Reinaldo Lobo*
Já se tornou um lugar comum, quase um
clichê contemporâneo, falarmos da estranheza em relação ao outro. E lamentá-la.
O estranho, o estrangeiro, o
"bárbaro", o que não reza pela nossa cartilha, o que não fala a mesma
língua, o portador da alteridade "esquisita", o misterioso, o de
outra cor , o de raça diferente, o "inferior", o "sujo", o
bruto, o ignorante, o pobre, o favelado, o bandido, o grupo
"superior", o "modelo" do colonizador, o invejado, o mais
"belo", "o "feio", o deficiente, o de comportamentos "desviantes",
o diverso, o invertido, o travestido, o
transgêneros, o que não tem juízo nem nunca terá.
Sempre existiu o "outro". O
racismo quase faz parte da afirmação da própria identidade de muitos povos,
como se precisassem sempre de uma referência negativa para se constituírem. Os símbolos da diferença estão em todas as
culturas.O culto da dicotomia amigo-inimigo também.
Por que, então, hoje esse tema do
resgate do "outro" está tão presente entre nós? Por qual razão se
tornou tão moderno e atual?
Uma das possíveis razões dessa
contemporaneidade do problema das diferenças, ao ponto de existirem até
"filosofias da diferença" há algumas décadas, está no medo gerado
pela internacionalização da economia, até há pouco chamada de
"globalização".
A utopia decorrente da circulação do
capital financeiro e da abertura mundial de mercados proclamava que teríamos
uma queda das fronteiras, uma generalização cultural e a livre troca de
pessoas, de trabalho e de bens. A fantasia neoliberal alimentou essa utopia até
onde era possível nas décadas de 80 e
90. O ex-presidente norte-americano Bill Clinton tocava em seu saxofone o hino
à mundialização e os discursos meritocráticos selecionavam os países dignos de
participar do bravo mundo novo. Nosso perspicaz FHC, apoiado no guarda chuva
protetor norte-americano, não hesitou em dizer: "Esqueçam a África".
E a África foi esquecida, pelo menos até que surgiram, há pouco , os BRICs e
uma nova política dos emergentes, Sul-Sul.
A utopia neoliberal começou a ruir em
2001, quando ocorreu o atentado às Torres Gêmeas. Muitos ainda vêem essa tragédia
apenas como um evento randômico, aleatório, ou como o resultado da inveja de
terroristas pobres ou da maldade de sujeitos vindos das Trevas medievais do
Oriente. Isto é, como a maldade do outro.
Passou quase despercebido que o
atentado foi altamente sofisticado, envolvendo técnicos e engenheiros, usando a
tecnologia mais avançada ocidental. Não tinha nada de medieval, talvez só a
crença em uma interpretação arcaica do Islamismo. Também escapou à atenção de
muitos que, em grande parte, o atentado era uma reação a um fenômeno
predominantemente norte-americano -- a tal globalização. Ela prometia nivelar
todas as culturas, impor uma religião comum -- a cristã-- em escala universal, liquidar com as
singularidades culturais e regionais, matar o "lar" de muita gente e
promover a "livre circulação" entre os países.
O singular e o regional resistiram à
homogeneização, de forma violenta. À
insegurança da internacionalização foram contra-postos o medo e a instabilidade
da circulação dos cidadãos ditos ocidentais. A qualquer momento, o terror pode
voltar.
Aqui no Brasil, também já se tornou
lugar-comum a afirmação de que as classes dirigentes vivem com medo, muradas
atrás de condomínios e de forças policiais violentas e repressivas, das quais a PM do Paraná é apenas um
aperitivo do que ocorre com pobres e negros nas ruas das periferias das grandes
cidades, no campo e nas prisões.
O medo tem sua utilidade. Se é verdade
que constitui uma espécie de antecipação do que poderá ocorrer, uma defesa
diante de uma expectativa de catástrofe ou de violência a ser sofrida, também é
fato que se referir ao medo significa falar dos nossos projetos, do nosso
futuro e da esperança de um porvir. Mesmo que se reporte a experiências
localizadas supostamente no passado, o nosso medo visa tudo ao que põe em risco
no futuro o que nos daria bem-estar e prazer.
O sujeito humano, para Freud se definia
basicamente pelo terror. Seu mundo interno se desenvolve num meio ambiente
próximo ao estado de guerra, não tanto por combates com terroristas ou bandos
de criminosos. A criança pequena cresce
em meio ao perigo de perder o amor dos pais, sua proteção, em face de seus
próprios impulsos e de um mundo pouco hospitaleiro. Sua luta pela sobrevivência
ainda enfrenta a repressão civilizatória e a necessidade de socialização.
Ao
longo da vida, o pequeno animal humano terá que assimilar regras éticas,
estratégias para não sucumbir à maldade, violência e malícia do mundo social. O
medo faz parte e o protege na medida do possível, mas sempre haverá a busca por
uma estabilidade ambiental interna e externa, por mínimas que sejam.
Quando a sociedade impõe um "a mais" (um plus) de violência à precária segurança
do sujeito humano, uma das respostas possíveis consiste em projetar no outro,
até por identificação, os próprios impulsos assassinos e partes sinistras
recalcadas da própria subjetividade. Daí, partir para a discriminação ou a
guerra é apenas um passo.
A aceitação do outro-- cantada em prosa e
verso tanto pelos cristãos, judeus, budistas, muçulmanos e outros, passando por
Lévinas, Habermas, Castoriadis e as filosofias atuais da compreensão da
diferença--, é uma conquista ultra
sofisticada do ser humano. Nem sempre passa pela realidade da política ou da PM
do Paraná, pelas forças militares norte-americanas, israelenses ou pelos
jihadistas de plantão, ainda que hoje freqüente muitos discursos bonitos na ONU
e nas gazetas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário