quinta-feira, 28 de abril de 2016

AMOR À SENZALA

     
                                                         Reinaldo Lobo*

       Há um desejo secreto de boa parte da sociedade brasileira de se submeter, suponho, ao autoritarismo. Devemos encarar a existência desse estranho fenômeno. Assim como nos parece absurdo o masoquismo nos indivíduos é bem esquisita a submissão voluntária de um povo. No entanto, existe.
       Será uma nostalgia de nosso passado escravocrata? O mandonismo atrai. Não é raro lermos comentários de colunistas e até de alguns políticos conhecidos pedindo com frequência decisões firmes das autoridades e mais repressão policial. Podemos dar um desconto para aqueles que estão assustados com a criminalidade e com um certo caos administrativo que parece fazer parte da cultura brasileira. Também devemos excluir os fascistas e os velhos comunistas da “linha dura”, pois esses são por natureza autoritários, quando não amantes do totalitarismo.
      A questão é o povo, ou uma parte dele, que aceita submeter-se a uma elite política e empresarial frequentemente inepta e corrupta. Pior, parece querer mais disso, apesar dos protestos recentes.  Gosta dos salvadores, da “lei e da ordem” e das soluções de “machos” latino-americanos de vários tipos. Desconfio que essa considerável fração do povo prefere os da direita.
     Não é mero acaso o sucesso de personagens públicos como Jair Bolsonaro, de panfletários como Olavo de Carvalho e aquele Azevedo, da Folha e da Veja. Todos se anunciam rebeldes, insurgentes contra a “hegemonia cultural marxista”, mas não escondem que defendem, ao fim e ao cabo, a permanência de valores e das hierarquias mais tradicionais na sociedade e na política.
     Alguns deles nem chegaram ao espirito democrático da Revolução Francesa de 1789. No entanto, têm a admiração confessa de setores significativos da classe média revoltada com o período nacional-distributivista dos governos Lula e Dilma.
       A servidão voluntária fascina quem busca ou se acostuma à “proteção” e à “segurança” dos regimes autoritários. Boa parte do que temos hoje é resquício dos mais de 20 anos de ditadura civil-militar. Não duvidem disso.
      O elogio feito pelo deputado Bolsonaro a um notório torturador do período ditatorial, associando seu voto contra quem foi vítima da tortura, Dilma, ao nome do major torturador Ustra, só foi possível porque existem hoje as condições subjetivas e objetivas para um tal link. O que “legitima” a fluência do seu discurso fascista é o conluio antigo na nossa sociedade entre os que mandam e os que obedecem.
     O grande acordo dos vários setores da oligarquia, que impôs a anistia dos torturadores da ditadura, tem a mesma origem do acordo que se trama agora para colocar Michel Temer na Presidência, sempre em nome da conciliação, da estabilidade e da paz social.
      O mais grave é que surgiu uma paixão de direita entre nós: o desejo de obedecer e de se conformar. A revolta contra a corrupção, que postulo ser na verdade uma indignação superficial contra a revelação da corrupção, esconde um anseio de que tudo volte ao “normal”, isto é, que a sociedade volte à condição hierárquica tradicional e as mazelas não apareçam de forma tão transparente, com seus conflitos de classe e a sua podridão.
       A militância que surgiu à direita não é propriamente um engajamento político duradouro, mas uma explosão de indignação destinada a recolocar “cada macaco no seu galho”.
      A aceitação de um político de estilo tradicional como Michel Temer na chefia do governo, independentemente das suspeitas que pairam de estar no mesmo esquema de corrupção exposto pela “Lava Jato”, mostram que o objetivo das manifestações anticorrupção era só expelir o elemento estranho, o petismo, da ordem estável da política e, se possível, da sociedade.
      A submissão voluntária ao autoritarismo não se restringe aos 10 por cento dos que votariam no deputado Bolsonaro para a presidência. Não se enganem quanto a isso. A vergonha impede as pessoas de assumirem uma identidade autoritária, pois o discurso ideológico brasileiro apresenta-se como “liberal”.
      Um grande número dos participantes das passeatas dominicais festejadas e estimuladas pela rede Globo para servirem como a introdução ao impeachment, revelaram em pesquisas qualitativas que aceitariam uma intervenção militar para “pôr ordem na casa”. Muitos querem a exclusão dos políticos e a entrega do poder a “forças neutras” que possam promover a “limpeza” do País. O ideal varia: ou um militar e ou um juiz.
    É interessante observar que uma das acusações ao petismo, frequentes nas passeatas, era a de querer implantar um regime autoritário bolivariano ou cubano. Ao mesmo tempo, os manifestantes pediam um regime autoritário de direita, ainda que temporário, a fim de repor a “normalidade” das coisas.
    A própria trajetória do circo do impeachment, que agora tem até musas de beleza inspiradoras, segue um traçado de cooptações, traições e métodos subterrâneos de ação próprias da política tradicional brasileira, calcada no clientelismo. O PMDB tem sido um campeão dessa fórmula, ainda que não seja o único.
     O acordo entre os “de cima” que prevaleceu na redemocratização do País, anistiando os torturadores, na eleição indireta de Tancredo Neves, na entrada sem voto de Sarney e, agora, na fórmula do impeachment imposta por um Congresso submisso e corrupto, dirigido na Câmara pelo político mais rejeitado de todos, o célebre Cunha, está sendo aceito passivamente pelos “de baixo”, isto é, a parte do povo cuja identificação de pertencimento ao sistema a torna automaticamente engajada na busca da lei e da ordem. São os admiradores da PM e da repressão ao crime, e até o público dos programas sensacionalistas daqueles repórteres-policiais da TV.

       O Brasil continua a ser, infelizmente, o País cujos revoltados voltam à senzala, como aqueles escravos libertos pela primeira revolução democrática negra das Américas e do mundo, a revolução haitiana liderada por Touissaint Louverture, em 1791. Os revoltosos voltavam às fazendas e aos seus antigos donos logo depois da proclamação do fim da escravidão. Tinham medo e não sabiam o que fazer com a liberdade. 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

O QUE HOUVE EM 2013

  

                                                         Reinaldo Lobo*

      A democracia liberal tem medo do movimento. Qualquer movimento, que possa levar à instabilidade. Por definição, democracia é o regime do conflito, da divergência e da disputa a céu aberto, nas urnas ou nos parlamentos. Mas aí é que está a contradição: o conflito assusta as democracias liberais contemporâneas porque não são apenas uma forma de governo.
     As modernas repúblicas representam, veiculam e articulam interesses de uma oligarquia de empresários, tecnocratas, militares, empreiteiras, corporações, organizações sindicais, fundos de investimento, fundos de pensão, monopólios e, sobretudo, dos próprios políticos. São “oligarquias liberais”, o que é sem dúvida um nome paradoxal.
    O povo sabe, em seu bom senso comum, dessa verdade -- isto é, que os políticos representam a si mesmos e a quem lhes garante recursos para sua eleição, suas ambições e a manutenção do seu estilo de vida.
   Os eleitores também têm a intuição de que seu direito de escolha é limitado ao dia da eleição e, mesmo assim, restrito aos candidatos previamente indicados pelos partidos existentes. Nos Estados Unidos, tentaram corrigir essa limitação inventando as eleições preliminares, as prévias para a seleção dos candidatos de cada partido. Mas, mesmo lá, os eleitores estão confinados a uma espécie de autocracia de apenas dois partidos poderosos e dominantes. Muitos cidadãos protestam simplesmente não comparecendo às urnas ou votando em branco e nulo. Entre nós, o voto é obrigatório e nem temos completamente esse tipo de protesto.
    Esses regimes são liberais, não recorrem à coerção e até preferem o protesto silencioso dos que negligenciam o voto. Os setores dominantes impõem uma espécie de meia-adesão indolente da população. Quase uma servidão voluntária. A indiferença, o recolhimento à vida cotidiana e aos negócios privados fazem parte do quadro mais ou menos confortável da sociedade de consumo. Quanto aos pobres, estão acostumados à sua condição e apenas às vezes se organizam em movimentos de base. Boa parte dos trabalhadores alienam-se nas empresas e no dia-a-dia. O funcionamento desses regimes é essencialmente não democrático ou apenas semidemocrático.
    O que parece ter havido no Brasil em 2013 foi uma rebelião espontânea de uma população aparentemente passiva, mas, como se viu, insatisfeita com essa distância da representação política na nossa Nova República. O abismo entre representantes privilegiados e representados insatisfeitos nunca ficou tão evidente.
     Os jovens saíram às ruas sob o pretexto inicial de impedir um aumento de centavos nos preços dos bilhetes do transporte coletivo, mas foram ganhando o apoio da opinião pública, engrossaram suas fileiras com camadas de trabalhadores, adultos de classe média, ampliaram seus temas e famílias clamavam por melhores serviços de saúde, educação e mobilidade urbana.
     Os manifestantes sofreram uma repressão violenta, alguns reagiram com igual agressividade, quebrando vidraças, bancos e lojas e até se soube de alguns saques. Houve feridos e até algumas mortes, uma delas de grande repercussão, pois foi a de um membro da imprensa, cujos patrões já vinham pedindo lei e ordem. Os Black Blocs foram presos e a repressão procurou justificar-se pelo uso da força da Polícia Militar que, por sinal, era um dos alvos dos protestos.
     O movimento foi ambíguo. Começou por iniciativas de estudantes e usuários de transporte público. Depois, foi recebendo adesões da classe média revoltada com os “privilégios dos pobres” nos governos Lula e Dilma. Imediatamente, líderes da oposição conservadora procuraram empalmar as manifestações e dirigi-las contra o governo, enfocando acusações de corrupção e o anticomunismo.
     Essa mistura de participantes sob o slogan genérico de combate à corrupção escondeu o sentido do movimento. O próprio Lula procurou minimizar o volume e as causas das manifestações, dizendo que o povo estava apenas “querendo mais”, depois de ter recebido o acesso ao consumo de massas e a integração ao mercado. De “barriga cheia” durante o período eufórico do lulismo, o povo estaria buscando melhores serviços e atenção.
      Muitos reduziram as explicações a fatores econômicos e diretamente sociais, inclusive quando se falou da classe média -- ela estaria apenas reagindo à ascensão dos pobres, à sua presença nos aeroportos e aos direitos trabalhistas das domésticas e outros trabalhadores. Deixaram de ouvir mais uma vez os slogans sonoros dos participantes: Reforma Política, Assembleia Constituinte, renovação do Congresso e das esferas de poder.
    O elemento essencialmente político desse fenômeno espontâneo de massas foi negado ou ignorado. Os próprios políticos não o perceberam, achando que tudo se resolveria nas eleições. Os petistas achavam que a vitória de Dilma bastaria; a oposição acreditava que a revolta havia amadurecido o eleitorado para uma vitória de Aécio Neves. Em parte, isso parecia e era verdade, mas não constituía toda a realidade.
     O antigovernismo das classes médias continuou, acionado pela oposição instalada, sobretudo, na mídia. A crise econômica o agravou, bem como os desvios de propósitos da presidente e a Operação Lava Jato dirigida quase exclusivamente contra o PT. Contudo, nas mais recentes manifestações contra o governo ficou evidente a crítica contra TODOS os políticos e a insatisfação com o sistema oligárquico de decisões.
    Mesmo a confusão ideológica de participantes das classes médias que pedem uma solução “manu militari” deveria ser entendida como um sintoma dessa doença da representação política.
    O que está em questão é a estrutura dessa Nova República surgida em 1985, cujo conluio entre empreiteiras, empresariado, políticos e o Estado tem excluído cada vez mais os cidadãos.
    A manobra para destituir Dilma é conduzida pelo mesmo sistema nos bastidores. Seus líderes esperam que, uma vez excluído o PT do poder, tudo voltará “ao normal”. Enganam-se. O PT ficará, sem dúvida, muito enfraquecido, mas a dinâmica implícita no interior das multidões permanecerá e pode até aumentar o seu movimento. O conflito não acabou.

   Nossos políticos ainda não se deram conta de que 2013 pode estar apenas começando.