Reinaldo Lobo*
Certa vez, o coronel Erasmo Dias, ícone
da Ditadura e símbolo do anti-comunismo, foi visitar a Rússia nos tempos do
regime soviético. Muitos ficaram surpresos, primeiro, por ele aceitar o convite
russo e, depois, pelos seus comentários na volta da viagem. O coronel do
Exército, secretário de Segurança Pública de SP, repressor das manifestações estudantis,
invasor violento da PUC, caçador fracassado de guerrilheiros no Vale do Ribeira,
torturador confesso, terror dos comunistas, fez rasgados elogios à antiga URSS e ao seu sistema de poder:
"Lá não tem greves, impera a ordem,
há disciplina, os trabalhadores não se rebelam, os governantes são obedecidos e
a violação da Lei é punida com o máximo
rigor. Acho um exemplo para os ocidentais".
Se era ironia, foi involuntária. O coronel
pouco sutil pareceu mesmo encantado com o poder comunista, mais pelos seus
defeitos totalitários do que por suas possíveis qualidades.
O que ele detestava mesmo era a democracia, suas incertezas e suas
inseguranças.
As
classes dirigentes brasileiras, das quais o coronel era um representante
extremado, parecem ter uma relação, no mínimo, ambivalente com o regime
democrático, isto é, de amor e de ódio. Parece haver sobretudo uma paixão pela
ordem, de preferência com "progresso" econômico. É uma nostalgia da noção autoritária que
Oliveira Vianna e outros atribuíam às necessidades impostas pelo
"caráter" do povo brasileiro. Não é por acaso que nossa História
apresenta uma constante de autoritarismo pontilhada por alguns momentos de
democracia.
Daí o paradoxo de termos também, ao lado
do elogio à democracia e da crítica verbal do totalitarismo na mídia, o
freqüente recurso à força, ao Estado de Sítio e de exceção, além da
sobrevivência, hoje, de instrumentos da Ditadura como a PM, o pau de arara e as
várias formas de delação, inclusive a "premiada", típicas de regimes
"fortes".
Se alguém imaginava que, terminada a
Ditadura, teríamos uma democracia plena, acertou em parte. Temos agora quase
três décadas de regime democrático no País, sempre claudicante, com limites e
problemas óbvios, mas com instituições relativamente sólidas.
Existe no ar, contudo, uma espécie de
tentação totalitária entre as classes dirigentes e mesmo as classes médias, com
a emergência de uma Nova Direita que se misturou às manifestações populares de
2013. Somada aos resíduos da Ditadura que permanecem nos hábitos e até em
determinados itens da legislação --como as medidas provisórias e um congresso
de perfil ultra- conservador nos segmentos religiosos fundamentalistas--, essa
tentação pode materializar-se em perigo real e imediato.
A ideologia instituída e as pregações
são democráticas, mas as realidades,
inclusive a derivada da crise econômica, pressionam as classes dirigentes na
direção daquilo que Giorgio Agamben diagnosticou como o lado não formulado
juridicamente no Ocidente, que é o estado de exceção.
É como se democracia brasileira exigisse um
"suplemento de força", pois, em si mesma , não garantiria sequer a
sua própria continuidade como ordem democrática.
As próprias práticas jurídicas levadas a
cabo pelo ex-ministro do Supremo, Joaquim Barbosa, revelam esse ânimo
beligerante de transcender o âmbito da Lei para usar "mão forte"
contra a suposta ação de corruptos, resgatando até um velho recurso alemão usado em Nuremberg, em 1945, para
imputar os nazistas -- o conceito judicial do "domínio do fato"-- com
fins políticos. O mesmo vale para o juiz Sérgio Moro, atual herói da ação
exemplar no julgamento da "operação Lava Jato". É como se os caminhos
legais de uma democracia "frágil" precisassem ser complementados por
uma interpretação particular da Lei, por juristas de visão politizada e relativamente autoritária.
No quadro mundial, a situação não é
muito diferente, ainda que existam especificidades. Um conhecido filósofo
francês , Jacques Rancière, publicou um pequeno livro instigante-- "La
Haine de la Democratie"-- em que discute a questão, lembrando que ainda
ontem os discursos oficiais opunham as virtudes da democracia ao horror
totalitário, ao mesmo tempo em que revolucionários recusavam sua aparência em
nome de uma democracia real a vir no futuro.
Os tempos mudaram. Enquanto certos
governos se esforçam em exportar a democracia pela força das armas, os
intelectuais europeus e norte-americanos -- alguns de esquerda e outros
"novos conservadores" -- não param de detectar sem cessar os sintomas
funestos do "individualismo democrático" e os estragos do
"igualitarismo" destrutivo dos valores coletivos, forjando um novo
totalitarismo e conduzindo a humanidade ao suicídio.
Essa mutação ideológica, diz Rancière, não
se explica só pelo quadro de crise econômica nem pela administração mundial da
riqueza. Remonta ao escândalo primordial que sempre representou um
"governo do povo" e será preciso reexaminar as ligações complexas
entre democracia, representação, república e política. Dessa maneira é que se
tornará possível enfrentar o ódio atual à democracia e resgatar o amor por trás
das declarações de amor a ela. Significa revelar a potência subversiva sempre
nova e sempre ameaçada da idéia de
democracia.