Reinaldo Lobo
Freud formulou
uma intrigante pergunta: como as pessoas interiorizam o poder? Quais as
condições subjetivas para a aceitação das instituições, das regras, do comando
do Estado e dos governos?
Winnicott, outro psicanalista, ofereceu
uma excelente resposta: primeiro, é pela
via da onipotência primitiva de todo ser humano, quando ainda é uma criancinha
pequena. O bebê, sua majestade, sente controlar e dominar o mundo que “inventou“
e, ao mesmo tempo, encontrou ao seu redor. É um período de indiferenciação
mágica e de sentimento irrefletido de poder. Cabe à mãe confirmar ou desmentir
essa ilusão primária de poder absoluto. De preferência, uma boa mãe confirma e,
depois, desilude gradualmente o seu bebê, impondo-lhe delicados limites.
Aos
poucos, tudo passa pela identificação com as figuras materna e paterna e, com frequência,
a constituição de um “falso Eu” adaptativo, que torna o sujeito parcialmente
integrado e possivelmente submisso à sociedade a que pertence. Um “falso Eu” é
uma defesa sofisticada para evitar o sofrimento psíquico de se confrontar com o
ambiente, escondendo assim um “verdadeiro Eu”, mais espontâneo e, às vezes,
agressivo.
Com a “falsificação de si mesmo”, para
evitar perder amor e reconhecimento, adia-se o uso do núcleo mais verdadeiro,
potencialmente perigoso para as relações interpessoais e sociais, para um dia,
quem sabe, ser usado. Essa é uma saída exitosa e funcional. O preço é a
submissão às leis do ambiente. Isso acompanha um certo grau de alienação e, às
vezes, um sentimento de irrealidade.
A falta de sentido junta-se a essa
estranheza em relação ao mundo a que o sujeito pertence. Escritores como Kafka,
Camus, Sartre, o filósofo Heidegger, Nietzsche, o teatrólogo Ionesco e até
mesmo Homero, na Grécia Antiga, captaram o sentimento de absurdo que acomete
seres humanos quanto ao seu pertencimento.
Há várias saídas possíveis para essa
situação de conflito entre sujeito e sociedade. Uma delas, é comportamento que
foge do comum e adquire contornos antissociais. Seja pela via do heroísmo e da
revolução, seja pelo caminho da delinquência. Uma outra, como vimos, é a
adaptação submissa. Mas há também a rota da identificação mais ambiciosa com o
poder, apropriando-se dele e dos seus métodos. O caminho de muitos políticos,
corruptos ou não.
Uma patologia particular de apropriação do
poder, que evoca a onipotência primária do bebê, é o totalitarismo, a meu ver.
Um colega psicanalista contemporâneo, Henrique Honigztejn, do Rio de Janeiro, chama
de “onipotência secundária” esse fenômeno que faz o sujeito derivar para o
nazismo ou outras formas de política totalitária.
Estudando milhares de páginas dos “Diários” de
Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, e a própria história do
nazi fascismo, Honigztejn postula que, quando a relação mãe-bebê primitiva é
falha e mal resolvida, surge nesses indivíduos uma espécie de onipotência
compensatória que os leva até aos delírios de poder. Seria interessante estudar também outras
personagens históricas sob esse ângulo, como Stálin, Mao Tsé-tung e congêneres.
A impressão é a de que se combinam nesses
perfis de políticos a necessidade de reconhecimento, uma espécie de “prova de
legitimidade”, a delinquência, a busca do “verdadeiro” sentido da vida, a ilusão
onipotente desmedida, o senso de heroísmo e a submissão a crenças adquiridas.
Estamos diante de uma patologia política particular.
Na
verdade, como diria Bion, estamos falando de personalidades com partes
psicóticas adaptadas, com uma enorme fragilidade do Eu. Como se diz, egos
frágeis e, por isso mesmo, perigosos.
Mesmo que os casos citados sejam extremos,
o gradiente de hipóteses combinatórias destes exemplos vale para qualquer
vocação política e pode ser aplicado ao estudo do cotidiano das democracias e
ao político comum. Não só existem casos de totalitários bem-sucedidos, mas
também há os virtuais.
Carl
Schmitt, o estudioso da política, ele próprio um simpatizante do fascismo, viu
um certo aspecto paranoico em toda a estrutura da vida política: é a divisão
recorrente entre amigos e inimigos (amigos
versus inimigos), essência da prática partidária, inclusive nas
democracias mais abertas.
Ainda que existam políticos sérios e
construtivos, que tiveram – pode-se supor-- mães razoavelmente sensíveis e
suficientemente adequadas, também estes estão sujeitos às variáveis e aos
potenciais que apontamos na relação com a sociedade.
A
corrupção proposta pelo fascínio do poder pode levar a uma interiorização
derivada da onipotência e do resíduo de narcisismo de todos nós, em busca de
alcançar objetivos pelos meios mais rápidos e a busca do prazer imediato.
Existe uma contrapartida de toda patologia
política vinda “de cima”, proposta pelo poder. É a adesão dos governados, que
se identificam, às vezes, até com o agressor.
Espera-se destes cidadãos comuns a submissão
quase absoluta. Muitos perguntam: por que se vota em gente tão corrupta e
reincidente no abuso de poder? Por que essa espécie de submissão voluntária aos
poderosos, à espera de gratificações? De que tipo de gratificação profunda
estamos falando?
É que temos dentro de nós um potencial de
onipotência e de corrupção para nos identificarmos com o que um político,
corrupto ou não, tem – o desejo de poder.