Reinaldo Lobo
Como todas as modas, terá seu tempo de
duração. Um dia passa, como uma onda no mar, diria Lulu Santos. Várias teses
sociológicas interessantes serão escritas sobre o assunto. Já apareceu até uma
quase teoria sobre o “Mito”, sob a pena brilhante de Eliane Brum: o ex-capitão
representa o homem comum ressentido (a palavra é minha), excluído do circuito
moderno e culto em que imperam os Direitos Humanos e Civis. É quem está fora das
rodas sofisticadas da classe média de esquerda, instruída e “antenada”.
Esse sujeito teria sufocado um bom tempo
seus velhos preconceitos machistas e antiquados e saiu do armário, com sinal
trocado, despejando seus votos na caixa da extrema direita, sem nenhum pudor.
Há verdade nessa interpretação, mas é
possível dizer que houve mais complexidade nessa ascensão de uma moda, afinal, retrô,
com forte nostalgia da época da Guerra Fria e de 1964. Ora, dirão, nada a ver:
o passado já era, as circunstâncias são outras, hoje existem as redes sociais,
habilmente explorados pelo candidato Bolsonaro e seus ricos apoiadores, além
dos seguidores “medianos”. Sem dúvida.
Os tempos são outros, mas o fantasma de crise e de medo está presente como em
1964.
A classe média daquela época apoiou a
queda do trabalhismo e a intervenção militar para “restaurar a democracia” como
se houvesse um verdadeiro “perigo comunista” no País. Hoje sabemos que era tudo
“fake”, uma montagem de cenário com apoio norte-americano para desestabilizar o
governo Goulart, que corria o risco de se tornar “neutro” (uma outra fantasia,
pois Goulart cedeu em tudo o que pôde) no embate com a então União Soviética. O
que os líderes norte-americanos temiam eram os votos do Brasil na OEA, então território
quase exclusivo das ordens de Washington. Paradoxalmente, quem tentou virar
“neutro” foi o conservador Jânio Quadros em 1961, e caiu rápido.
Na dinâmica interna do Brasil, a classe
média temia a ascensão das classes populares e, como consequência, sua própria
proletarização. Outra fantasia ideológica difundida pela mídia da época pelos
“institutos de defesa da democracia” financiados pelos ricos e os
norte-americanos, que preparavam o golpe de Estado. O País nunca esteve, apesar da crise política
e inflação alta, à beira de engolir a classe média, que se expandia naquele
momento. Os ministros e aliados, como Afonso Arinos e Santiago Dantas, eram
notáveis liberais. Um ministro do Trabalho foi Franco Montoro, democrata
cristão por filosofia. Até a reforma agrária proposta por Goulart era uma tentativa
de criar uma classe média de pequenos proprietários no campo, e ampliar dessa
forma o mercado interno para a economia em geral.
As reformas eram essencialmente capitalistas em sua maioria,
ainda que houvessem pequenas concessões como 13º salário e manutenção da
estabilidade no emprego para os trabalhadores. Tudo assustou não só a classe
média tradicional, pouco afeita a mudanças inclusivas, mas também os ruralistas
e industriais da época, que se comportavam reagindo mais à moda do esquema
marxista da luta de classes – no que pareciam acreditar no clima ideológico de
então.
Hoje, a moda Bolsonaro tentou recuperar um
fator semelhante ao daquela época, inventando cenários externo e interno fakes
-- para usar a palavra tão atual. Foi uma estratégia política, em primeiro
lugar, que começou atabalhoadamente, mas deu certo. Funcionou porque surgiu do
mundo do baixo clero do Congresso um deputado medíocre, mas saudoso da ditadura
militar onde localiza seus ídolos e que representava apenas um lobby das Forças
Armadas e defendia causas adormecidas, como o uso da tortura e um furioso
anticomunismo.
Aos poucos, seu embate isolado com a
esquerda estendeu seu interesse contra o “politicamente correto”, muito
parecido com o que se difundira na camaradagem de caserna em todos os escalões
militares. Foi a pólvora. Capturou o homem ressentido em toda a sociedade. De
saída, 70% do eleitorado de Bolsonaro, segundo as pesquisas, era masculino. Por
duas razões principais e uma derivada: o machismo, o anti-feminismo mais ou menos
disfarçado entre os homens brasileiros; e o medo da insegurança nas ruas, na
sociedade e no emprego. O tom anti-político, o discurso contra a corrupção do
candidato, associando tudo ao PT, foi a outra razão decisiva.
Houve fatores importantes, que não devem
ser negligenciados para explicar a moda Bolsonaro. Por exemplo, a facada. Gerou
uma onda de solidariedade, suspeita, polêmica e ódio anti-petista, como se o
lulopetismo fosse o autor do atentado. Isso gerou uma dimensão imaginária
perigosa. Lula ganhou uma espécie de espectro nefasto, apesar de preso e quase
impossibilitado de coordenar ações políticas eficientes—tanto que seu
candidato, para ganhar alguns votos do centro, teve de se afastar
simbolicamente de Lula.
O desafio para o novo governo empossado com
um aparato militar espetacular e iniciado com muitos tropeços, com o silêncio
obsequioso dos militares fora da administração civil, é conseguir
governabilidade nã9o junto ao Congresso ou ao Judiciário, que parecem bastante
submissos até agora á Nova Ordem. O maior obstáculo são seus próprios quadros e
a falta de um programa nacional claro que não se restrinja ao discurso
neoliberal para o mercado e à restauração de costumes antiquados, via religião
evangélica e ataques “à ideologia de gênero”. Detalhe: até agora Bolsonaro não
falou a palavra emprego.
A começar pelo próprio presidente, o
governo parece muito despreparado tecnicamente para a Política (justamente onde
Bolsonaro mais insistiu, na “qualidade técnica”) e é incoerente, num vai-e-vem
inquietante. Seu ministro mais popular, Sérgio Moro, continua a fingir que não
é um político. Parece pretender uma política de despachos administrativos, como
se ainda fosse um juiz, na base do “cumpra-se a sentença”. Bolsonaro tropeça na língua quando se mete em
economia e lá vem o Guedes para corrigir. Enrola-se em declarações políticas
prematuras e lá vem o Ônix para tentar corrigir, falar demais e se enrolar
também.
Janaína Paschoal, que se elegeu com
forte votação na onda da moda, já avisou que não quer um governo ideológico, um
”PT com sinal trocado”, pois é o que já está vendo. Está errada quanto ao PT,
que foi sempre um partido de centro esquerda, nunca de extrema, como se montou
no cenário da imaginação popular. Na política externa, por exemplo, o PT
assinalou simpatias à esquerda, mas foi extremamente pragmático, privilegiando
as relações com os EUA e a Europa. Nada semelhante à Teologia de Trump e da
família Bolsonaro, que usa a bandeira de Israel como se fosse a nossa. Já brincaram:
que tal mudar nossa capital para Jerusalém?
Se a moda não passar de seu período agudo
e se a realidade não se impuser, vamos ficar sem exportar carne de cordeiro,
frangos e outros produtos para os países muçulmanos. Por puro preconceito, chave
para entender esse modismo.