Reinaldo Lobo*
Há um desejo secreto de boa parte da
sociedade brasileira de se submeter, suponho, ao autoritarismo. Devemos encarar
a existência desse estranho fenômeno. Assim como nos parece absurdo o
masoquismo nos indivíduos é bem esquisita a submissão voluntária de um povo.
No entanto, existe.
Será uma nostalgia de nosso passado
escravocrata? O mandonismo atrai. Não é raro lermos comentários de colunistas e
até de alguns políticos conhecidos pedindo com frequência decisões firmes das
autoridades e mais repressão policial. Podemos dar um desconto para aqueles que
estão assustados com a criminalidade e com um certo caos administrativo que
parece fazer parte da cultura brasileira. Também devemos excluir os fascistas e
os velhos comunistas da “linha dura”, pois esses são por natureza autoritários,
quando não amantes do totalitarismo.
A questão é o povo, ou uma parte dele, que
aceita submeter-se a uma elite política e empresarial frequentemente inepta e
corrupta. Pior, parece querer mais disso, apesar dos protestos recentes. Gosta dos salvadores, da “lei e da ordem” e
das soluções de “machos” latino-americanos de vários tipos. Desconfio que essa
considerável fração do povo prefere os da direita.
Não
é mero acaso o sucesso de personagens públicos como Jair Bolsonaro, de
panfletários como Olavo de Carvalho e aquele Azevedo, da Folha e da Veja. Todos
se anunciam rebeldes, insurgentes contra a “hegemonia cultural marxista”, mas
não escondem que defendem, ao fim e ao cabo, a permanência de valores e das
hierarquias mais tradicionais na sociedade e na política.
Alguns
deles nem chegaram ao espirito democrático da Revolução Francesa de 1789. No
entanto, têm a admiração confessa de setores significativos da classe média
revoltada com o período nacional-distributivista dos governos Lula e Dilma.
A servidão voluntária fascina quem busca
ou se acostuma à “proteção” e à “segurança” dos regimes autoritários. Boa parte
do que temos hoje é resquício dos mais de 20 anos de ditadura civil-militar.
Não duvidem disso.
O elogio feito pelo deputado Bolsonaro a
um notório torturador do período ditatorial, associando seu voto contra quem
foi vítima da tortura, Dilma, ao nome do major torturador Ustra, só foi
possível porque existem hoje as condições subjetivas e objetivas para um tal
link. O que “legitima” a fluência do seu discurso fascista é o conluio antigo
na nossa sociedade entre os que mandam e os que obedecem.
O grande acordo dos vários setores da
oligarquia, que impôs a anistia dos torturadores da ditadura, tem a mesma origem
do acordo que se trama agora para colocar Michel Temer na Presidência, sempre
em nome da conciliação, da estabilidade e da paz social.
O mais grave é que surgiu uma paixão de
direita entre nós: o desejo de obedecer e de se conformar. A revolta contra a
corrupção, que postulo ser na verdade uma indignação superficial contra a
revelação da corrupção, esconde um anseio de que tudo volte ao “normal”,
isto é, que a sociedade volte à condição hierárquica tradicional e as mazelas
não apareçam de forma tão transparente, com seus conflitos de classe e a sua
podridão.
A militância que surgiu à direita não é
propriamente um engajamento político duradouro, mas uma explosão de indignação
destinada a recolocar “cada macaco no seu galho”.
A aceitação de um político de estilo
tradicional como Michel Temer na chefia do governo, independentemente das
suspeitas que pairam de estar no mesmo esquema de corrupção exposto pela “Lava
Jato”, mostram que o objetivo das manifestações anticorrupção era só expelir o
elemento estranho, o petismo, da ordem estável da política e, se possível, da
sociedade.
A submissão voluntária ao autoritarismo
não se restringe aos 10 por cento dos que votariam no deputado Bolsonaro para a
presidência. Não se enganem quanto a isso. A vergonha impede as pessoas de
assumirem uma identidade autoritária, pois o discurso ideológico brasileiro
apresenta-se como “liberal”.
Um grande número dos participantes das
passeatas dominicais festejadas e estimuladas pela rede Globo para servirem
como a introdução ao impeachment, revelaram em pesquisas qualitativas que
aceitariam uma intervenção militar para “pôr ordem na casa”. Muitos querem a
exclusão dos políticos e a entrega do poder a “forças neutras” que possam
promover a “limpeza” do País. O ideal varia: ou um militar e ou um juiz.
É interessante observar que uma das
acusações ao petismo, frequentes nas passeatas, era a de querer implantar um
regime autoritário bolivariano ou cubano. Ao mesmo tempo, os manifestantes
pediam um regime autoritário de direita, ainda que temporário, a fim de repor a
“normalidade” das coisas.
A própria trajetória do circo do
impeachment, que agora tem até musas de beleza inspiradoras, segue um traçado
de cooptações, traições e métodos subterrâneos de ação próprias da política tradicional
brasileira, calcada no clientelismo. O PMDB tem sido um campeão dessa fórmula,
ainda que não seja o único.
O acordo entre os “de cima” que prevaleceu
na redemocratização do País, anistiando os torturadores, na eleição indireta de
Tancredo Neves, na entrada sem voto de Sarney e, agora, na fórmula do
impeachment imposta por um Congresso submisso e corrupto, dirigido na Câmara
pelo político mais rejeitado de todos, o célebre Cunha, está sendo aceito
passivamente pelos “de baixo”, isto é, a parte do povo cuja identificação de
pertencimento ao sistema a torna automaticamente engajada na busca da lei e da
ordem. São os admiradores da PM e da repressão ao crime, e até o público dos
programas sensacionalistas daqueles repórteres-policiais da TV.
O
Brasil continua a ser, infelizmente, o País cujos revoltados voltam à senzala,
como aqueles escravos libertos pela primeira revolução democrática negra das
Américas e do mundo, a revolução haitiana liderada por Touissaint Louverture, em
1791. Os revoltosos voltavam às fazendas e aos seus antigos donos logo depois
da proclamação do fim da escravidão. Tinham medo e não sabiam o que fazer com a
liberdade.