quinta-feira, 7 de maio de 2015

O MEDO DO OUTRO


 

                                                             Reinaldo Lobo*

 

         Já se tornou um lugar comum, quase um clichê contemporâneo, falarmos da estranheza em relação ao outro. E lamentá-la.

         O estranho, o estrangeiro, o "bárbaro", o que não reza pela nossa cartilha, o que não fala a mesma língua, o portador da alteridade "esquisita", o misterioso, o de outra cor , o de raça diferente, o "inferior", o "sujo", o bruto, o ignorante, o pobre, o favelado, o bandido, o grupo "superior", o "modelo" do colonizador, o invejado, o mais "belo", "o "feio", o deficiente, o de comportamentos "desviantes", o diverso, o  invertido, o travestido, o transgêneros, o que não tem juízo nem nunca terá.

         Sempre existiu o "outro". O racismo quase faz parte da afirmação da própria identidade de muitos povos, como se precisassem sempre de uma referência negativa para se constituírem.  Os símbolos da diferença estão em todas as culturas.O culto da dicotomia amigo-inimigo também.

        Por que, então, hoje esse tema do resgate do "outro" está tão presente entre nós? Por qual razão se tornou tão moderno e atual?

         Uma das possíveis razões dessa contemporaneidade do problema das diferenças, ao ponto de existirem até "filosofias da diferença" há algumas décadas, está no medo gerado pela internacionalização da economia, até há pouco chamada de "globalização".

        A utopia decorrente da circulação do capital financeiro e da abertura mundial de mercados proclamava que teríamos uma queda das fronteiras, uma generalização cultural e a livre troca de pessoas, de trabalho e de bens. A fantasia neoliberal alimentou essa utopia até onde era possível nas décadas de  80 e 90. O ex-presidente norte-americano Bill Clinton tocava em seu saxofone o hino à mundialização e os discursos meritocráticos selecionavam os países dignos de participar do bravo mundo novo. Nosso perspicaz FHC, apoiado no guarda chuva protetor norte-americano, não hesitou em dizer: "Esqueçam a África". E a África foi esquecida, pelo menos até que surgiram, há pouco , os BRICs e uma nova política dos emergentes, Sul-Sul.

          A utopia neoliberal começou a ruir em 2001, quando ocorreu o atentado às Torres Gêmeas. Muitos ainda vêem essa tragédia apenas como um evento randômico, aleatório, ou como o resultado da inveja de terroristas pobres ou da maldade de sujeitos vindos das Trevas medievais do Oriente. Isto é, como a maldade do outro.    

         Passou quase despercebido que o atentado foi altamente sofisticado, envolvendo técnicos e engenheiros, usando a tecnologia mais avançada ocidental. Não tinha nada de medieval, talvez só a crença em uma interpretação arcaica do Islamismo. Também escapou à atenção de muitos que, em grande parte, o atentado era uma reação a um fenômeno predominantemente norte-americano -- a tal globalização. Ela prometia nivelar todas as culturas, impor uma religião comum -- a cristã--  em escala universal, liquidar com as singularidades culturais e regionais, matar o "lar" de muita gente e promover a "livre circulação" entre os países.

        O singular e o regional resistiram à homogeneização,  de forma violenta. À insegurança da internacionalização foram contra-postos o medo e a instabilidade da circulação dos cidadãos ditos ocidentais. A qualquer momento, o terror pode voltar.

         Aqui no Brasil, também já se tornou lugar-comum a afirmação de que as classes dirigentes vivem com medo, muradas atrás de condomínios e de forças policiais violentas e repressivas,  das quais a PM do Paraná é apenas um aperitivo do que ocorre com pobres e negros nas ruas das periferias das grandes cidades,  no campo e nas prisões.

        O medo tem sua utilidade. Se é verdade que constitui uma espécie de antecipação do que poderá ocorrer, uma defesa diante de uma expectativa de catástrofe ou de violência a ser sofrida, também é fato que se referir ao medo significa falar dos nossos projetos, do nosso futuro e da esperança de um porvir. Mesmo que se reporte a experiências localizadas supostamente no passado, o nosso medo visa tudo ao que põe em risco no futuro o que nos daria bem-estar e prazer.

      O sujeito humano, para Freud se definia basicamente pelo terror. Seu mundo interno se desenvolve num meio ambiente próximo ao estado de guerra, não tanto por combates com terroristas ou bandos de criminosos.  A criança pequena cresce em meio ao perigo de perder o amor dos pais, sua proteção, em face de seus próprios impulsos e de um mundo pouco hospitaleiro. Sua luta pela sobrevivência ainda enfrenta a repressão civilizatória e a necessidade de socialização.

      Ao longo da vida, o pequeno animal humano terá que assimilar regras éticas, estratégias para não sucumbir à maldade, violência e malícia do mundo social. O medo faz parte e o protege na medida do possível, mas sempre haverá a busca por uma estabilidade ambiental interna e externa, por mínimas que sejam.

    Quando a sociedade impõe um "a mais"  (um plus) de violência à precária segurança do sujeito humano, uma das respostas possíveis consiste em projetar no outro, até por identificação, os próprios impulsos assassinos e partes sinistras recalcadas da própria subjetividade. Daí, partir para a discriminação ou a guerra é apenas um passo.

    A aceitação do outro-- cantada em prosa e verso tanto pelos cristãos, judeus, budistas, muçulmanos e outros, passando por Lévinas, Habermas, Castoriadis e as filosofias atuais da compreensão da diferença--,  é uma conquista ultra sofisticada do ser humano. Nem sempre passa pela realidade da política ou da PM do Paraná, pelas forças militares norte-americanas, israelenses ou pelos jihadistas de plantão, ainda que hoje freqüente muitos discursos bonitos na ONU e nas gazetas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário