sexta-feira, 15 de abril de 2016

O QUE HOUVE EM 2013

  

                                                         Reinaldo Lobo*

      A democracia liberal tem medo do movimento. Qualquer movimento, que possa levar à instabilidade. Por definição, democracia é o regime do conflito, da divergência e da disputa a céu aberto, nas urnas ou nos parlamentos. Mas aí é que está a contradição: o conflito assusta as democracias liberais contemporâneas porque não são apenas uma forma de governo.
     As modernas repúblicas representam, veiculam e articulam interesses de uma oligarquia de empresários, tecnocratas, militares, empreiteiras, corporações, organizações sindicais, fundos de investimento, fundos de pensão, monopólios e, sobretudo, dos próprios políticos. São “oligarquias liberais”, o que é sem dúvida um nome paradoxal.
    O povo sabe, em seu bom senso comum, dessa verdade -- isto é, que os políticos representam a si mesmos e a quem lhes garante recursos para sua eleição, suas ambições e a manutenção do seu estilo de vida.
   Os eleitores também têm a intuição de que seu direito de escolha é limitado ao dia da eleição e, mesmo assim, restrito aos candidatos previamente indicados pelos partidos existentes. Nos Estados Unidos, tentaram corrigir essa limitação inventando as eleições preliminares, as prévias para a seleção dos candidatos de cada partido. Mas, mesmo lá, os eleitores estão confinados a uma espécie de autocracia de apenas dois partidos poderosos e dominantes. Muitos cidadãos protestam simplesmente não comparecendo às urnas ou votando em branco e nulo. Entre nós, o voto é obrigatório e nem temos completamente esse tipo de protesto.
    Esses regimes são liberais, não recorrem à coerção e até preferem o protesto silencioso dos que negligenciam o voto. Os setores dominantes impõem uma espécie de meia-adesão indolente da população. Quase uma servidão voluntária. A indiferença, o recolhimento à vida cotidiana e aos negócios privados fazem parte do quadro mais ou menos confortável da sociedade de consumo. Quanto aos pobres, estão acostumados à sua condição e apenas às vezes se organizam em movimentos de base. Boa parte dos trabalhadores alienam-se nas empresas e no dia-a-dia. O funcionamento desses regimes é essencialmente não democrático ou apenas semidemocrático.
    O que parece ter havido no Brasil em 2013 foi uma rebelião espontânea de uma população aparentemente passiva, mas, como se viu, insatisfeita com essa distância da representação política na nossa Nova República. O abismo entre representantes privilegiados e representados insatisfeitos nunca ficou tão evidente.
     Os jovens saíram às ruas sob o pretexto inicial de impedir um aumento de centavos nos preços dos bilhetes do transporte coletivo, mas foram ganhando o apoio da opinião pública, engrossaram suas fileiras com camadas de trabalhadores, adultos de classe média, ampliaram seus temas e famílias clamavam por melhores serviços de saúde, educação e mobilidade urbana.
     Os manifestantes sofreram uma repressão violenta, alguns reagiram com igual agressividade, quebrando vidraças, bancos e lojas e até se soube de alguns saques. Houve feridos e até algumas mortes, uma delas de grande repercussão, pois foi a de um membro da imprensa, cujos patrões já vinham pedindo lei e ordem. Os Black Blocs foram presos e a repressão procurou justificar-se pelo uso da força da Polícia Militar que, por sinal, era um dos alvos dos protestos.
     O movimento foi ambíguo. Começou por iniciativas de estudantes e usuários de transporte público. Depois, foi recebendo adesões da classe média revoltada com os “privilégios dos pobres” nos governos Lula e Dilma. Imediatamente, líderes da oposição conservadora procuraram empalmar as manifestações e dirigi-las contra o governo, enfocando acusações de corrupção e o anticomunismo.
     Essa mistura de participantes sob o slogan genérico de combate à corrupção escondeu o sentido do movimento. O próprio Lula procurou minimizar o volume e as causas das manifestações, dizendo que o povo estava apenas “querendo mais”, depois de ter recebido o acesso ao consumo de massas e a integração ao mercado. De “barriga cheia” durante o período eufórico do lulismo, o povo estaria buscando melhores serviços e atenção.
      Muitos reduziram as explicações a fatores econômicos e diretamente sociais, inclusive quando se falou da classe média -- ela estaria apenas reagindo à ascensão dos pobres, à sua presença nos aeroportos e aos direitos trabalhistas das domésticas e outros trabalhadores. Deixaram de ouvir mais uma vez os slogans sonoros dos participantes: Reforma Política, Assembleia Constituinte, renovação do Congresso e das esferas de poder.
    O elemento essencialmente político desse fenômeno espontâneo de massas foi negado ou ignorado. Os próprios políticos não o perceberam, achando que tudo se resolveria nas eleições. Os petistas achavam que a vitória de Dilma bastaria; a oposição acreditava que a revolta havia amadurecido o eleitorado para uma vitória de Aécio Neves. Em parte, isso parecia e era verdade, mas não constituía toda a realidade.
     O antigovernismo das classes médias continuou, acionado pela oposição instalada, sobretudo, na mídia. A crise econômica o agravou, bem como os desvios de propósitos da presidente e a Operação Lava Jato dirigida quase exclusivamente contra o PT. Contudo, nas mais recentes manifestações contra o governo ficou evidente a crítica contra TODOS os políticos e a insatisfação com o sistema oligárquico de decisões.
    Mesmo a confusão ideológica de participantes das classes médias que pedem uma solução “manu militari” deveria ser entendida como um sintoma dessa doença da representação política.
    O que está em questão é a estrutura dessa Nova República surgida em 1985, cujo conluio entre empreiteiras, empresariado, políticos e o Estado tem excluído cada vez mais os cidadãos.
    A manobra para destituir Dilma é conduzida pelo mesmo sistema nos bastidores. Seus líderes esperam que, uma vez excluído o PT do poder, tudo voltará “ao normal”. Enganam-se. O PT ficará, sem dúvida, muito enfraquecido, mas a dinâmica implícita no interior das multidões permanecerá e pode até aumentar o seu movimento. O conflito não acabou.

   Nossos políticos ainda não se deram conta de que 2013 pode estar apenas começando. 

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