quarta-feira, 26 de outubro de 2016

CURIOSIDADE

  

                                                    Reinaldo Lobo

    Quando um jornalista perguntou ao célebre historiador inglês Arnold Toynbee por que se deu ao trabalho de escrever aos 80 anos um livro de mais de 1000 páginas sobre o antigo Egito, em lugar de estar gozando de sua aposentadoria, a resposta foi: “Curiosidade”.
    Essa inquietude mental de perguntar, pesquisar e procurar respostas é um elemento comum nas ciências, nas artes e na filosofia. A curiosidade está presente em todas elas. Há um caráter mais ou menos desinteressado nessa atitude, o que torna diferentes o desejo de saber e a simples fofoca. Quanto mais desinteressada, mais eficiente, livre e produtiva será uma investigação.
    Alguns psicanalistas falaram -- Melanie Klein entre eles-- na existência de um “instinto epistemofílico” que empurraria o ser humano, desde criancinha, para amar e buscar o conhecimento. É difícil pensar num instinto que tenha uma direção que levaria ao teorema de Pitágoras. Por definição, um instinto é apenas um impulso virtual, biologicamente determinado. Instinto é o contrário de pensar. Um instinto “do pensar” chega a parecer um contrassenso.
    No início da psicanálise, havia “instinto” para muitas coisas complexas que não eram muito bem conhecidas. O próprio Freud chama sua teoria dos instintos de “nossa mitologia”. Não há dúvida, porém, de que as crianças têm uma grande curiosidade sobre o mundo que estão descobrindo, um forte impulso para a integração de informações e para “ir para a frente “, atrás do próprio desenvolvimento.
    Foi Klein quem chamou a atenção pela primeira vez, e lamentou, a perda da curiosidade que a sociedade impõe àquela criancinha que olha fascinada para as próprias mãos, como se as estudasse. Ou que explora o seio da mãe como um território admirado e a ser conquistado. À medida em que crescem, as crianças submetem-se à autoridade dos pais e dos adultos em geral. Estes, às vezes embaraçados com as perguntas infantis, tendem a “satisfazer” sua curiosidade com respostas prontas, crenças religiosas e preconceitos.
   Exemplos como o de Toynbee costumam ser, infelizmente, raros. A proverbial curiosidade das crianças é sempre ameaçada pelas respostas dos pais ou dos adultos em geral, a começar pelos professores. As crianças consideram, até por sua dependência, que os adultos são portadores de um suposto saber. No fim das contas, é com eles que vão aprender o que é necessário para a vida em sociedade. Mas todos sabemos que os adultos são incapazes de dar explicações realmente satisfatórias a algumas demandas das crianças.
     Por exemplo, o conhecimento da sexualidade: as respostas costumam ser apenas destinadas a interromper as perguntas inquietantes das crianças, mas não chegam a explicar adequadamente o que leva as pessoas a fazerem amor ou a verdadeira origem dos bebês. A história das “sementinhas” inoculadas pelo papai na mamãe é uma caricatura de uma exposição fria de um processo científico ou a explanação da atividade dos cozinheiros numa aula gourmet. Às vezes, vem acompanhada de uma ressalva: papai faz isso na mamãe por amor. 
      Sejam as crianças enervantes, divertidas, grudentas ou mesmo “reflexivas”, surge nos adultos um desconforto pelas perguntas acachapantes, que leva à imposição da autoridade por meio da linguagem da “gente grande”. A linguagem delimita um território do que pode ser compreendido, assim como do que não pode ser ultrapassado.
     Uma vez circunscritos os limites, os pequenos tendem a seguir o curso da socialização até, pelo menos, à pré-adolescência e à rebeldia frequente da crise adolescente. Mas, mesmo aí, a sociedade foi internalizada com seus valores, tecnologias e recursos disponíveis para “matar a curiosidade”-- expressão ambígua que tem pelo menos dois significados: satisfazer as dúvidas e assassinar a atitude mental de inquirir.
       A curiosidade também tem pelo menos dois lados, um deles arrogante e destrutivo; o outro, criativo. Um é de fechamento, o outro de abertura para a imaginação.
      No mito de Édipo, dramatizado pela peça de Sófocles, há um herói que quer tudo saber, investigar até o fim quem matou o Rei num incidente na estrada. Deseja a verdade. O sábio Tirésias, como um analista, mostra que a curiosidade do herói poderá levá-lo a descobertas muito dolorosas. Édipo insiste e, no fim, descobre que matou seu próprio pai sem saber quem era e que casou com a mãe, cometendo parricídio e incesto. Sua arrogância em não parar de pesquisar jogou-o na desgraça. Ele decide “matar sua curiosidade” cegando-se para sempre.
     Essa interpretação do mito edípico, traçada em linhas gerais pelo psicanalista britânico Wilfred Bion, pode ser acrescida do comentário de que a atividade do conhecer, quando é marcada por uma gratuidade como em Toynbee, não é motivada inconscientemente apenas por culpa, mas por reparação e sublimação. Isso leva o ser humano a uma abertura para o outro: curiosidade por viajar, conhecer outras culturas, decifrar a personalidade do outro, ser tolerante com o diferente, pesquisar a cura de doenças e males da humanidade, etc.
    Admiramos os grandes criadores, cientistas, artistas e filósofos porque conseguiram, em grande parte, romper com as imposições que limitariam seus territórios e foram muito além em sua curiosidade. Saíram de uma atitude primária de voyeurs da cena primitiva, aprisionados pela curiosidade sobre o que se passa no quarto de dormir de papai e mamãe, para imaginar soluções sobre os problemas da humanidade.
    Amós Oz, o escritor israelense, diz que a curiosidade é um remédio contra o fanatismo, quando surge um legítimo interesse sobre o que o outro pensa, vive e sonha. A curiosidade abre a mente para o desconhecido e o novo, caminhos capazes de nos surpreender e de acionar nossa imaginação. Talvez até ao ponto de gerar uma cultura de paz, não de ódio.
   Hoje, as tecnologias estão criando novas gerações que recebem aparatos técnicos prontos, sem saber como se constituíram, mas não se pode esquecer que muitos desses jovens sonham com se tornar pesquisadores de novos aparelhos e querem saber como tudo isso funciona.
   A imaginação humana não é racional, certinha, e pode dar origem tanto a um Toynbee quanto a um Nero, que ficou curioso sobre “de onde veio” e abriu a barriga da mãe viva para “pesquisar”. Contudo, sempre haverá quem deseje matar a curiosidade sem destruí-la no mesmo ato.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

ADMIRÁVEL MUNDO VELHO



                                                                  Reinaldo Lobo

     O simples não existe, há o simplificado – dizia Gaston Bachelard, o filósofo que punha imaginação na ciência. A lenda urbana de que o mundo pode ser reduzido a partículas moleculares, pois essa seria sua natureza íntima, é o mito do reducionismo. Nem o universo subatômico funciona assim. Esse é um campo de relações complexas e até de alguma indeterminação, provavelmente como a sociedade, a cultura, a economia, a história e o próprio pensamento.
    Tudo poderia “ser melhor” se a realidade fosse simples, restrita a alguns pequenos pedaços fáceis de recompor e de manipular. No próprio espírito científico, as explicações tendem à redução ao mais econômico e às ideias mais elementares: essa é considerada a “elegância” de uma teoria. Diz uma ideia utópica decorrente desse mito que, um dia, o mundo foi tão elementar que deveríamos voltar a esse tempo inaugural. Nada disso é certeza.
    O mundo contemporâneo joga na nossa cara que o simples não existe e parece nunca haver existido, por mais que as explicações possam ser simplificadoras. Obriga-nos a rever nossa maneira de pensar e a enfrentar o mito do reducionismo. Vivemos cada vez mais em uma realidade complexa, heterogênea e diversificada onde o chamado pensamento binário, do tipo “ou isto ou aquilo”, pode funcionar nas formulações de certas áreas da ciência, mas não em todas e nem para tudo.
    O universo “velho” era admiravelmente binário e ainda o é em certa medida, graças aos resíduos do século XX. A dicotomia é uma das formas básicas do reducionismo. Uma interessante pensadora argentina, Denise Najmanovich, costuma dizer que esse é o “Reino da Planolândia”, onde tudo é dividido simplificadamente em dois, como num plano básico, quase bidimensional. É a terra do Bem e do Mal. Diz ela:
         “Dividir o mundo em bons e maus, bonitos e feios, inteligentes e burros, pobres e ricos, relativistas e dogmáticos, heróis e anti-heróis, etc., é um dos vícios mais profundos e ativos da nossa civilização. Essas classificações dicotômicas são ideais para todos os amantes das ideias “claras e distintas”; exceto quando alguém ousa situá-los em um grupo “indesejável”. Os adictos ao pensamento polarizado ou dicotômico tendem a se reunir sempre no paraíso e destinar seus inimigos ao inferno. Além disso, deve-se dizer que todo aquele que não esteja de acordo com eles passa “ipso facto” para campo do inimigo. Qualquer opção intermediária está excluída da paisagem dicotômica”.
         O próprio conhecimento tem sido pensado como se tivesse por objetivo exclusivo a tarefa heroica de dissolver a complexidade aparente dos fenômenos, para explicitar a ordem simples a que estão submetidos. O resultado é uma forma mutiladora de organização do conhecimento, incapaz de detectar, descobrir e apreender a complexidade do real, como têm mostrado as novas teorias sobre a ciência.
        Nos tempos em que o planeta estava dividido geopoliticamente entre um Império Norte-americano e um Império Soviético, separados na aparência entre capitalismo e comunismo, existiam, ao mesmo tempo, estranhos fenômenos contraditórios como uma economia híbrida na antiga Iugoslávia, os kibutzim israelenses, os países nórdicos como Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda, Finlândia, os movimentos das comunidades autogeridas da Califórnia, nos anos 60, a autonomia operária na Hungria, em 1956, as reformas trabalhistas inglesas, revoluções capitalistas no Terceiro Mundo em nome do anti-colonialísmo e de um suposto socialismo, etc.
       Ao mesmo tempo, intelectuais importantes como Raymond Aron e John Kenneth Galbraith apontaram, paralelamente, uma inclinação tecnoburocrática e distributivista nos Estados, que tendia a aproximar cada vez mais as sociedades desenvolvidas, incluindo a pulverização acionária do Capital e a democratização do consumo. Era a teoria da confluência entre socialismo e capitalismo. As crises que atingiram os Estados do Bem-Estar e o capitalismo em geral, seguidas da decadência da economia soviética, acabaram por desviar o caminho dessa tendência.
      Nada disso era uma “terceira via”, como quer o pensamento dicotômico, mas situações contraditórias e paradoxais no interior das sociedades existentes.
      A realidade era aparentemente transparente, mas, na verdade, opaca. O Império Soviético parecia irremovível e permanente. Quando caiu com muita rapidez, inúmeros cientistas políticos foram apanhados de surpresa e alguns ficaram perplexos. O consequente fracionamento imperial, dando origem a inúmeros países no Leste Europeu, singulares e com culturas diferentes, mostrou um pouco como seria o século XXI.
    Hoje, a realidade é híbrida, como sempre foi. É cada vez mais explicitamente opaca e complexa, e não comporta explicações redutoras ou simplificadoras.
    A família, tida como célula básica da sociedade, perdeu seu contorno anterior, patriarcal, tornou-se múltipla, surgiram famílias combinadas, a simplificação em torno de valores impostos e naturalizados já não é possível.
    A diversidade de gêneros sexuais, rompendo com o binarismo homem-mulher da heterossexualidade, também fez emergir fenômenos contidos por séculos de redução mental e social.
    A realidade contemporânea é ostensivamente multidimensional e virtual. Não pode mais ser apreendida por esquemas binários simplificados, nem por um determinismo científico clássico e estrito. Comporta um princípio de incompletude e de incerteza.
    Exige uma reforma do pensamento, como diz Edgar Morin, isto é, um pensamento que aspire a um conhecimento multidimensional, mas que saiba, de saída, que o conhecimento completo é impossível. Uma das regras básicas de uma teoria da complexidade é a impossibilidade, mesmo em tese, de uma onisciência. Não dá para apreender a totalidade dos fenômenos. Mas, mesmo assim, é preciso reconhecer que todas as coisas “são causadas e causadoras”, como dizia Pascal, e mantém um elo entre si, mesmo que se reconheça nelas as diferenças.
      O pensamento da complexidade aparece onde o simplificador falha, mas integra nele tudo o que põe ordem, distinção, clareza e precisão no conhecimento.  Se, por um lado, o pensamento simplificador e binário desintegra a realidade para tentar explicá-la, o conhecimento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar. Só recusa as suas consequências redutoras, unidimensionais e mutiladoras, assim como a ilusão da simplificação que, como diz Morin, se toma pelo reflexo do que há de verdadeiro na realidade.
       O século XXI -- quando já existe uma realidade mundial em rede, inclusive virtual nas “nuvens” da comunicação, onde a interconexão é cada vez maior e mais rápida-- tornou impossível pensar como pensávamos no admirável mundo velho e unidimensional da simplificação.