Reinaldo Lobo*
Seria preciso suprimir todos os
partidos políticos, não só no Brasil mas em toda parte onde exista uma
República? A idéia sugestiva foi pensada no início dos anos 40 pela célebre
filósofa francesa Simone Weil, que, além de brilhante autora, era então uma
brava combatente contra o nazifascismo. Publicada após sua morte, em fevereiro
de 1950, a proposta causou escândalo. Como uma pessoa radicalmente democrata
podia sugerir uma coisas dessas? Os partidos não fazem parte integrante e
inseparável de uma sociedade livre?
Os motivos de Weil eram elevados e
sérios. Professora de filosofia cuja obra é considerada uma das mais
importantes do século XX, tornou-se operária na Renault para conhecer a
condição operária e militou na Resistência até 1943, quando morreu. Ela fazia questão de dar exemplo e testemunho
de suas idéias. Concebia o problema da existência dos partidos de uma forma a
causar espanto na sua época, sobretudo logo após a II Guerra, quando eles se consolidavam em direção ao poder em países
recém liberados do totalitarismo. Mas a sua pergunta faz hoje mais sentido e
pode ser examinada até com certa
benevolência, quando todos sabemos como está desmoralizada a representação
política no mundo inteiro.
A supressão dos partidos, dizia Weil,
não ameaçaria a essência da democracia, que é um governo do povo que garanta
constituir-se "do e para" o próprio povo. Isto é, a participação do
conjunto do povo no poder. O que a
supressão corrigiria seria uma forma particular de organizar a democracia.
Partido representa uma parte, portanto
não a vontade comum nem o consenso geral. Na verdade, ele é uma parte
interessada (e,às vezes, interesseira) que exprime pontos de vista particulares.
A sua eliminação responderia a duas outras questões cruciais que se deve
examinar com muita atenção: 1. como dar aos homens a possibilidade de exprimir
um juízo sobre os grandes problemas da vida pública?; 2. como impedir, no
momento em que o povo é consultado que circule através dele qualquer espécie de
paixão coletiva distorcida? É impossível falar
de legitimidade republicana -- dizia nossa filósofa-- se não se pensa nesses dois pontos.
A solução desse problema não é fácil de
conceber, mas é evidente, após um exame atento -- dizia Weil, de modo
radical--que toda solução implicaria, antes de tudo, a "supressão dos
partidos políticos". Eles são um intermediário entre o povo e seu governo.
Em muitas ocasiões, um intermediário falsificador que , em lugar até mesmo de representar, trava a representação.
Liberais e marxistas têm discutido o
problema da representação política a partir de seus desvios, como nas ditaduras
e nas burocracias estatais. Estas se formam a partir do descolamento dos
representantes em relação aos representados, formando uma camada aparentemente
fina que se engrossa cada vez mais com a posse do poder decisório. Só que liberais e marxistas insistem em
derivar suas reflexões de uma matriz economicista ,isto é, reduzindo o complexo
problema a uma determinação econômica.
A
questão do poder é essencialmente política e o maior mérito do livrinho de
Simone Weil-- "Notes sur la suppréssion genérale des partis
politiques"-- consiste em apontar de maneira taxativa, radical e
provocativa essa verdade negada ou escondida por muitos pensadores clássicos e
modernos. Somente mudando as formas de participação, acesso e manutenção do
poder é que se torna possível enfrentar os problemas de controle e fiscalização
do próprio poder.
No momento em que se discute não só como
reduzir o número excessivo de partidos políticos, mas a própria reforma
política exigida nas ruas pelo movimento de junho de 2013, ter em mente esses
princípios indicados por Weil não significa uma adesão cega a um programa
libertário. Significa , isto sim, tentar contrapor ao caos vazio da
representação política atual uma forma ainda mais legítima de participação dos
cidadãos nas decisões públicas.
Quando o Brasil trouxe , por um breve
instante, a demanda de Reforma Política
pela "voz das ruas", chegando-se a propor um plebiscito e uma
Constituinte específica para esse fim, é mais do que urgente que se retire o
poder de decisão das mãos dos maiores interessados em bloquear quaisquer
mudanças -- os partidos e os políticos que os usam como meras máquinas de
interesses. Os que estão no Congresso atual (e
no próximo) são os menos indicados, não por suas qualidades ou defeitos
pessoais, para decidirem uma reforma. Pela simples razão de que estão na zona
de conforto, onde chegaram pelos métodos tradicionais que prevalecem. Uma
reforma política "vinda de fora" seria mãe de todas as reformas.
Em plena guerra eleitoral, quando o
pensamento foi substituído pela obsessão de "tomar partido", é
preciso lembrar a todos que seria interessante
ir mais fundo. E voltar a pensar -- se é que já se pensou seriamente
nesse problema entre nós. Imaginar soluções de participação que não fiquem
exclusivamente no troca-troca partidário, e que eliminem as distorções brutais
como a enorme distância entre os representantes e seus representados.
Talvez precisemos sair dessa atitude de "a favor ou contra" e ouvir vozes
inspiradoras como a Simone Weil, para quem essa postura se origina nos meios
políticos e se estende "como uma lepra" às escolas, às artes, à
religião, às ciências, através de todo e qualquer país republicano, atingindo possivelmente
a totalidade do pensamento humano.
Não é apenas utopia. A cisão paranóica da
política partidária -- ou é amigo ou é inimigo-- deveria ser substituída com
vantagem pela idéia de uma democracia, quem sabe, sem partidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário