes. A figura criou coragem e veio a público. Saiu do armário.
Assumiu sua homofobia, como se fizesse uma piada.
Algumas décadas atrás, seu comentário
seria considerado perfeitamente natural, motivo de orgulho entre os pares.
Mesmo entre jornalistas, profissionais considerados na vanguarda da opinião e
dos valores, o machismo, o racismo, o conservadorismo em relação aos jovens, às
drogas e às mulheres era quase o “normal”.
Depois da revolução feminina e da entrada
massiva das mulheres no mundo do trabalho, o quadro foi mudado e o estupro, por
exemplo, entrou na lista das coisas muito feias. Antes, não constava.
O senso comum, que a escritora e filósofa
francesa Simone de Beauvoir chamava ironicamente de “sabedoria das nações”,
prescrevia que as mulheres deveriam ser “belas, recatadas e do lar”. E ninguém
sentia arrepios ou se escandalizava ao ouvir que “lugar de mulher é na cozinha”
ou que “homem com homem dá lobisomem” e “mulher com mulher dá jacaré”.
O silêncio obsequioso das maiorias deu-se
em função da força das minorias em países avançados e com o respeito aos
direitos humanos que se seguiu à sucessão de ditaduras e de governos
autoritários na América Latina, Ásia e África, mas também na Europa e nos
Estados Unidos. Os governos Nixon, Reagan, e Bush, nos EUA, Thatcher na
Inglaterra, e o advento da AIDS foram sinais de uma virada conservadora, cujo
ápice contra a modernização foi atingido neste momento.
A onda de emergência dos particularismos
antiglobalização, a começar pela ascensão dos cristãos evangélicos e dos
muçulmanos radicais, expressa a catarse das maiorias silenciadas. Nas conversas
de salão, nos púlpitos e nas arenas políticas vai deixando de ser vergonhoso
mostrar-se um reacionário.
Penso que aqueles massacres estudantis
sucessivos por tiroteios nas escolas norte-americanas e o de mais de 70 pessoas
por um neonazista na Noruega há uma década, não são outra coisa senão um sinal
(um sintoma) da emersão de algo sinistro na cultura, agora traduzido, de forma
mais benigna nas urnas e em muitas partes. Mesmo a radicalização entre direita
e esquerda em muitos países, inclusive em tradicionais “democracias liberais”
de caráter centrista, consiste, a meu ver, em uma liberação do que fora
considerado lixo político e varrido para debaixo do tapete.
Ainda que a cultura norte-americana --
incluindo aí o faroeste do porte de armas até para adolescentes e crianças--
seja um tanto específica, não se pode descartar o fato que se desenrolava desde
as décadas de 60 e 70, na forma de uma notável ascensão dos negros e de todas
as minorais a posições de igualdade.
Os brancos conservadores norte-americanos
“engoliram” essa ascensão por muito tempo, mesmo porque a ideologia dominante
era liberal. Os próprios republicanos chegaram a fazer concessões notáveis,
integrando uma “ala gay” no partido.
Agora, com os excluídos e os ameaçados pela
globalização manifestando sua ira em muitas áreas do mundo, o recalque se
rompeu. Vieram à tona a violência e os valores mais regressivos que estavam sob
o manto do silêncio e da continência. As pessoas perderam a vergonha de votar
num Trump, contra a paz na Colômbia no plebiscito sobre um acordo com as FARC
guerrilheiras, e pela retirada da Inglaterra do Mercado Comum Europeu, essa
utopia derivada do projeto de paz perpétua de Kant.
Há um odor de fascismo no ar, sem
dúvida. A democracia e a liberdade são conceitos predominantemente racionais. O
nacionalismo, o racismo, a xenofobia e o ódio ao outro pertencem à categoria de
paixões baixas e primitivas. Têm características emocionais infantilizadas, mal
elaboradas e brutais. Sua natureza irracional é evidente: não há lógica nem
argumentos sustentáveis que os justifiquem. São puros impulsos e emoções.
No Brasil, a onda de ódio que precedeu
o impeachment da presidenta Dilma tinha esses traços. O “desrecalque” de
preconceitos sufocados por uma década de “lulopetismo”, de desprezo pelos pobres,
revelou, sobretudo, o medo da classe média de se proletarizar, sentindo-se
excluída em benefício de uma “nova classe média” criada por Lula. Esse ódio
reverbera até hoje.
Ficou patente que os ricos e os pobres
se beneficiaram e surfaram na onda de crescimento econômico da era lulista, mas
as classes médias, pelo menos nos seus setores mais conservadores, ficaram
espremidas, sem lugar na nova ordem “socialista”—que, de socialista, nem tinha
nada.
As massas silenciadas estão cada vez mais
ruidosas, despudoradas até, reivindicando seu lugar no admirável mundo novo do
século XXI, mesmo que , para isso, tenham de adotar a legitimação da violência
política como seu desejo explícito.