quinta-feira, 28 de agosto de 2014

SOBRE A CORRUPÇÃO


                                      
                                                                          Reinaldo Lobo*

 

              Sempre que o assunto é corrupção, aponta-se o dedo para os políticos. É uma forma de simplificar demais e buscar bodes expiatórios. Corrupção é um tema mais complexo e envolve toda a sociedade onde ocorre. E existem explicações que nunca são consideradas no caso brasileiro.     

             Para começar, a sociedade brasileira é corrupta em vários graus, já a partir dos índices de exploração próprios do capitalismo: hiper-mais-valia na cidade e no campo, baixos salários em várias áreas, desigualdade na distribuição de recursos, trabalho escravo, prostituição, sobretudo entre mulheres de baixa renda e pouca escolaridade, exploração de menores, crimes do colarinho branco,  negociatas de grandes empresas, falências fraudulentas, sonegação de impostos e muitos outros sinais. No Brasil, é considerado "normal" uma empresa sonegar, caso contrário "não sobreviveria".

            Uma lenda bastante  difundida sustenta que a corrupção é um assunto exclusivo do Estado e da área pública. E, em conseqüência, do funcionalismo e da esfera política. Mentira das grossas. Grandes difusores de corrupção são também o empresariado e as grandes corporações privadas que constituem lobbies e utilizam "processos informais" para comprar os políticos e, assim, fazer valer seus interesses na esfera pública e decisória. Se não houvesse mercado, nenhum político chegaria ao ponto de pagar a manutenção da amante com dinheiro de empreiteiras, como naquele caso bem conhecido.

           Ora, dirão, por que os políticos aceitam esse tipo de atitude, uma vez que deveriam estar voltados para a representação de seus eleitores e para o bem público.  A resposta envolve dois olhares -- um para a História brasileira e outro para a realidade presente na sociedade.

          A visão histórica é bastante conhecida: o Estado brasileiro foi formado no patrimonialismo desde o Brasil Colônia; quem é dono do poder se acha dono das terras e das decisões patrimoniais; nascemos de capitanias hereditárias, onde o beneficiário das concessões estatais de Portugal eram líderes políticos e, ao mesmo tempo, latifundiários e senhores de escravos; etc.Toda essa tradição não morreu inteiramente e banalizou, por assim dizer, a corrupção e o sistema de favores.

       Não é preciso nem lembrar o quanto era corrupta a sociedade "malemolente" descrita por Gilberto Freyre em "Casa Grande e Senzala". Aos filhos dos ricos, tudo. Aos pobres e escravos, nada -- dando origem entre estes a  sistemas de malandragem,  trocas espúrias e até mesmo ao tráfico de todo tipo.

         Quanto à realidade presente, não podemos responder pela vida psíquica e o possível  viés psicopático de cada um dos envolvidos, mas existe um fator nada discutido entre nós que é a busca do reconhecimento. Quem é zero à esquerda deseja ardentemente "ser alguém" e os meios mais fáceis para isso são o poder e o dinheiro, pelo menos em uma sociedade como a nossa.

        A corrupção torna rapidamente aceita uma "pessoa" no consumo e nos sinais exteriores de riqueza, mesmo alguém remediado ou pobre que chegou a um cargo público -- pode ser fiscal de renda, oficial de justiça ou deputado.  Numa sociedade de massas, onde todos são anônimos e indiferenciados, o poder significante do dinheiro e do acesso a bens torna visível quem era invisível ou até desprezível.

       Um outro elemento importante é a dissolução dos valores em uma sociedade com muita mobilidade social e com pressa de desenvolvimento econômico.

      O Brasil, assim como outras sociedades latino americanas,  africanas e asiáticas, passou de país subdesenvolvido, agrário exportador, com um sistema tradicional e patriarcal de valores, para uma complexa rede de classes e massas postas dentro de um mundo de redes de comunicação e negócios. Tudo isso em poucas décadas.

      O processo de desenvolvimento dissolve antigas hierarquias e laços. Essa dissolução produz confusão e anomia. Daí, decorre a ânsia de ganhar o único ícone visível de distinção e organização aparente -- o poder do dinheiro (e o dinheiro do poder).

       O nosso Pais é muito grande, com população crescente, mas unificado por meios de comunicação que transmitem os valores do consumo em massa e da vida nas grandes cidades mais desenvolvidas, atingindo assim até os grotões, como se diz.  Pensando nisso, dá para imaginar o grau de confusão que acomete os corações e mentes brasileiros. Dá para explicar até por que algumas tribos indígenas remanescentes na Amazônia, que descobriram o valor do dinheiro "civilizado", passam a vender madeira extraída clandestinamente de suas próprias reservas, que deveriam ser as mais sustentáveis. De tutelados pelo Estado, de inocentes donos das florestas, passam a comerciantes ilegais que contrabandeiam madeira não certificada para a Inglaterra , o Canadá e vários outros países.

        Explicar a corrupção não a  justifica, obviamente. Mas colocá-la numa perspectiva histórico-sociológica ajuda a entender melhor o Pais que temos e desejamos mudar. Auxilia ainda a não nos sentirmos tão desprezíveis em relação aos países já altamente desenvolvidos, onde a corrupção existe, mas os índices são bem baixos. E a pensar : somos corruptos, mas essa doença pode passar com os remédios do desenvolvimento e da  justiça social.

* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogpot.com

A MÃE DE TODAS AS REFORMAS


       
                                                                         Reinaldo Lobo*

 

         Seria preciso suprimir todos os partidos políticos, não só no Brasil mas em toda parte onde exista uma República? A idéia sugestiva foi pensada no início dos anos 40 pela célebre filósofa francesa Simone Weil, que, além de brilhante autora, era então uma brava combatente contra o nazifascismo. Publicada após sua morte, em fevereiro de 1950, a proposta causou escândalo. Como uma pessoa radicalmente democrata podia sugerir uma coisas dessas? Os partidos não fazem parte integrante e inseparável de uma sociedade livre?

         Os motivos de Weil eram elevados e sérios. Professora de filosofia cuja obra é considerada uma das mais importantes do século XX, tornou-se operária na Renault para conhecer a condição operária e militou na Resistência até 1943, quando morreu.  Ela fazia questão de dar exemplo e testemunho de suas idéias. Concebia o problema da existência dos partidos de uma forma a causar espanto na sua época, sobretudo logo após a II Guerra, quando eles  se consolidavam em direção ao poder em países recém liberados do totalitarismo. Mas a sua pergunta faz hoje mais sentido e pode ser  examinada até com certa benevolência, quando todos sabemos como está desmoralizada a representação política no mundo inteiro.

         A supressão dos partidos, dizia Weil, não ameaçaria a essência da democracia, que é um governo do povo que garanta constituir-se "do e para" o próprio povo. Isto é, a participação do conjunto do povo no poder. O que  a supressão corrigiria seria uma forma particular de organizar a democracia.

      Partido representa uma parte, portanto não a vontade comum nem o consenso geral. Na verdade, ele é uma parte interessada (e,às vezes, interesseira) que exprime pontos de vista particulares. A sua eliminação responderia a duas outras questões cruciais que se deve examinar com muita atenção: 1. como dar aos homens a possibilidade de exprimir um juízo sobre os grandes problemas da vida pública?; 2. como impedir, no momento em que o povo é consultado que circule através dele qualquer espécie de paixão coletiva distorcida? É impossível falar  de legitimidade republicana -- dizia nossa filósofa--  se não se pensa nesses dois pontos.

     A solução desse problema não é fácil de conceber, mas é evidente, após um exame atento -- dizia Weil, de modo radical--que toda solução implicaria, antes de tudo, a "supressão dos partidos políticos". Eles são um intermediário entre o povo e seu governo. Em muitas ocasiões, um intermediário falsificador  que , em lugar até mesmo  de representar, trava a representação.

       Liberais e marxistas têm discutido o problema da representação política a partir de seus desvios, como nas ditaduras e nas burocracias estatais. Estas se  formam a partir do descolamento dos representantes em relação aos representados, formando uma camada aparentemente fina que se engrossa cada vez mais com a posse do poder decisório.  Só que liberais e marxistas insistem em derivar suas reflexões de uma matriz economicista ,isto é, reduzindo o complexo problema a uma determinação econômica.

      A questão do poder é essencialmente política e o maior mérito do livrinho de Simone Weil-- "Notes sur la suppréssion genérale des partis politiques"-- consiste em apontar de maneira taxativa, radical e provocativa essa verdade negada ou escondida por muitos pensadores clássicos e modernos. Somente mudando as formas de participação, acesso e manutenção do poder é que se torna possível enfrentar os problemas de controle e fiscalização do próprio poder.

      No momento em que se discute não só como reduzir o número excessivo de partidos políticos, mas a própria reforma política exigida nas ruas pelo movimento de junho de 2013, ter em mente esses princípios indicados por Weil não significa uma adesão cega a um programa libertário. Significa , isto sim, tentar contrapor ao caos vazio da representação política atual uma forma ainda mais legítima de participação dos cidadãos nas decisões públicas.

       Quando o Brasil trouxe , por um breve instante,  a demanda de Reforma Política pela "voz das ruas", chegando-se a propor um plebiscito e uma Constituinte específica para esse fim, é mais do que urgente que se retire o poder de decisão das mãos dos maiores interessados em bloquear quaisquer mudanças -- os partidos e os políticos que os usam como meras máquinas de interesses. Os que estão no Congresso atual (e  no próximo) são os menos indicados, não por suas qualidades ou defeitos pessoais, para decidirem uma reforma. Pela simples razão de que estão na zona de conforto, onde chegaram pelos métodos tradicionais que prevalecem. Uma reforma política "vinda de fora" seria  mãe de todas as reformas.

      Em plena guerra eleitoral, quando o pensamento foi substituído pela obsessão de "tomar partido", é preciso lembrar a todos que seria interessante  ir mais fundo. E voltar a pensar -- se é que já se pensou seriamente nesse problema entre nós. Imaginar soluções de participação que não fiquem exclusivamente no troca-troca partidário, e que eliminem as distorções brutais como a enorme distância entre os representantes e seus representados.

      Talvez precisemos sair dessa atitude de  "a favor ou contra" e ouvir vozes inspiradoras como a Simone Weil, para quem essa postura se origina nos meios políticos e se estende "como uma lepra" às escolas, às artes, à religião, às ciências, através de todo e qualquer país republicano, atingindo possivelmente a totalidade do pensamento humano.

     Não é apenas utopia. A cisão paranóica da política partidária -- ou é amigo ou é inimigo-- deveria ser substituída com vantagem pela idéia de uma democracia, quem sabe, sem partidos.