quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A MÃE DE TODAS AS REFORMAS


       
                                                                         Reinaldo Lobo*

 

         Seria preciso suprimir todos os partidos políticos, não só no Brasil mas em toda parte onde exista uma República? A idéia sugestiva foi pensada no início dos anos 40 pela célebre filósofa francesa Simone Weil, que, além de brilhante autora, era então uma brava combatente contra o nazifascismo. Publicada após sua morte, em fevereiro de 1950, a proposta causou escândalo. Como uma pessoa radicalmente democrata podia sugerir uma coisas dessas? Os partidos não fazem parte integrante e inseparável de uma sociedade livre?

         Os motivos de Weil eram elevados e sérios. Professora de filosofia cuja obra é considerada uma das mais importantes do século XX, tornou-se operária na Renault para conhecer a condição operária e militou na Resistência até 1943, quando morreu.  Ela fazia questão de dar exemplo e testemunho de suas idéias. Concebia o problema da existência dos partidos de uma forma a causar espanto na sua época, sobretudo logo após a II Guerra, quando eles  se consolidavam em direção ao poder em países recém liberados do totalitarismo. Mas a sua pergunta faz hoje mais sentido e pode ser  examinada até com certa benevolência, quando todos sabemos como está desmoralizada a representação política no mundo inteiro.

         A supressão dos partidos, dizia Weil, não ameaçaria a essência da democracia, que é um governo do povo que garanta constituir-se "do e para" o próprio povo. Isto é, a participação do conjunto do povo no poder. O que  a supressão corrigiria seria uma forma particular de organizar a democracia.

      Partido representa uma parte, portanto não a vontade comum nem o consenso geral. Na verdade, ele é uma parte interessada (e,às vezes, interesseira) que exprime pontos de vista particulares. A sua eliminação responderia a duas outras questões cruciais que se deve examinar com muita atenção: 1. como dar aos homens a possibilidade de exprimir um juízo sobre os grandes problemas da vida pública?; 2. como impedir, no momento em que o povo é consultado que circule através dele qualquer espécie de paixão coletiva distorcida? É impossível falar  de legitimidade republicana -- dizia nossa filósofa--  se não se pensa nesses dois pontos.

     A solução desse problema não é fácil de conceber, mas é evidente, após um exame atento -- dizia Weil, de modo radical--que toda solução implicaria, antes de tudo, a "supressão dos partidos políticos". Eles são um intermediário entre o povo e seu governo. Em muitas ocasiões, um intermediário falsificador  que , em lugar até mesmo  de representar, trava a representação.

       Liberais e marxistas têm discutido o problema da representação política a partir de seus desvios, como nas ditaduras e nas burocracias estatais. Estas se  formam a partir do descolamento dos representantes em relação aos representados, formando uma camada aparentemente fina que se engrossa cada vez mais com a posse do poder decisório.  Só que liberais e marxistas insistem em derivar suas reflexões de uma matriz economicista ,isto é, reduzindo o complexo problema a uma determinação econômica.

      A questão do poder é essencialmente política e o maior mérito do livrinho de Simone Weil-- "Notes sur la suppréssion genérale des partis politiques"-- consiste em apontar de maneira taxativa, radical e provocativa essa verdade negada ou escondida por muitos pensadores clássicos e modernos. Somente mudando as formas de participação, acesso e manutenção do poder é que se torna possível enfrentar os problemas de controle e fiscalização do próprio poder.

      No momento em que se discute não só como reduzir o número excessivo de partidos políticos, mas a própria reforma política exigida nas ruas pelo movimento de junho de 2013, ter em mente esses princípios indicados por Weil não significa uma adesão cega a um programa libertário. Significa , isto sim, tentar contrapor ao caos vazio da representação política atual uma forma ainda mais legítima de participação dos cidadãos nas decisões públicas.

       Quando o Brasil trouxe , por um breve instante,  a demanda de Reforma Política pela "voz das ruas", chegando-se a propor um plebiscito e uma Constituinte específica para esse fim, é mais do que urgente que se retire o poder de decisão das mãos dos maiores interessados em bloquear quaisquer mudanças -- os partidos e os políticos que os usam como meras máquinas de interesses. Os que estão no Congresso atual (e  no próximo) são os menos indicados, não por suas qualidades ou defeitos pessoais, para decidirem uma reforma. Pela simples razão de que estão na zona de conforto, onde chegaram pelos métodos tradicionais que prevalecem. Uma reforma política "vinda de fora" seria  mãe de todas as reformas.

      Em plena guerra eleitoral, quando o pensamento foi substituído pela obsessão de "tomar partido", é preciso lembrar a todos que seria interessante  ir mais fundo. E voltar a pensar -- se é que já se pensou seriamente nesse problema entre nós. Imaginar soluções de participação que não fiquem exclusivamente no troca-troca partidário, e que eliminem as distorções brutais como a enorme distância entre os representantes e seus representados.

      Talvez precisemos sair dessa atitude de  "a favor ou contra" e ouvir vozes inspiradoras como a Simone Weil, para quem essa postura se origina nos meios políticos e se estende "como uma lepra" às escolas, às artes, à religião, às ciências, através de todo e qualquer país republicano, atingindo possivelmente a totalidade do pensamento humano.

     Não é apenas utopia. A cisão paranóica da política partidária -- ou é amigo ou é inimigo-- deveria ser substituída com vantagem pela idéia de uma democracia, quem sabe, sem partidos.

     

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