Reinaldo Lobo
Invocar Maquiavel nesse contexto de
“manhas e artimanhas” em que vivemos, segundo a expressão de Dilma Rousseff,
pode parecer o mesmo que convocar o Diabo para apagar o fogo do inferno. Mas é
preciso chamá-lo a depor.
Esse autor incompreendido foi o
primeiro grande cientista político da modernidade ocidental. Personagem
intrigante e ambíguo, porém genial. Um extremo realista. Próprio para entender
o imbróglio do Brasil atual.
Era um republicano confesso que, aparentemente,
fingia só dar conselhos a príncipes. No entanto, sabia do que falava. Segundo
ele, às vezes um príncipe precisa imitar os animais. Quando a maneira de agir
moral dos homens não é eficaz para vencer a luta política é necessário recorrer
ao modo das feras. O governante precisa saber qual dos animais imitar.
O conselho famoso de Maquiavel é que o
líder se sairá melhor se aprender a imitar “tanto a raposa quanto o leão”,
combinando os ideais morais de um ser humano corajoso e combativo com as artes
bestiais da força e da fraude. Inspirado em imperadores romanos, nosso autor
sugere que um bom governante, digno possuidor da “virtú”, deve ter as
qualidades de “um ferocíssimo leão e de uma astutíssima raposa”, e por isso
será “temido e respeitado por todos”.
Vem daí, provavelmente, a expressão
“raposa” para se referir a um tipo de político experiente e esperto, às vezes
um verdadeiro velhaco. Um Eduardo Cunha, por exemplo, mas também um Tancredo
Neves e um Ulysses Guimarães, que, além das qualidades “animais”, tinham a
coragem e a grandeza de bons seres humanos.
Dilma padeceu da falta de algumas dessas
qualidades. Tem coragem e persistência. Em alguns momentos parece até ter uma
força leonina, telúrica e indomável. Mas faltaram-lhe a habilidade política,
que lhe permitiria negociar, e a astúcia da raposa. O pouco de jogo, de
esperteza, apareceu tarde demais e, aparentemente, não foi sequer de sua
autoria.
Confiar em José Eduardo Cardoso, de resto
um brilhante advogado e professor de Direito, para as derradeiras cartadas
políticas foi o mesmo que apostar no gesto de um Waldir Maranhão para sinalizar
os vícios do impeachment.
É verdade que a própria Dilma não deve ter
esperado mais do que isso: uma sinalização para o mundo, o STF e a História de
que o processo de impeachment foi “sujo, hipócrita e mentiroso”. Todos sabemos
que estava sendo preparado há anos, desde que ela venceu a segunda eleição.
Teve apoio dos jornais, TV e revistas, da mídia conservadora, dos blogs pagos
por empresários, do uso de instrumentos jurídicos e de alguns juízes.
Movimentos de massa capitalizados pela Fiesp e outras organizações patronais
não escondiam o seu objetivo.
Não é possível, contudo, que Dilma não
percebesse para onde se dirigia a opinião pública, mesmo que a julgasse
manipulada. Não se pode crer que se apoiasse apenas no seu “dispositivo
petista”, com Cardoso, Jacques Wagner e Aloísio Mercadante, nem em pequenos
partidos como o PC do B e nos movimentos sociais. Tampouco poderia contar só
com o suporte das empresas que patrocinaram sua campanha ou com os ministros
fisiológicos que teve que engolir na coalizão chamada de “base governista”.
Tudo indica que Dilma não sabia mesmo o
que fazer, em meio a tantas e astutas raposas. Recorreu ao ex-presidente Lula,
mas depois das gravações do juiz Moro, das reações do Supremo e,
principalmente, do verdadeiro chefe da República de Curitiba, o procurador
Janot, tudo ficou mais difícil. O próprio recurso a Lula já foi um dos muitos
erros ao enfrentar a trama da politização da Justiça.
Entre as raposas, estava Michel Temer,
que vinha conspirando há muito tempo, fazendo reuniões com empresários e
políticos da oposição para armar o seu bote. A aliança de Temer com Eduardo
Cunha, preparando a Câmara dos Deputados e, ao mesmo tempo, manobrando o PMDB
para deixar o governo acelerou o processo de impeachment, que chegou a ficar em
segundo plano por um bom tempo, quando a presidente tentou mudar os rumos da
política econômica, ganhando um fôlego junto à “oligarquia liberal”.
Dilma está caindo porque não foi capaz
de artimanhas, mas vítima delas. Sua força leonina diminuiu paralelamente à
perda da base política. Sua derrota veio por perder a base para governar, mas
isto ocorreu porque não teve recursos para articular um projeto de conquista do
seu sócio majoritário, o PMDB, que se foi deslizando cada vez mais para
direita. Quando se juntou a Renan Calheiros, outra fera capaz de trair, já era
tarde. Não conseguiu impor uma divisão suficiente no PMDB capaz de neutralizar
o vingativo Eduardo Cunha.
Muitos analistas políticos afirmam que
a grande falha de Dilma e de seus conselheiros foi hostilizar Cunha quando ele
quis proteção na Comissão de Ética do Congresso para evitar a própria cassação.
Isso é um engano. Dilma naufragou quando confiou na possibilidade de manipular,
com os métodos de raposa de Lula, os vários partidos da base governista, sem um
programa mínimo comum capaz de elevar o nível de dignidade da política.
Os ultrarrealistas dizem que a matéria
prima do Congresso e do Ministério não permitiria elevar qualquer nível. Pode
ser. Mas houve uma oportunidade quando explodiu a insatisfação popular, em
2013, de ganhar apoio do povo para reformas institucionais, sociais e políticas.
Dilma dirigiu-se diretamente à população quando falou em Constituinte
independente, plebiscito e reforma do quadro partidário. A crise se avizinhava,
poderia, inclusive, fazer uma reforma ministerial. Faltou ali a estatura e a
grandeza de uma estadista. Faltou também não só o “instinto animal”, a manha,
mas a ação leonina recomendada por Maquiavel ao bom político.
Não enfrentou o PMDB, rendeu-se ao pior
da base governista e à vontade de Michel Temer, que vetou qualquer mudança. O
resultado é que, agora, o galinheiro está entregue à raposa mais traiçoeira do
seu entorno.
O governo Dilma morre de uma morte ruim,
ainda que sua líder continue lutando. Não é a boa morte que os gregos supunham:
lutando, mas deixando a glória e a grandeza como heranças.
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