Reinaldo Lobo
O simples não existe, há o simplificado –
dizia Gaston Bachelard, o filósofo que punha imaginação na ciência. A lenda
urbana de que o mundo pode ser reduzido a partículas moleculares, pois essa
seria sua natureza íntima, é o mito do reducionismo. Nem o universo subatômico
funciona assim. Esse é um campo de relações complexas e até de alguma
indeterminação, provavelmente como a sociedade, a cultura, a economia, a
história e o próprio pensamento.
Tudo poderia “ser melhor” se a realidade
fosse simples, restrita a alguns pequenos pedaços fáceis de recompor e de
manipular. No próprio espírito científico, as explicações tendem à redução ao
mais econômico e às ideias mais elementares: essa é considerada a “elegância”
de uma teoria. Diz uma ideia utópica decorrente desse mito que, um dia, o mundo
foi tão elementar que deveríamos voltar a esse tempo inaugural. Nada disso é
certeza.
O
mundo contemporâneo joga na nossa cara que o simples não existe e parece nunca
haver existido, por mais que as explicações possam ser simplificadoras.
Obriga-nos a rever nossa maneira de pensar e a enfrentar o mito do reducionismo.
Vivemos cada vez mais em uma realidade complexa, heterogênea e diversificada
onde o chamado pensamento binário, do tipo “ou isto ou aquilo”, pode funcionar
nas formulações de certas áreas da ciência, mas não em todas e nem para tudo.
O universo “velho” era admiravelmente
binário e ainda o é em certa medida, graças aos resíduos do século XX. A
dicotomia é uma das formas básicas do reducionismo. Uma interessante pensadora
argentina, Denise Najmanovich, costuma dizer que esse é o “Reino da Planolândia”,
onde tudo é dividido simplificadamente em dois, como num plano básico, quase
bidimensional. É a terra do Bem e do Mal. Diz ela:
“Dividir o mundo em bons e maus,
bonitos e feios, inteligentes e burros, pobres e ricos, relativistas e dogmáticos,
heróis e anti-heróis, etc., é um dos vícios mais profundos e ativos da nossa
civilização. Essas classificações dicotômicas são ideais para todos os amantes
das ideias “claras e distintas”; exceto quando alguém ousa situá-los em um
grupo “indesejável”. Os adictos ao pensamento polarizado ou dicotômico tendem a
se reunir sempre no paraíso e destinar seus inimigos ao inferno. Além disso,
deve-se dizer que todo aquele que não esteja de acordo com eles passa “ipso
facto” para campo do inimigo. Qualquer opção intermediária está excluída da
paisagem dicotômica”.
O próprio conhecimento tem sido pensado
como se tivesse por objetivo exclusivo a tarefa heroica de dissolver a
complexidade aparente dos fenômenos, para explicitar a ordem simples a que
estão submetidos. O resultado é uma forma mutiladora de organização do
conhecimento, incapaz de detectar, descobrir e apreender a complexidade do
real, como têm mostrado as novas teorias sobre a ciência.
Nos tempos em que o planeta estava
dividido geopoliticamente entre um Império Norte-americano e um Império
Soviético, separados na aparência entre capitalismo e comunismo, existiam, ao
mesmo tempo, estranhos fenômenos contraditórios como uma economia híbrida na
antiga Iugoslávia, os kibutzim israelenses, os países nórdicos como Dinamarca,
Suécia, Noruega, Holanda, Finlândia, os movimentos das comunidades autogeridas
da Califórnia, nos anos 60, a autonomia operária na Hungria, em 1956, as
reformas trabalhistas inglesas, revoluções capitalistas no Terceiro Mundo em
nome do anti-colonialísmo e de um suposto socialismo, etc.
Ao mesmo tempo, intelectuais importantes
como Raymond Aron e John Kenneth Galbraith apontaram, paralelamente, uma
inclinação tecnoburocrática e distributivista nos Estados, que tendia a
aproximar cada vez mais as sociedades desenvolvidas, incluindo a pulverização
acionária do Capital e a democratização do consumo. Era a teoria da confluência
entre socialismo e capitalismo. As crises que atingiram os Estados do Bem-Estar
e o capitalismo em geral, seguidas da decadência da economia soviética, acabaram
por desviar o caminho dessa tendência.
Nada disso era uma “terceira via”, como quer
o pensamento dicotômico, mas situações contraditórias e paradoxais no interior
das sociedades existentes.
A realidade era aparentemente
transparente, mas, na verdade, opaca. O Império Soviético parecia irremovível e
permanente. Quando caiu com muita rapidez, inúmeros cientistas políticos foram
apanhados de surpresa e alguns ficaram perplexos. O consequente fracionamento
imperial, dando origem a inúmeros países no Leste Europeu, singulares e com
culturas diferentes, mostrou um pouco como seria o século XXI.
Hoje, a realidade é híbrida, como sempre
foi. É cada vez mais explicitamente opaca e complexa, e não comporta
explicações redutoras ou simplificadoras.
A
família, tida como célula básica da sociedade, perdeu seu contorno anterior,
patriarcal, tornou-se múltipla, surgiram famílias combinadas, a simplificação
em torno de valores impostos e naturalizados já não é possível.
A diversidade de gêneros sexuais, rompendo
com o binarismo homem-mulher da heterossexualidade, também fez emergir
fenômenos contidos por séculos de redução mental e social.
A realidade contemporânea é ostensivamente
multidimensional e virtual. Não pode mais ser apreendida por esquemas binários simplificados,
nem por um determinismo científico clássico e estrito. Comporta um princípio de
incompletude e de incerteza.
Exige uma reforma do pensamento, como diz
Edgar Morin, isto é, um pensamento que aspire a um conhecimento multidimensional,
mas que saiba, de saída, que o conhecimento completo é impossível. Uma das
regras básicas de uma teoria da complexidade é a impossibilidade, mesmo em
tese, de uma onisciência. Não dá para apreender a totalidade dos fenômenos.
Mas, mesmo assim, é preciso reconhecer que todas as coisas “são causadas e
causadoras”, como dizia Pascal, e mantém um elo entre si, mesmo que se
reconheça nelas as diferenças.
O pensamento da complexidade aparece onde
o simplificador falha, mas integra nele tudo o que põe ordem, distinção,
clareza e precisão no conhecimento. Se,
por um lado, o pensamento simplificador e binário desintegra a realidade para
tentar explicá-la, o conhecimento complexo integra o mais possível os modos
simplificadores de pensar. Só recusa as suas consequências redutoras,
unidimensionais e mutiladoras, assim como a ilusão da simplificação que, como
diz Morin, se toma pelo reflexo do que há de verdadeiro na realidade.
O século XXI -- quando já existe uma
realidade mundial em rede, inclusive virtual nas “nuvens” da comunicação, onde
a interconexão é cada vez maior e mais rápida-- tornou impossível pensar como
pensávamos no admirável mundo velho e unidimensional da simplificação.
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