quinta-feira, 13 de outubro de 2016

ADMIRÁVEL MUNDO VELHO



                                                                  Reinaldo Lobo

     O simples não existe, há o simplificado – dizia Gaston Bachelard, o filósofo que punha imaginação na ciência. A lenda urbana de que o mundo pode ser reduzido a partículas moleculares, pois essa seria sua natureza íntima, é o mito do reducionismo. Nem o universo subatômico funciona assim. Esse é um campo de relações complexas e até de alguma indeterminação, provavelmente como a sociedade, a cultura, a economia, a história e o próprio pensamento.
    Tudo poderia “ser melhor” se a realidade fosse simples, restrita a alguns pequenos pedaços fáceis de recompor e de manipular. No próprio espírito científico, as explicações tendem à redução ao mais econômico e às ideias mais elementares: essa é considerada a “elegância” de uma teoria. Diz uma ideia utópica decorrente desse mito que, um dia, o mundo foi tão elementar que deveríamos voltar a esse tempo inaugural. Nada disso é certeza.
    O mundo contemporâneo joga na nossa cara que o simples não existe e parece nunca haver existido, por mais que as explicações possam ser simplificadoras. Obriga-nos a rever nossa maneira de pensar e a enfrentar o mito do reducionismo. Vivemos cada vez mais em uma realidade complexa, heterogênea e diversificada onde o chamado pensamento binário, do tipo “ou isto ou aquilo”, pode funcionar nas formulações de certas áreas da ciência, mas não em todas e nem para tudo.
    O universo “velho” era admiravelmente binário e ainda o é em certa medida, graças aos resíduos do século XX. A dicotomia é uma das formas básicas do reducionismo. Uma interessante pensadora argentina, Denise Najmanovich, costuma dizer que esse é o “Reino da Planolândia”, onde tudo é dividido simplificadamente em dois, como num plano básico, quase bidimensional. É a terra do Bem e do Mal. Diz ela:
         “Dividir o mundo em bons e maus, bonitos e feios, inteligentes e burros, pobres e ricos, relativistas e dogmáticos, heróis e anti-heróis, etc., é um dos vícios mais profundos e ativos da nossa civilização. Essas classificações dicotômicas são ideais para todos os amantes das ideias “claras e distintas”; exceto quando alguém ousa situá-los em um grupo “indesejável”. Os adictos ao pensamento polarizado ou dicotômico tendem a se reunir sempre no paraíso e destinar seus inimigos ao inferno. Além disso, deve-se dizer que todo aquele que não esteja de acordo com eles passa “ipso facto” para campo do inimigo. Qualquer opção intermediária está excluída da paisagem dicotômica”.
         O próprio conhecimento tem sido pensado como se tivesse por objetivo exclusivo a tarefa heroica de dissolver a complexidade aparente dos fenômenos, para explicitar a ordem simples a que estão submetidos. O resultado é uma forma mutiladora de organização do conhecimento, incapaz de detectar, descobrir e apreender a complexidade do real, como têm mostrado as novas teorias sobre a ciência.
        Nos tempos em que o planeta estava dividido geopoliticamente entre um Império Norte-americano e um Império Soviético, separados na aparência entre capitalismo e comunismo, existiam, ao mesmo tempo, estranhos fenômenos contraditórios como uma economia híbrida na antiga Iugoslávia, os kibutzim israelenses, os países nórdicos como Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda, Finlândia, os movimentos das comunidades autogeridas da Califórnia, nos anos 60, a autonomia operária na Hungria, em 1956, as reformas trabalhistas inglesas, revoluções capitalistas no Terceiro Mundo em nome do anti-colonialísmo e de um suposto socialismo, etc.
       Ao mesmo tempo, intelectuais importantes como Raymond Aron e John Kenneth Galbraith apontaram, paralelamente, uma inclinação tecnoburocrática e distributivista nos Estados, que tendia a aproximar cada vez mais as sociedades desenvolvidas, incluindo a pulverização acionária do Capital e a democratização do consumo. Era a teoria da confluência entre socialismo e capitalismo. As crises que atingiram os Estados do Bem-Estar e o capitalismo em geral, seguidas da decadência da economia soviética, acabaram por desviar o caminho dessa tendência.
      Nada disso era uma “terceira via”, como quer o pensamento dicotômico, mas situações contraditórias e paradoxais no interior das sociedades existentes.
      A realidade era aparentemente transparente, mas, na verdade, opaca. O Império Soviético parecia irremovível e permanente. Quando caiu com muita rapidez, inúmeros cientistas políticos foram apanhados de surpresa e alguns ficaram perplexos. O consequente fracionamento imperial, dando origem a inúmeros países no Leste Europeu, singulares e com culturas diferentes, mostrou um pouco como seria o século XXI.
    Hoje, a realidade é híbrida, como sempre foi. É cada vez mais explicitamente opaca e complexa, e não comporta explicações redutoras ou simplificadoras.
    A família, tida como célula básica da sociedade, perdeu seu contorno anterior, patriarcal, tornou-se múltipla, surgiram famílias combinadas, a simplificação em torno de valores impostos e naturalizados já não é possível.
    A diversidade de gêneros sexuais, rompendo com o binarismo homem-mulher da heterossexualidade, também fez emergir fenômenos contidos por séculos de redução mental e social.
    A realidade contemporânea é ostensivamente multidimensional e virtual. Não pode mais ser apreendida por esquemas binários simplificados, nem por um determinismo científico clássico e estrito. Comporta um princípio de incompletude e de incerteza.
    Exige uma reforma do pensamento, como diz Edgar Morin, isto é, um pensamento que aspire a um conhecimento multidimensional, mas que saiba, de saída, que o conhecimento completo é impossível. Uma das regras básicas de uma teoria da complexidade é a impossibilidade, mesmo em tese, de uma onisciência. Não dá para apreender a totalidade dos fenômenos. Mas, mesmo assim, é preciso reconhecer que todas as coisas “são causadas e causadoras”, como dizia Pascal, e mantém um elo entre si, mesmo que se reconheça nelas as diferenças.
      O pensamento da complexidade aparece onde o simplificador falha, mas integra nele tudo o que põe ordem, distinção, clareza e precisão no conhecimento.  Se, por um lado, o pensamento simplificador e binário desintegra a realidade para tentar explicá-la, o conhecimento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar. Só recusa as suas consequências redutoras, unidimensionais e mutiladoras, assim como a ilusão da simplificação que, como diz Morin, se toma pelo reflexo do que há de verdadeiro na realidade.
       O século XXI -- quando já existe uma realidade mundial em rede, inclusive virtual nas “nuvens” da comunicação, onde a interconexão é cada vez maior e mais rápida-- tornou impossível pensar como pensávamos no admirável mundo velho e unidimensional da simplificação.

      

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