terça-feira, 15 de setembro de 2015

FUTILIDADE

                                          

                                                      Reinaldo Lobo*

            O novo filme em cartaz de Woody Allen, "O Homem Irracional", é sobre  alguém que tem o sentimento de que sua vida não tem sentido. Perdeu o significado ("meaningless") ou nunca teve. Uma pessoa sente que sua vida é sem espontaneidade, surpresas, alegria genuína, esperança e criatividade. Há algo de falso  nela, mas não sabe bem o quê, nem a razão.
            A personagem chega a um ponto crítico em que não é mais possível o auto-engano, a mentira ou o disfarce. O desespero se instala. É como se essa pessoa não existisse "realmente". Há um enorme vazio, um tédio e a sensação de que tudo é fútil. Parece que perdeu tudo, exceto a lucidez. Surge a dúvida: a única saída seria o suicídio?
          Ocorre, então, uma virada espetacular, provocada por uma contingência fortuita, como em quase todos os filmes de Allen. O professor, cuja história é narrada por uma aluna predileta,  descobre um meio de recobrar alguma alegria de viver, mas é uma tentativa forçada, igualmente falsa e artificial. Uma saída eufórica, excitada. Algo que se chama, em psiquiatria, de hipo-maníaca. De novo, o acaso vai operar e um acidente contingencial põe fim a essa tentativa.
          Há um dilema ético no filme, também recorrente nessa filmografia. A questão é do tipo "crime e castigo". Aliás, Dostoievsky é citado explicitamente.  Existe igualmente um fino humor nas aventuras do professor de filosofia perdido e de sua aluna apaixonada e empolgada, mas não ao ponto de perder um saudável ceticismo, o seu senso ético e uma inteligência sagaz.
        Esse dilema moral e o humor não são, porém,  os pontos que gostaria de destacar nesta obra brilhante de Allen, pois afinal são ângulos freqüentes em muitas de suas outras, assim como o jogo do acaso e do destino, presente de forma genial em "Match Point" em " Blue Jasmine".
       Chamo a atenção para o sentimento de futilidade existencial e para o sentimento de irrealidade da personagem central, o professor de filosofia atrapalhado. Do ponto de vista psicanalítico, o filme descreve de forma inteligente e sutil uma grave distorção do Eu, que é uma formação defensiva global da personalidade do tipo "como se" ou "Falso Si Mesmo (Self)".
      Não há na história um "diagnóstico" nem um tratamento "clínico", mas o assunto está lá, e bem expresso.   Também não é surpresa haver psicanálise num filme de Allen e o modo como a ilustra é muito claro e bem feito.
       A sutileza e a precisão do diretor do filme não é acidental, uma vez que toda a sua obra, com raras exceções, tem uma qualidade auto-reflexiva e de apreensão dos fenômenos psíquicos inspirada pela psicanálise.
     Allen mostra a psicanálise de um ponto de vista...psicanalítico. Já contou inúmeras vezes em entrevistas que fez análise pessoal por trinta anos. Piadas à parte, disse ainda que , apesar de tanta análise com os melhores profissionais "freudianos" de Nova York, precisou do cinema -- da sua arte-- para tocar em alguns pontos intocados de sua própria análise.
     Não ouso dizer que o filme "O Homem Irracional" é autobiográfico, porque não sei se é. Não há como ter certeza, pois nós, espectadores, não tivemos acesso à análise pessoal de Allen. Não será que todos são autobiográficos? Além disso, esse detalhe é quase irrelevante. Seria ainda mais irrelevante se ele mesmo não tivesse tocado no assunto de que alguns pontos de sua análise pessoal permaneceram intocados, o que é muito comum em muitas análises clássicas.
      O interessante nesse filme é como capta esteticamente e expressa um detalhe particular da condição humana. O fenômeno do sentimento de futilidade decorrente da existência de um "falso self" é muito específico. Escapa à escuta e à sensibilidade de muitos analistas, acostumados com os diagnósticos de neurose, psicose, "border lines", etc. Além disso, é preciso dizer que futilidade, aqui, não se refere, como diz o senso comum, à "superficialidade social"  de algumas pessoas, ainda que essa possa ser   uma conseqüência freqüente do "falso self". 
      A futilidade em questão é -- "tecnicamente", digamos -- um sinal da presença de um "falso si mesmo" e o fracasso da defesa armada para esconder um "verdadeiro si mesmo", cindido, recolhido e ignorado pela própria pessoa. O falso self ajuda alguém a se adaptar ao meio ambiente, quando está dividido entre um núcleo verdadeiro, silencioso, e uma área visível explícita, relativamente adaptada..
     Não é um teatro consciente que um ser humano monta, mas uma operação inconsciente destinada a  proteger uma intimidade desconhecida das ameaças ambientais e poder  funcionar na vida.  A criança pequena teme mostrar-se inteiramente à mãe ou aos pais e,para isso, esconde seu núcleo mais verdadeiro, a fim de garantir a proteção e o amor parentais. O "verdadeiro self" fica guardado para ser -- um dia-- vivido e utilizado. Muitas vezes, forma-se uma camada de intelectualização e um estilo de vida para proteger cuidadosamente a área mais secreta e autêntica de um ser humano.
      A personagem do professor-filósofo de Woody Allen funcionava muito bem na vida de superfície e na área intelectual. Era um acadêmico bem sucedido com trabalhos publicados, prêmios, histórias de aventuras e lendas. Seu carisma dando aulas era elogiado e seu desempenho, tido como brilhante. No entanto, faltava-lhe uma consistência existencial, falta sentida na crise só por ele mesmo, mas que acaba afetando todos ao seu redor. Seu brilho era "fake", em relação a um núcleo que poderia ser vivo e criativo na transgressão.
     Quando se fala de "falso" e "verdadeiro", aqui, não significa atribuir nenhuma conotação de valor. Mas pode aproximar-se do que chamamos de "inautêntico" e "autêntico". O "verdadeiro self" é o que vem de dentro, do mais intimo do ser humano. Muitas vezes, a autenticidade só aparece na crise de identidade ou na transgressão. E nada melhor do que a arte para desvelar o que há de transgressivo e verdadeiro no ser humano.

     Vejam esse filme, vale a pena. Pode despertar o mais estranho, secreto e revelador dentro de todos nós.

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