Reinaldo Lobo*
A democracia está sob ataque no mundo
inteiro. A pretexto de suas falhas de representação, muitos ideólogos de
diversos países encerraram o namoro democrático que vinha desde o fim dos
regimes totalitários do Leste Europeu, em 1989.
Associada ao capitalismo de livre
mercado, a democracia liberal era a receita ideal apregoada em toda parte. Foi
até imposta pela força das armas em alguns países do Oriente Médio.
Hoje, não é bem assim. O discurso
liberal foi substituído por uma crítica dos limites da democracia e, ainda que
mantida formalmente nas Américas, na Europa e em boa parte da Ásia e África,
está sob suspeita de enfraquecer o espírito coletivo, promover o individualismo
e a ineficiência. A lembrança de que a maioria das nações reivindicava até há
pouco tempo a qualificação de democrática, vem sendo deixada para trás.
Comparado com empresas privadas, o
Estado Democrático é pintado como um resquício de burocracia que entrava o
fluxo das decisões de mercado e um obstáculo à manutenção do capital
internacional. É comum ouvirmos empresários declarando seu amor à China, onde
há um capitalismo totalitário no qual imperaria, segundo eles, uma grande
facilidade decisória, sem as amarras e meandros democráticos.
O
capitalismo chinês teria, por exemplo, o mérito de impor suas decisões com mais rapidez e fluidez entre a ponta da
produção e da comercialização, sem falar da repressão às reivindicações
salariais e da submissão dos trabalhadores. A Rússia do autoritário Putin
costuma receber elogios parecidos, por reunir restos centralizadores e a
estabilidade do regime anterior combinados com a dinâmica do capital.
O
risco de abertura excessiva da democracia à criação de novos direitos e à
participação popular constitui uma ameaça à “oligarquia liberal” que dá as
regras e governa nos chamados países ocidentais. A preferência por Estados de
Exceção é cada vez maior e talvez constitua a forma política e jurídica ideal a
serviço da ideologia neoliberal.
Todo Estado é, num certo sentido,
fechado em si mesmo. Forma um círculo de poder. É oligárquico. Dizia um célebre
teórico da oposição entre democracia e totalitarismo, o sociólogo Raymond Aron,
insuspeito de anarquismo ou de esquerdismo: “”Não se pode conceber um regime
que, em algum sentido, não seja oligárquico”. Um outro autor, o clássico Robert
Michels, de orientação mais à esquerda e estudioso dos partidos políticos, falava
de uma “Lei de Ferro” da burocratização pela existência inevitável de
oligarquias que empalmam o poder. De
fato, os que defendem a democracia como uma resistência ao avanço do poder
sobre a sociedade, sabem perfeitamente que mesmo ela dá espaço às oligarquias
dominadoras.
No entanto, o que está ocorrendo no
período histórico presente, cuja culminância foi a eleição de Trump para a
presidência dos Estados Unidos, parece ser algo mais sério, na forma de uma
ofensiva de direita que busca, no mínimo, obter a fórmula ideal da “meia
democracia”. Imagina-se a situação em que o Estado seria aparentemente mínimo,
mas sua ação ultra eficiente prescindiria da aprovação das maiorias e os
representantes do povo estariam desconectados ainda mais do que hoje de suas
bases, a fim de tomar as decisões convenientes ao livre mercado e ao capital
internacional. Sua meta seria uma desconexão entre as instituições como o
Judiciário, o Executivo e os Legislativos, de um lado, e a soberania popular,
do outro.
É como se a direita tivesse roubado
alguns argumentos da esquerda marxista, para dizer, por exemplo, que os
Direitos do Homem são os direitos egoístas do individualismo burguês e que,
agora, é preciso reduzir a esfera de sua legitimidade em nome da eficácia da
ação política e econômica.
Vários
autores perceberam esse deslocamento, como o filósofo italiano Giorgio Agamben,
cujas análises procuram demonstrar que os estados de exceção tendem a se tornar
permanentes, como se constituíssem a essência das democracias contemporâneas.
Ou, sobretudo, como o francês Jacques Rancière, para quem está-se desenvolvendo
um verdadeiro ódio à democracia na cultura atual, cujos críticos do sistema, de
direita e de esquerda, reduziram o “homem democrático” seja ao “indivíduo
egoísta” ou ao “consumidor ávido”, suprimindo a dimensão original da revolução
democrática, germinada lá atrás, na Grécia, que é a emancipação e a plena
cidadania.
O discurso do elogio da democracia,
presente nos tempos do totalitarismo no século XX, vem sendo substituído por
narrativas sobre os seus riscos. Curiosamente, há uma coincidência entre as
palavras e os fatos. Os golpes parlamentares de direita, como em Honduras, no
Paraguai e no Brasil, assim como a crise da esquerda, ainda sem desfecho, da
Venezuela, mostram aqui em nossa América Latina que o fogo é disparado não
pelos militares, mas pelos políticos e os membros do Judiciário.
A democracia corre o risco de morrer
pelas mãos dos que mais deveriam defendê-la, promovendo a sua
institucionalização.
A ilusão de que a democracia é o regime
mais compatível com o capitalismo leva muitos a acreditarem que basta o seu
funcionamento conjugado para que sua sobrevivência esteja garantida.
Ao
contrário, pode-se pensar que a maior ameaça contemporânea a esse regime venha
justamente desse binômio, uma vez que o capital se conjuga apenas com sua
própria lógica de reprodução e de crescimento. O sonho do crescimento
sustentável e constante pode ser também a lenta agonia da democracia.