Reinaldo Lobo*
Se você votou nos tucanos, gosta de Miami
e de bons vinhos, critica o governo Lula ou Dilma, tem uma renda acima da média
brasileira, então está imediatamente rotulado: é um (a) “coxinha”. Logo, é
alguém cheio de preconceitos, elitista e só vê corrupção política nos outros.
Se votou em petistas, acha que a
desigualdade social e a má distribuição de renda são alguns dos problemas mais
graves do País, então você não escapa: é um (a) “petralha”. Logo, deve fazer
vistas grossas para a corrupção política, a subversão e, talvez, seja até um
suspeito de conivência “com tudo isso que está aí”
Os estereótipos são um resultado da
radicalização da cena social, da disputa política e do ódio de classes no
Brasil. Os rótulos tornaram-se verdadeiros palavrões usados para ofender e
paralisar o adversário numa discussão ou troca de mensagens eletrônicas. Falar
mal de alguém pode incluir “não passa de um (a) petralha” ou, do outro lado, de
“um (a) coxinha”.
Há uma forte conotação moral, de acusação e
de desprezo nesses comentários. Sem falar, é claro, na onda de fundamentalismo
político-religioso que invadiu o país com a chegada do neopentecostalismo e dos
cultos evangélicos. Quem for, digamos, liberal e apoiar a descriminalização da
maconha ou do aborto será imediatamente condenado ao fogo dos infernos.
O fanatismo é o fenômeno implícito na
rotulação e nos xingamentos. Ninguém se pergunta, nessas horas, se um petista
gosta de bons vinhos ou se um eleitor de tucanos pode ter preocupações sociais.
Vale tudo para “destruir” o adversário que, a essa altura, já virou um inimigo.
Como tenho dito aqui e em outros lugares,
o fanatismo tem cura. Não me refiro a mudar as condições políticas, culturais ou
sociais de um país, ainda que tenham um peso considerável no assunto. Falo do
aspecto ético e psíquico.
É possível ver uma diferença entre o
discurso e a ação fanática. O terrorista, um modelo padrão, age. Os que apenas
discutem falam, gesticulam, gritam, mas somente de forma radical. No entanto, o
discurso fanático tem consequências, estimula o ódio, dá um péssimo exemplo e se
difunde como ideologia mais ou menos dominante.
É fácil reconhecer uma pessoa fanática.
Tem, via de regra, um entusiasmo militante, um forte brilho no olhar, uma
obstinação e uma persistência nos argumentos e crenças. Falta ao fanático a
curiosidade pelo outro e a curiosidade em geral. Ele já sabe. Detém um saber
próprio e superior, uma verdade que não precisa ser oferecida, mas imposta ao
outro.
O fanático não quer convencer, quer salvar
a todos nós. Conhece o que a humanidade precisa, chega a ser um altruísta
dedicado à espécie humana. Os terroristas das Torres Gêmeas, de Paris e da
Bélgica queriam dar um exemplo ao mundo, como se só eles soubessem o que é a
verdade e que ela seria aplicável a qualquer cultura.
O fanático, como sabemos, é um puro e um
moralista extremo. O mundo está errado, todos os problemas estão projetados
fora. O outro precisa ser salvo de si mesmo, pois se contaminou com os erros e
a imoralidade.
Do ponto de vista psíquico, é fácil dizer
que o fanático é um louco. Só que isso seria mais um xingamento apenas,
passível de igual uso fanático. Todos nós estamos sujeitos a momentos
esquizo-paranóides, isto é, quando estamos de algum modo ameaçados,
perseguidos, divididos e despejamos no outro as culpas pelo que está
acontecendo. Vemos isso nas crianças de modo fácil, nos casais que brigam e em
nós mesmos, de vez em quando. Falta ao fanático livrar-se disso que, nele, já
se tornou um sistema de funcionamento. Escapa-lhe a capacidade de se preocupar
e deprimir pelos erros e falhas humanos, a que está sujeito como todo mundo.
Para tentar curar um fanático
mal-humorado e sério – pois ele é o protótipo da falta de humor e da
seriedade--, é preciso colocar-se dentro do seu universo de discurso, ver as
coisas de seu ponto de vista e questioná-las por dentro. Empatizar com ele não
é fácil, mas necessário. Assim como não se diz a um louco que ele não é
Napoleão, pois vai retrucar que você é o Almirante Nelson e quer derrota-lo em
Waterloo, também não se provoca um fanático.
Um bom exemplo é dado por um
especialista no assunto, o escritor israelense Amós Oz, um guia para a
discussão moral do fanatismo. Ele conta
que um amigo seu, um romancista chamado Sammy Michael, de esquerda como ele,
pegou um táxi e durante o percurso o motorista estava proferindo o costumeiro
discurso sobre como é “imprescindível para nós, judeus, que se matem todos os
árabes. Sammy o escutava e, em vez de gritar “Que homem horrível você é. Você é
um nazista, um fascista? ”, ele decidiu lidar com aquilo de modo diferente.
Ele perguntou ao motorista: “E quem você
acha que deveria matar os árabes?” O motorista não hesitou: “Quem você acha?
Nós! Os judeus israelenses! Temos de fazer isso! Não há alternativa, veja só o
que eles estão fazendo conosco todo dia! ”
Então Sammy perguntou: “Mas quem exatamente você acha que devia se
encarregar da tarefa: A polícia? Ou o Exército? Ou talvez os bombeiros? Ou as
equipes médicas? Quem deve realizar o trabalho? ” O motorista coçou a cabeça e
disse: “Acho que devia ser dividido de maneira equitativa entre todos nós, cada
um devia matar alguns deles”. O escritor Sammy, ainda jogando o jogo, disse:
“O.K., suponha que você seja designado para algum bloco de residências em sua
cidade, Haifa, e você bater de porta em porta, ou tocar a campainha e
perguntar: ‘Perdão, senhor, ou com licença, senhora, por acaso é árabe? ’ E se
a resposta for sim, você atira nele ou nela. Aí você termina o serviço em seu
bloco e está pronto para ir para casa, mas assim que se vira você em algum
lugar num quarto andar de seu bloco o choro de um bebê. Você volta para atirar
no bebê? Sim ou não? ”, perguntou Sammy. Houve um momento de silêncio e então o
motorista disse a Sammy Michael: “Sabe, você é um homem muito cruel”.
Essa história, dirá Amós Oz, é muito
significativa porque revela que existe alguma coisa na natureza de um fanático
que é sentimental e ao mesmo tempo carece de imaginação. Se você ouvir alguém
dizendo que um “petralha” ou um “coxinha” precisa ser morto, faça a experiência
de injetar nessa pessoa alguma imaginação e, talvez, ela consiga conversar de
modo menos estúpido.
Dá alguma esperança, não é fácil nem
rápido, mas, quem sabe?, seja possível ajudar um fanático abrindo-lhe a mente
para a imaginação, a curiosidade e a indagação.