Reinaldo Lobo*
Seria altamente recomendável que todo
estudante de Ciência Política do planeta fizesse um estágio no Brasil.
Treinaria melhor do que em qualquer outro lugar a pesquisa científica em meio à
maior confusão real de uma política imaginária. Entenderia também um pouco de
estética e saberia o significado das palavras surrealismo e realismo mágico. E,
finalmente, cairia na real.
Aprenderia por que nossa opinião pública
acha "natural", por cinismo e cansaço, ter uma personagem como
Eduardo Cunha ditando as regras na Câmara dos Deputados, mudando a
constituição, passando por cima de cláusulas pétreas e realizando
"hábeis" manobras de última hora para aprovar leis que só facilitam o
corporativismo dos políticos, a corrupção e os maus costumes.O sujeito chegou a
propor pensão especial para as esposas dos parlamentares, passagens de graça e
outras mordomias, sem que a imprensa "falada e escrita" deixasse de
elogiá-lo como um "político habilidoso" ou de silenciar, abafando os
fatos. E, isso, justamente num momento
em que há uma onda moralista em todo o País.
Nosso estudante virtual de Ciência
Política, se fosse esperto, descobriria que Eduardo Cunha virou herói da mídia
e das classes dirigentes nacionais porque tem duas funções específicas e
temporárias : (1.) atazanar a vida da presidente Dilma e (2.) fazer o serviço sujo que os líderes e
representantes das classes dirigentes não podem ou temem fazer.
Seria difícil entender como é que um membro do partido (PMDB) que integra a
coligação da base governista se tornou um oposicionista ao governo, mas tudo se
esclareceria se verificasse que os deputados e senadores brasileiros não
respeitam necessariamente seus partidos e alianças, exceto quando convém. Isso
ocorre não só porque o eleitorado escolhe pessoas, não partidos -- o que é uma
verdade. Mas a razão principal é que cada deputado ou senador representa um
bloco de interesses como se fossem lobistas de empresas e não parlamentares. É
a turma do balcão de negócios.
Quanto ao deputado Cunha, símbolo do
momento brasileiro atual, mereceria um estudo à parte. Faz um jogo triplo:
defende, no plano mais imediato, o "baixo clero" -- os deputados mais
irrisórios e medíocres do Congresso, que o elegeram para o cargo em troca de
dinheiro e promessas de mordomias. Em
segundo lugar, joga para a oposição de direita, sua função primordial, que
consiste em fazer passar uma legislação que tire direitos dos trabalhadores e
favoreça o empresariado. Em terceiro, chantageia o governo, que cede cargos e
vantagens para o seu grupo , afim de não dissolver demais a base governista.
Um cientista político vindo da Europa,
onde existe parlamentarismo, teria dificuldade de entender essas contradições,
que formam a essência de um presidencialismo de coalizão-- isto é, de trocas e
cambalachos por debaixo do pano, sem acordo político explícito entre partidos.
Já era complicado nos tempos de Sarney, Itamar,Collor e FHC, mas o quadro se agrava hoje, quando o governo inclui até
pontos-de-vista da oposição na sua gestão.
É quase impossível compreender por que um governo como o da presidente Dilma,
eleito pela esquerda e com um programa social distributivista, chamou uma
espécie de gestor de mercado, Joaquim Levy, para exercer os ajustes fiscais e cortes no
orçamento, inaugurando a "austeridade" e a revisão das leis
trabalhistas. Até mesmo a Direita Nacional se pergunta o que faz o tecnocrata
Levy num governo "de esquerda".
A complexa dialética do governo Dilma é
inexplicável até certo ponto; no entanto, algo faz sentido quando se pensa na
fraqueza interna da coalizão que o sustenta e no recuo presidencial diante de
sua própria fragilidade eleitoral. O PT ganhou a eleição para a presidência, é
verdade, mas quase não levou. Foi tamanha a pressão do eleitorado oposicionista--
cuja dificuldade de fazer o luto pela derrota temos assinalado aqui há muito
tempo--, que Dilma foi encurralada e forçada a fazer grandes concessões. O
anti-comunismo artificial e as denúncias de corrupção armaram um clima de
derrota para os vitoriosos. Mal
comparando, diante da ameaça de um golpe "legal", como aquele do
Paraguai, Dilma foi obrigada a adotar uma atitude semelhante à que João
Goulart se rendeu em 1961, quando os
militares queriam sua cabeça. Ele recuou aceitando uma solução de
compromisso parlamentarista, aceitando
um político submisso às classes dirigentes, Tancredo Neves, na função de
primeiro ministro.
Hoje, esse papel está dividido entre
Michel Temer, Eduardo Cunha, Renan Calheiros e o próprio Joaquim Levy, que faz
o trabalho "técnico" para as classe dominantes. O governo foi
"terceirizado" para a fina flor do Sistema Corrupto, por um lado, e ,
por outro, para a própria oposição de centro direita.
Confuso? Opaco? Sem dúvida. O estudante
de ciência política precisaria saber que o Brasil é assim . O que vigora no
final é o acordo pelo alto, entre os figurões do poder e do dinheiro.
A mídia dos grupos dominantes se encarrega de
enaltecer quem interessa, de esconder a
corrupção dos poderosos de sempre e de enfraquecer quem pode ameaçar o Sistema.
Aliás, para a imprensa dominante não existem classes sociais no País, apenas
frações de mercado. E o Norte e Nordeste não existem: se inauguram uma grande
montadora de automóveis e um estaleiro em Pernambuco, que lança dois navios
enormes de fabricação nacional, a grande imprensa paulista e carioca limita-se a
lamentar a crise econômica "sem precedentes". O Nordeste mudou, mas
continua invisível. O Brasil está mudando, mas ninguém quer notar.
Como se vê , o Brasil é um vasto campo a
ser melhor decifrado pela pesquisa, não
só em muitas teses. Daria vários
compêndios de Ciência Política.
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