quinta-feira, 21 de maio de 2015

COMO ESCREVER UM LIVRO DE AUTO-AJUDA



                  

                                                         Reinaldo Lobo*


      Você está preocupado com o desemprego e a crise econômica? Teme a destruição das leis trabalhistas e da aposentadoria pelo   "ajuste fiscal"? Não confia nada no atual Congresso? Seu chefe está pressionando para que você se torne P. J. (Pessoa Jurídica)? A mensalidade da escola de seus filhos disparou? Sua mulher vai estar em breve no novo regime do seguro-desemprego? O dinheiro falta na metade do mês?

      Fique calmo. Nem tudo está perdido. Ao contrário, você tem uma grande  chance de dar a  virada na sua vida e ainda ficar rico! Muito rico! Se está assustado com a possível demissão e muitas horas de ócio inútil, seus problemas acabaram.Tenho a fórmula definitiva de que precisa: escreva um livro de auto-ajuda!

      É fácil; e custa apenas algumas horas de energia elétrica do computador e algum papel. Aliás, se não for simples e, de preferência, bem superficial, não será um livro de auto-ajuda.

     Essa é a  primeira lição. Não faça reflexões profundas nem tenha muitas idéias. Nada de complexidade. A palavra manual deriva de mãos.  Um manual vem ,em geral, acompanhado de instruções de uso de ferramentas e de aparelhos. Você precisa só disso: algumas instruções de uso.

      Hoje em dia ninguém tem tempo. Não quer pensar muito. Faça com que as pessoas pensem apenas o que é prático e funcional.  E só um pouquinho, para que não fiquem estressadas. ( Por sinal, um manual sobre stress venderia bem, com certeza.) Nossa época é a da insignificância dos valores éticos : tudo o que funciona é bom. E só isso. O valor supremo é a eficiência que traz dinheiro.

      Antes de se dedicar a escrever, você terá de perder algum tempo lendo. Isso mesmo: leia. Sobretudo outros manuais de auto-ajuda -- nesse campo é permitido copiar, plagiar, repetir à vontade. Todos são praticamente iguais, variam só os exemplos e as metáforas.

      Um bom modelo são os norte-americanos. Traduza algum deles e disfarce o plágio com exemplos de situações brasileiras. Você vai fazer muito sucesso, aparecer na TV e dar conselhos aos incautos a preço de palestras para executivos . Ah, as palestras para executivos!...Eles adoram o que é fácil e rápido-- e precisam de motivação extra para agüentar as agruras da exploração capitalista, que são encarregados de implementar!

      As palestras são dinheiro garantido, basta que você pegue o jeito com aqueles comediantes de "stand up", além de seguir os conselhos que lhe dou aqui.

      Leia também velhos sábios chineses, do tipo Confúcio, e ditados do zen budismo japonês. Se não tiver acesso, bastam as frases dos pára-choques dos caminhões da via Dutra ou da Fernão Dias. São geniais-- para o nosso propósito, é claro.

      Ninguém resiste, porém, a um velho sábio chinês.

      Um exemplo?

      "A saída é pela porta. Por que as pessoas insistem em sair pela janela ou pela chaminé?"

       Percebeu a profundidade disso? É algo que vem lá do fundo, como uma afta!  Nem o Conselheiro Acácio nem um amanuense de Machado de Assis seriam capazes de tamanha sabedoria.

      Os manuais de auto-ajuda brasileiros exigem uma pitada de religiosidade e de espiritualidade. Pega bem. Nosso povo é muito religioso. Há um exitoso escritor nacional que propaga ter vendido 20 milhões de exemplares no mundo todo, sobretudo com a promoção de Jesus Cristo a autor de auto-ajuda, o maior de todos eles-- segundo diz nosso herói. Nesse caso, a fonte plagiada foi a Bíblia. Mas essa pode, não é verdade? Todo mundo cita!

       A linguagem de um manual é muito importante. Fale direto com o leitor, fique íntimo dele, como estou tentando fazer com você. Dirija-se aos seus problemas mais genéricos e indique , de forma bem humorada, uma solução mágica para eles, igualmente genérica. Explore o narcisismo, o individualismo e o espírito competitivo do leitor. É sucesso garantido na sociedade espetaculosa e exibicionista em que vivemos hoje.

     Use também as metáforas e exemplos da vida cotidiana, como faria um sábio chinês daquele tipo que citei antes. Fale da irritação do leitor por não ter dinheiro como se fosse uma espécie de engarrafamento no trânsito, algo difícil, mas banal e fácil de superar. Basta não bater o carro e achar um caminho alternativo. Qualquer um! Mas, principalmente, dê esperança de que tudo tem uma solução.

     Seja otimista, critique o próximo, não o leitor, e não deixe de dizer que tudo não passa de um problema de atitude  e de falta de  vontade. Se  você mobilizar  esses dois comportamentos, como acontece em todo manual de auto-ajuda, tudo vai-se resolver e você será rico e feliz. Pode não acontecer na realidade, mas nos manuais , em  todos eles, tudo dá certo no final.

     Caso não consiga essa força de vontade para escrever como sugiro, não perca as esperanças : terceirize. Hoje está na moda terceirizar qualquer atividade. Chame alguém para escrever por você, um P.J. desses que se multiplicam por aí. Exija confidencialidade e vá ganhar dinheiro , ficar rico! Você merece!

quinta-feira, 7 de maio de 2015

O MEDO DO OUTRO


 

                                                             Reinaldo Lobo*

 

         Já se tornou um lugar comum, quase um clichê contemporâneo, falarmos da estranheza em relação ao outro. E lamentá-la.

         O estranho, o estrangeiro, o "bárbaro", o que não reza pela nossa cartilha, o que não fala a mesma língua, o portador da alteridade "esquisita", o misterioso, o de outra cor , o de raça diferente, o "inferior", o "sujo", o bruto, o ignorante, o pobre, o favelado, o bandido, o grupo "superior", o "modelo" do colonizador, o invejado, o mais "belo", "o "feio", o deficiente, o de comportamentos "desviantes", o diverso, o  invertido, o travestido, o transgêneros, o que não tem juízo nem nunca terá.

         Sempre existiu o "outro". O racismo quase faz parte da afirmação da própria identidade de muitos povos, como se precisassem sempre de uma referência negativa para se constituírem.  Os símbolos da diferença estão em todas as culturas.O culto da dicotomia amigo-inimigo também.

        Por que, então, hoje esse tema do resgate do "outro" está tão presente entre nós? Por qual razão se tornou tão moderno e atual?

         Uma das possíveis razões dessa contemporaneidade do problema das diferenças, ao ponto de existirem até "filosofias da diferença" há algumas décadas, está no medo gerado pela internacionalização da economia, até há pouco chamada de "globalização".

        A utopia decorrente da circulação do capital financeiro e da abertura mundial de mercados proclamava que teríamos uma queda das fronteiras, uma generalização cultural e a livre troca de pessoas, de trabalho e de bens. A fantasia neoliberal alimentou essa utopia até onde era possível nas décadas de  80 e 90. O ex-presidente norte-americano Bill Clinton tocava em seu saxofone o hino à mundialização e os discursos meritocráticos selecionavam os países dignos de participar do bravo mundo novo. Nosso perspicaz FHC, apoiado no guarda chuva protetor norte-americano, não hesitou em dizer: "Esqueçam a África". E a África foi esquecida, pelo menos até que surgiram, há pouco , os BRICs e uma nova política dos emergentes, Sul-Sul.

          A utopia neoliberal começou a ruir em 2001, quando ocorreu o atentado às Torres Gêmeas. Muitos ainda vêem essa tragédia apenas como um evento randômico, aleatório, ou como o resultado da inveja de terroristas pobres ou da maldade de sujeitos vindos das Trevas medievais do Oriente. Isto é, como a maldade do outro.    

         Passou quase despercebido que o atentado foi altamente sofisticado, envolvendo técnicos e engenheiros, usando a tecnologia mais avançada ocidental. Não tinha nada de medieval, talvez só a crença em uma interpretação arcaica do Islamismo. Também escapou à atenção de muitos que, em grande parte, o atentado era uma reação a um fenômeno predominantemente norte-americano -- a tal globalização. Ela prometia nivelar todas as culturas, impor uma religião comum -- a cristã--  em escala universal, liquidar com as singularidades culturais e regionais, matar o "lar" de muita gente e promover a "livre circulação" entre os países.

        O singular e o regional resistiram à homogeneização,  de forma violenta. À insegurança da internacionalização foram contra-postos o medo e a instabilidade da circulação dos cidadãos ditos ocidentais. A qualquer momento, o terror pode voltar.

         Aqui no Brasil, também já se tornou lugar-comum a afirmação de que as classes dirigentes vivem com medo, muradas atrás de condomínios e de forças policiais violentas e repressivas,  das quais a PM do Paraná é apenas um aperitivo do que ocorre com pobres e negros nas ruas das periferias das grandes cidades,  no campo e nas prisões.

        O medo tem sua utilidade. Se é verdade que constitui uma espécie de antecipação do que poderá ocorrer, uma defesa diante de uma expectativa de catástrofe ou de violência a ser sofrida, também é fato que se referir ao medo significa falar dos nossos projetos, do nosso futuro e da esperança de um porvir. Mesmo que se reporte a experiências localizadas supostamente no passado, o nosso medo visa tudo ao que põe em risco no futuro o que nos daria bem-estar e prazer.

      O sujeito humano, para Freud se definia basicamente pelo terror. Seu mundo interno se desenvolve num meio ambiente próximo ao estado de guerra, não tanto por combates com terroristas ou bandos de criminosos.  A criança pequena cresce em meio ao perigo de perder o amor dos pais, sua proteção, em face de seus próprios impulsos e de um mundo pouco hospitaleiro. Sua luta pela sobrevivência ainda enfrenta a repressão civilizatória e a necessidade de socialização.

      Ao longo da vida, o pequeno animal humano terá que assimilar regras éticas, estratégias para não sucumbir à maldade, violência e malícia do mundo social. O medo faz parte e o protege na medida do possível, mas sempre haverá a busca por uma estabilidade ambiental interna e externa, por mínimas que sejam.

    Quando a sociedade impõe um "a mais"  (um plus) de violência à precária segurança do sujeito humano, uma das respostas possíveis consiste em projetar no outro, até por identificação, os próprios impulsos assassinos e partes sinistras recalcadas da própria subjetividade. Daí, partir para a discriminação ou a guerra é apenas um passo.

    A aceitação do outro-- cantada em prosa e verso tanto pelos cristãos, judeus, budistas, muçulmanos e outros, passando por Lévinas, Habermas, Castoriadis e as filosofias atuais da compreensão da diferença--,  é uma conquista ultra sofisticada do ser humano. Nem sempre passa pela realidade da política ou da PM do Paraná, pelas forças militares norte-americanas, israelenses ou pelos jihadistas de plantão, ainda que hoje freqüente muitos discursos bonitos na ONU e nas gazetas.