Reinaldo Lobo*
A democracia liberal tem medo do
movimento. Qualquer movimento, que possa levar à instabilidade. Por definição,
democracia é o regime do conflito, da divergência e da disputa a céu aberto,
nas urnas ou nos parlamentos. Mas aí é que está a contradição: o conflito
assusta as democracias liberais contemporâneas porque não são apenas uma forma
de governo.
As modernas repúblicas representam,
veiculam e articulam interesses de uma oligarquia de empresários, tecnocratas,
militares, empreiteiras, corporações, organizações sindicais, fundos de
investimento, fundos de pensão, monopólios e, sobretudo, dos próprios
políticos. São “oligarquias liberais”, o que é sem dúvida um nome paradoxal.
O
povo sabe, em seu bom senso comum, dessa verdade -- isto é, que os políticos
representam a si mesmos e a quem lhes garante recursos para sua eleição, suas
ambições e a manutenção do seu estilo de vida.
Os eleitores também têm a intuição de que
seu direito de escolha é limitado ao dia da eleição e, mesmo assim, restrito
aos candidatos previamente indicados pelos partidos existentes. Nos Estados
Unidos, tentaram corrigir essa limitação inventando as eleições preliminares,
as prévias para a seleção dos candidatos de cada partido. Mas, mesmo lá, os
eleitores estão confinados a uma espécie de autocracia de apenas dois partidos
poderosos e dominantes. Muitos cidadãos protestam simplesmente não comparecendo
às urnas ou votando em branco e nulo. Entre nós, o voto é obrigatório e nem
temos completamente esse tipo de protesto.
Esses regimes são liberais, não recorrem à
coerção e até preferem o protesto silencioso dos que negligenciam o voto. Os
setores dominantes impõem uma espécie de meia-adesão indolente da população.
Quase uma servidão voluntária. A indiferença, o recolhimento à vida cotidiana e
aos negócios privados fazem parte do quadro mais ou menos confortável da
sociedade de consumo. Quanto aos pobres, estão acostumados à sua condição e
apenas às vezes se organizam em movimentos de base. Boa parte dos trabalhadores
alienam-se nas empresas e no dia-a-dia. O funcionamento desses regimes é
essencialmente não democrático ou apenas semidemocrático.
O que
parece ter havido no Brasil em 2013 foi uma rebelião espontânea de uma
população aparentemente passiva, mas, como se viu, insatisfeita com essa distância
da representação política na nossa Nova República. O abismo entre
representantes privilegiados e representados insatisfeitos nunca ficou tão
evidente.
Os jovens saíram às ruas sob o pretexto
inicial de impedir um aumento de centavos nos preços dos bilhetes do transporte
coletivo, mas foram ganhando o apoio da opinião pública, engrossaram suas
fileiras com camadas de trabalhadores, adultos de classe média, ampliaram seus
temas e famílias clamavam por melhores serviços de saúde, educação e mobilidade
urbana.
Os
manifestantes sofreram uma repressão violenta, alguns reagiram com igual
agressividade, quebrando vidraças, bancos e lojas e até se soube de alguns
saques. Houve feridos e até algumas mortes, uma delas de grande repercussão,
pois foi a de um membro da imprensa, cujos patrões já vinham pedindo lei e
ordem. Os Black Blocs foram presos e a repressão procurou justificar-se pelo
uso da força da Polícia Militar que, por sinal, era um dos alvos dos protestos.
O movimento foi ambíguo. Começou por
iniciativas de estudantes e usuários de transporte público. Depois, foi
recebendo adesões da classe média revoltada com os “privilégios dos pobres” nos
governos Lula e Dilma. Imediatamente, líderes da oposição conservadora
procuraram empalmar as manifestações e dirigi-las contra o governo, enfocando
acusações de corrupção e o anticomunismo.
Essa mistura de participantes sob o slogan
genérico de combate à corrupção escondeu o sentido do movimento. O próprio Lula
procurou minimizar o volume e as causas das manifestações, dizendo que o povo
estava apenas “querendo mais”, depois de ter recebido o acesso ao consumo de
massas e a integração ao mercado. De “barriga cheia” durante o período eufórico
do lulismo, o povo estaria buscando melhores serviços e atenção.
Muitos reduziram as explicações a fatores
econômicos e diretamente sociais, inclusive quando se falou da classe média --
ela estaria apenas reagindo à ascensão dos pobres, à sua presença nos
aeroportos e aos direitos trabalhistas das domésticas e outros trabalhadores.
Deixaram de ouvir mais uma vez os slogans sonoros dos participantes: Reforma
Política, Assembleia Constituinte, renovação do Congresso e das esferas de
poder.
O elemento essencialmente político desse
fenômeno espontâneo de massas foi negado ou ignorado. Os próprios políticos não
o perceberam, achando que tudo se resolveria nas eleições. Os petistas achavam
que a vitória de Dilma bastaria; a oposição acreditava que a revolta havia
amadurecido o eleitorado para uma vitória de Aécio Neves. Em parte, isso
parecia e era verdade, mas não constituía toda a realidade.
O antigovernismo das classes médias
continuou, acionado pela oposição instalada, sobretudo, na mídia. A crise
econômica o agravou, bem como os desvios de propósitos da presidente e a
Operação Lava Jato dirigida quase exclusivamente contra o PT. Contudo, nas mais
recentes manifestações contra o governo ficou evidente a crítica contra TODOS
os políticos e a insatisfação com o sistema oligárquico de decisões.
Mesmo
a confusão ideológica de participantes das classes médias que pedem uma solução
“manu militari” deveria ser entendida como um sintoma dessa doença da
representação política.
O que está em questão é a estrutura dessa
Nova República surgida em 1985, cujo conluio entre empreiteiras, empresariado,
políticos e o Estado tem excluído cada vez mais os cidadãos.
A manobra para destituir Dilma é conduzida
pelo mesmo sistema nos bastidores. Seus líderes esperam que, uma vez excluído o
PT do poder, tudo voltará “ao normal”. Enganam-se. O PT ficará, sem dúvida,
muito enfraquecido, mas a dinâmica implícita no interior das multidões
permanecerá e pode até aumentar o seu movimento. O conflito não acabou.
Nossos
políticos ainda não se deram conta de que 2013 pode estar apenas começando.
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