terça-feira, 17 de maio de 2016

MANHAS E ARTIMANHAS

       
                                                                                Reinaldo Lobo

         Invocar Maquiavel nesse contexto de “manhas e artimanhas” em que vivemos, segundo a expressão de Dilma Rousseff, pode parecer o mesmo que convocar o Diabo para apagar o fogo do inferno. Mas é preciso chamá-lo a depor.
        Esse autor incompreendido foi o primeiro grande cientista político da modernidade ocidental. Personagem intrigante e ambíguo, porém genial. Um extremo realista. Próprio para entender o imbróglio do Brasil atual.
       Era um republicano confesso que, aparentemente, fingia só dar conselhos a príncipes. No entanto, sabia do que falava. Segundo ele, às vezes um príncipe precisa imitar os animais. Quando a maneira de agir moral dos homens não é eficaz para vencer a luta política é necessário recorrer ao modo das feras. O governante precisa saber qual dos animais imitar.
      O conselho famoso de Maquiavel é que o líder se sairá melhor se aprender a imitar “tanto a raposa quanto o leão”, combinando os ideais morais de um ser humano corajoso e combativo com as artes bestiais da força e da fraude. Inspirado em imperadores romanos, nosso autor sugere que um bom governante, digno possuidor da “virtú”, deve ter as qualidades de “um ferocíssimo leão e de uma astutíssima raposa”, e por isso será “temido e respeitado por todos”. 
     Vem daí, provavelmente, a expressão “raposa” para se referir a um tipo de político experiente e esperto, às vezes um verdadeiro velhaco. Um Eduardo Cunha, por exemplo, mas também um Tancredo Neves e um Ulysses Guimarães, que, além das qualidades “animais”, tinham a coragem e a grandeza de bons seres humanos.
     Dilma padeceu da falta de algumas dessas qualidades. Tem coragem e persistência. Em alguns momentos parece até ter uma força leonina, telúrica e indomável. Mas faltaram-lhe a habilidade política, que lhe permitiria negociar, e a astúcia da raposa. O pouco de jogo, de esperteza, apareceu tarde demais e, aparentemente, não foi sequer de sua autoria.
     Confiar em José Eduardo Cardoso, de resto um brilhante advogado e professor de Direito, para as derradeiras cartadas políticas foi o mesmo que apostar no gesto de um Waldir Maranhão para sinalizar os vícios do impeachment.
    É verdade que a própria Dilma não deve ter esperado mais do que isso: uma sinalização para o mundo, o STF e a História de que o processo de impeachment foi “sujo, hipócrita e mentiroso”. Todos sabemos que estava sendo preparado há anos, desde que ela venceu a segunda eleição. Teve apoio dos jornais, TV e revistas, da mídia conservadora, dos blogs pagos por empresários, do uso de instrumentos jurídicos e de alguns juízes. Movimentos de massa capitalizados pela Fiesp e outras organizações patronais não escondiam o seu objetivo.
     Não é possível, contudo, que Dilma não percebesse para onde se dirigia a opinião pública, mesmo que a julgasse manipulada. Não se pode crer que se apoiasse apenas no seu “dispositivo petista”, com Cardoso, Jacques Wagner e Aloísio Mercadante, nem em pequenos partidos como o PC do B e nos movimentos sociais. Tampouco poderia contar só com o suporte das empresas que patrocinaram sua campanha ou com os ministros fisiológicos que teve que engolir na coalizão chamada de “base governista”.
      Tudo indica que Dilma não sabia mesmo o que fazer, em meio a tantas e astutas raposas. Recorreu ao ex-presidente Lula, mas depois das gravações do juiz Moro, das reações do Supremo e, principalmente, do verdadeiro chefe da República de Curitiba, o procurador Janot, tudo ficou mais difícil. O próprio recurso a Lula já foi um dos muitos erros ao enfrentar a trama da politização da Justiça.
       Entre as raposas, estava Michel Temer, que vinha conspirando há muito tempo, fazendo reuniões com empresários e políticos da oposição para armar o seu bote. A aliança de Temer com Eduardo Cunha, preparando a Câmara dos Deputados e, ao mesmo tempo, manobrando o PMDB para deixar o governo acelerou o processo de impeachment, que chegou a ficar em segundo plano por um bom tempo, quando a presidente tentou mudar os rumos da política econômica, ganhando um fôlego junto à “oligarquia liberal”. 
       Dilma está caindo porque não foi capaz de artimanhas, mas vítima delas. Sua força leonina diminuiu paralelamente à perda da base política. Sua derrota veio por perder a base para governar, mas isto ocorreu porque não teve recursos para articular um projeto de conquista do seu sócio majoritário, o PMDB, que se foi deslizando cada vez mais para direita. Quando se juntou a Renan Calheiros, outra fera capaz de trair, já era tarde. Não conseguiu impor uma divisão suficiente no PMDB capaz de neutralizar o vingativo Eduardo Cunha.
        Muitos analistas políticos afirmam que a grande falha de Dilma e de seus conselheiros foi hostilizar Cunha quando ele quis proteção na Comissão de Ética do Congresso para evitar a própria cassação. Isso é um engano. Dilma naufragou quando confiou na possibilidade de manipular, com os métodos de raposa de Lula, os vários partidos da base governista, sem um programa mínimo comum capaz de elevar o nível de dignidade da política.
        Os ultrarrealistas dizem que a matéria prima do Congresso e do Ministério não permitiria elevar qualquer nível. Pode ser. Mas houve uma oportunidade quando explodiu a insatisfação popular, em 2013, de ganhar apoio do povo para reformas institucionais, sociais e políticas. Dilma dirigiu-se diretamente à população quando falou em Constituinte independente, plebiscito e reforma do quadro partidário. A crise se avizinhava, poderia, inclusive, fazer uma reforma ministerial. Faltou ali a estatura e a grandeza de uma estadista. Faltou também não só o “instinto animal”, a manha, mas a ação leonina recomendada por Maquiavel ao bom político.
       Não enfrentou o PMDB, rendeu-se ao pior da base governista e à vontade de Michel Temer, que vetou qualquer mudança. O resultado é que, agora, o galinheiro está entregue à raposa mais traiçoeira do seu entorno.

       O governo Dilma morre de uma morte ruim, ainda que sua líder continue lutando. Não é a boa morte que os gregos supunham: lutando, mas deixando a glória e a grandeza como heranças.

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