" O mundo--não somente o nosso-- está fragmentado.
Contudo, não cai em pedaços. Refletir sobre isso me parece uma das primeiras tarefas da filosofia hoje".
Cornelius Castoriadis
(Paris- 1989)
terça-feira, 15 de setembro de 2015
FUTILIDADE
Reinaldo Lobo*
O novo filme em cartaz de Woody
Allen, "O Homem Irracional", é sobre
alguém que tem o sentimento de que sua vida não tem sentido. Perdeu o
significado ("meaningless") ou nunca teve. Uma pessoa sente que sua vida é sem espontaneidade, surpresas, alegria genuína, esperança e criatividade. Há algo de falso nela, mas
não sabe bem o quê, nem a razão.
A personagem chega a um ponto
crítico em que não é mais possível o auto-engano, a mentira ou o disfarce. O desespero
se instala. É como se essa pessoa não existisse "realmente". Há um
enorme vazio, um tédio e a sensação de que tudo é fútil. Parece que perdeu
tudo, exceto a lucidez. Surge a dúvida: a única saída seria o suicídio?
Ocorre, então, uma virada
espetacular, provocada por uma contingência fortuita, como em quase todos os
filmes de Allen. O professor, cuja história é narrada por uma aluna predileta, descobre um meio de recobrar alguma alegria de
viver, mas é uma tentativa forçada, igualmente falsa e artificial. Uma saída
eufórica, excitada. Algo que se chama, em psiquiatria, de hipo-maníaca. De novo,
o acaso vai operar e um acidente contingencial põe fim a essa tentativa.
Há um dilema ético no filme, também
recorrente nessa filmografia. A questão é do tipo "crime e castigo".
Aliás, Dostoievsky é citado explicitamente.
Existe igualmente um fino humor nas aventuras do professor de filosofia
perdido e de sua aluna apaixonada e empolgada, mas não ao ponto de perder um
saudável ceticismo, o seu senso ético e uma inteligência sagaz.
Esse dilema moral e o humor não são,
porém, os pontos que gostaria de
destacar nesta obra brilhante de Allen, pois afinal são ângulos freqüentes em
muitas de suas outras, assim como o jogo do acaso e do destino, presente de
forma genial em "Match Point" em " Blue Jasmine".
Chamo a atenção para o sentimento de
futilidade existencial e para o sentimento de irrealidade da personagem
central, o professor de filosofia atrapalhado. Do ponto de vista psicanalítico,
o filme descreve de forma inteligente e sutil uma grave distorção do Eu, que é
uma formação defensiva global da personalidade do tipo "como se" ou
"Falso Si Mesmo (Self)".
Não há na história um "diagnóstico"
nem um tratamento "clínico", mas o assunto está lá, e bem
expresso. Também não é surpresa haver psicanálise num
filme de Allen e o modo como a ilustra é muito claro e bem feito.
A sutileza e a precisão do diretor do
filme não é acidental, uma vez que toda a sua obra, com raras exceções, tem uma
qualidade auto-reflexiva e de apreensão dos fenômenos psíquicos inspirada pela
psicanálise.
Allen mostra a psicanálise de um ponto de
vista...psicanalítico. Já contou inúmeras vezes em entrevistas que fez análise
pessoal por trinta anos. Piadas à parte, disse ainda que , apesar de tanta
análise com os melhores profissionais "freudianos" de Nova York,
precisou do cinema -- da sua arte-- para tocar em alguns pontos intocados de
sua própria análise.
Não ouso dizer que o filme "O Homem
Irracional" é autobiográfico, porque não sei se é. Não há como ter
certeza, pois nós, espectadores, não tivemos acesso à análise pessoal de Allen.
Não será que todos são autobiográficos? Além disso, esse detalhe é quase
irrelevante. Seria ainda mais irrelevante se ele mesmo não tivesse tocado no
assunto de que alguns pontos de sua análise pessoal permaneceram intocados, o
que é muito comum em muitas análises clássicas.
O
interessante nesse filme é como capta esteticamente e expressa um detalhe
particular da condição humana. O fenômeno do sentimento de futilidade
decorrente da existência de um "falso self" é muito específico.
Escapa à escuta e à sensibilidade de muitos analistas, acostumados com os
diagnósticos de neurose, psicose, "border lines", etc. Além disso, é
preciso dizer que futilidade, aqui, não se refere, como diz o senso comum, à "superficialidade
social" de algumas pessoas, ainda
que essa possa ser uma conseqüência
freqüente do "falso self".
A futilidade em questão é -- "tecnicamente",
digamos -- um sinal da presença de um "falso si mesmo" e o fracasso
da defesa armada para esconder um "verdadeiro si mesmo", cindido,
recolhido e ignorado pela própria pessoa. O falso self ajuda alguém a se
adaptar ao meio ambiente, quando está dividido entre um núcleo verdadeiro,
silencioso, e uma área visível explícita, relativamente adaptada..
Não
é um teatro consciente que um ser humano monta, mas uma operação inconsciente destinada
a proteger uma intimidade desconhecida
das ameaças ambientais e poder funcionar
na vida. A criança pequena teme
mostrar-se inteiramente à mãe ou aos pais e,para isso, esconde seu núcleo mais
verdadeiro, a fim de garantir a proteção e o amor parentais. O "verdadeiro
self" fica guardado para ser -- um dia-- vivido e utilizado. Muitas vezes,
forma-se uma camada de intelectualização e um estilo de vida para proteger
cuidadosamente a área mais secreta e autêntica de um ser humano.
A personagem do professor-filósofo de
Woody Allen funcionava muito bem na vida de superfície e na área intelectual.
Era um acadêmico bem sucedido com trabalhos publicados, prêmios, histórias de
aventuras e lendas. Seu carisma dando aulas era elogiado e seu desempenho, tido
como brilhante. No entanto, faltava-lhe uma consistência existencial, falta
sentida na crise só por ele mesmo, mas que acaba afetando todos ao seu redor.
Seu brilho era "fake", em relação a um núcleo que poderia ser vivo e
criativo na transgressão.
Quando se fala de "falso" e
"verdadeiro", aqui, não significa atribuir nenhuma conotação de
valor. Mas pode aproximar-se do que chamamos de "inautêntico" e
"autêntico". O "verdadeiro self" é o que vem de dentro, do
mais intimo do ser humano. Muitas vezes, a autenticidade só aparece na crise de
identidade ou na transgressão. E nada melhor do que a arte para desvelar o que
há de transgressivo e verdadeiro no ser humano.
Vejam esse filme, vale a pena. Pode
despertar o mais estranho, secreto e revelador dentro de todos nós.
Assinar:
Postagens (Atom)